Exposição artística alerta para "drama humano" de quem morre ao abandono

30 jan, 2024 - 07:00 • Ângela Roque

Mafalda d’Oliveira Martins retratou cada uma das 233 pessoas que em 2021 morreram sós na cidade de Lisboa, incluindo 14 bebés. A artista espera que o seu trabalho ajude a “agitar” consciências. A Renascença fez uma visita guiada à exposição, que abre ao público a 31 de janeiro.

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Exposição artística alerta para "drama humano" de quem morre ao abandono. Ouça a reportagem

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Morrer sem ninguém que reclame o corpo é uma realidade que não é rara, apesar de quase invisível à maioria das pessoas. A solidão em vida prolonga-se na hora da morte.

Em Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia assegura os funerais dos que morrem sós, onde marcam presença voluntários da Irmandade de São Roque, que todos os anos, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17 de outubro) celebra missa por essas pessoas. Foi quando assistiu a uma dessas eucaristias - em 2021, ainda em contexto de pandemia - que Mafalda d’Oliveira Martins despertou para o tema.

“Não só essa situação me escandalizou, como cidadã, como alguém que vive em sociedade e não conhece esses lados mais sombrios – e mais dramáticos até - das falhas humanas”, como “o silêncio e a beleza” com que se viveu aquele momento a deixou a pensar “se não havia algo no meu trabalho, na minha forma de trabalhar, que pudesse reagir a isto, como um ponto de reflexão artística”, começa por explicar à Renascença na visita em que nos guiou pela exposição, dias antes de ser inaugurada.

Como podemos fazer memória de quem aparentemente não a deixou? Foi a grande questão que conduziu o trabalho todo que produzi e que agora apresento”, conta ainda.

"Oblívio" foi o nome escolhido para a exposição, com a qual quer homenagear quem morreu assim, em grande solidão e desamparo, mas também os voluntários que lhes tentam garantir um final mais digno e acompanhado.

Mafalda diz que quer abanar consciências, “espero que isto cause alguma agitação interior”, para ajudar a combater a indiferença. “Que as pessoas possam ter uma experiência individual e levar daqui alguma coisa para elas próprias, que não seja apenas uma ideia política, social, de esperança ou de revolta, mas alguma coisa concreta”.

Uma lista de números, nem todos com nome

A exposição homenageia as 233 pessoas - incluindo 14 bebés – que morreram em 2021 na cidade de Lisboa, cujos corpos ninguém reclamou. A Santa Casa pagou os funerais, que os voluntários da Irmandade de S. Roque acompanharam.

Os desenhos a carvão de cada uma dessas pessoas podem ser vistos ao longo das quatro salas da Galeria Belard, em Lisboa. “São retratos evocativos, uma recriação do que poderia ter sido o rosto de cada um”, explica Mafalda d’Oliveira Martins. A própria técnica que usou não foi escolhida ao acaso. “O desenho permitiu pensar em alguém e, através da imaginação, ainda que não seja essa pessoa, dar-lhe algo que é meu e que pode ser dela também”.

Na primeira sala há apenas um retrato, o primeiro que fez, e uma lista a enumerar todos os que morreram, pontuada pela referência "desconhecido". São os que não têm sequer nome. A lista é real e foi fornecida à artista pela Irmandade de S. Roque.

Numa segunda sala aparecem mais rostos, intercalados com espaços vazios, até que na terceira sala todas as paredes estão preenchidas. O efeito é propositadamente impactante.

“Queremos que as pessoas sejam confrontadas com o peso de 233 vidas perdidas, e que não estão longe de nós: foi aqui em Lisboa, e num ano concreto”, adianta à Renascença a galerista Catarina Mantero.

A última sala da exposição é tão ou mais tocante. “São os rostos de 14 bebés, recém nascidos ou fetos, que morreram em 2021 e nunca foram reclamados”, e de quem a SCML e a Irmandade de S. Roque também se encarregaram de sepultar.

À espera de ser mãe, Mafalda d’Oliveira Martins admite que esta foi a parte mais difícil do projeto. “Foi a que mais me custou”, mas diz que lhe permitiu ir para lá da linguagem abstrata dos números, e sentir e perceber melhor esta “ferida humana” do abandono, da solidão e do desinteresse.

“Tenho o maior orgulho em mostrar este trabalho”

A exposição "Oblívio" vai ficar na galeria Belard até 16 de março. Catarina Mantero, artista plástica e responsável pelo espaço, diz que um dos seus objetivos tem sido “dar luz a um certo tipo de arte que eu sinto que não se via muito em Lisboa”, com um “foco significativo na nova figuração”, mostrar “como é que a figura se reinventa”.

“Já não interessa a pintura mimética, ou o desenho mimético, interessa transcender isso e que as obras de arte sejam capazes de conter dentro delas não só uma narrativa linear reconhecível, mas também uma certa expressão ao serviço da história que se está a contar. E este trabalho da Mafalda em particular ilustra isso na perfeição, até pela técnica que usa”, explica.

A galerista não esconde o quanto este projeto a sensibilizou. “Para além do conteúdo da obra, que como ser humano, portuguesa, lisboeta, fala-me ao coração. É um tema que tem um peso enorme, porque vivemos todos vidas muito aceleradas, todos já tivemos de lidar com a perda em algum momento da nossa vida – eu perdi a minha mãe há puco tempo -, e a Mafalda está aqui a pôr um espelho diferente: isto são pessoas que viviam na sociedade, pagavam impostos, muitos tinham uma casa e morrem sem ninguém no mundo: sem um irmão, um tio, um primo, um sobrinho, alguém que os vá recolher. Isto é muito sensível e é de louvar que a Mafalda tenha decidido dar luz a um tema destes”, sublinha.

A disposição dos retratos foi estrategicamente pensada. “A galeria é dividida em quatro salas, e quisemos aproveitar isso, como se fosse a narrativa de um livro com vários capítulos”.

Como se entra e sai da galeria pela mesma porta, “o último capítulo é outra vez o primeiro do caminho de volta”, o que permite ver tudo outra vez, com outra atenção. “Se calhar já olhamos mais atentamente para a técnica, para a peculiaridade dos desenhos, reparamos num ou outro pormenor que nos faz lembrar alguém mais próximo. Ou seja, isto funciona como uma onda, uma frequência, um vaivém de intensidade”.

“Tenho o maior orgulho de poder mostrar este corpo de trabalho aqui, porque o tema da exposição diz respeito a todos” e também “é uma forma de agradecer a estas entidades que honram estas vidas e que lhes dão uma morte digna”, acrescenta Catarina Mantero.

A inauguração da exposição acontece na quarta-feira, 31 de janeiro, entre as 18h00 e as 21h00. Às 20h00 há uma atuação prevista de um coro de 17 vozes que interpretará uma peça de Mafalda d’Oliveira Martins, que também compõe, e que deixa o convite: “venham contemplar e refletir connosco sobre este tema e, quem sabe, encontrar beleza no meio desta ferida humana”.

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