30 jan, 2024 - 07:00 • Ângela Roque
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Morrer sem ninguém que reclame o corpo é uma realidade que não é rara, apesar de quase invisível à maioria das pessoas. A solidão em vida prolonga-se na hora da morte.
Em Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia assegura os funerais dos que morrem sós, onde marcam presença voluntários da Irmandade de São Roque, que todos os anos, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17 de outubro) celebra missa por essas pessoas. Foi quando assistiu a uma dessas eucaristias - em 2021, ainda em contexto de pandemia - que Mafalda d’Oliveira Martins despertou para o tema.
“Não só essa situação me escandalizou, como cidadã, como alguém que vive em sociedade e não conhece esses lados mais sombrios – e mais dramáticos até - das falhas humanas”, como “o silêncio e a beleza” com que se viveu aquele momento a deixou a pensar “se não havia algo no meu trabalho, na minha forma de trabalhar, que pudesse reagir a isto, como um ponto de reflexão artística”, começa por explicar à Renascença na visita em que nos guiou pela exposição, dias antes de ser inaugurada.
“Como podemos fazer memória de quem aparentemente não a deixou? Foi a grande questão que conduziu o trabalho todo que produzi e que agora apresento”, conta ainda.
"Oblívio" foi o nome escolhido para a exposição, com a qual quer homenagear quem morreu assim, em grande solidão e desamparo, mas também os voluntários que lhes tentam garantir um final mais digno e acompanhado.
Mafalda diz que quer abanar consciências, “espero que isto cause alguma agitação interior”, para ajudar a combater a indiferença. “Que as pessoas possam ter uma experiência individual e levar daqui alguma coisa para elas próprias, que não seja apenas uma ideia política, social, de esperança ou de revolta, mas alguma coisa concreta”.
A exposição homenageia as 233 pessoas - incluindo 14 bebés – que morreram em 2021 na cidade de Lisboa, cujos corpos ninguém reclamou. A Santa Casa pagou os funerais, que os voluntários da Irmandade de S. Roque acompanharam.
Os desenhos a carvão de cada uma dessas pessoas podem ser vistos ao longo das quatro salas da Galeria Belard, em Lisboa. “São retratos evocativos, uma recriação do que poderia ter sido o rosto de cada um”, explica Mafalda d’Oliveira Martins. A própria técnica que usou não foi escolhida ao acaso. “O desenho permitiu pensar em alguém e, através da imaginação, ainda que não seja essa pessoa, dar-lhe algo que é meu e que pode ser dela também”.
Na primeira sala há apenas um retrato, o primeiro que fez, e uma lista a enumerar todos os que morreram, pontuada pela referência "desconhecido". São os que não têm sequer nome. A lista é real e foi fornecida à artista pela Irmandade de S. Roque.
Numa segunda sala aparecem mais rostos, intercalados com espaços vazios, até que na terceira sala todas as paredes estão preenchidas. O efeito é propositadamente impactante.
“Queremos que as pessoas sejam confrontadas com o peso de 233 vidas perdidas, e que não estão longe de nós: foi aqui em Lisboa, e num ano concreto”, adianta à Renascença a galerista Catarina Mantero.
Reportagem
No ano passado morreram 233 pessoas na cidade de L(...)
A última sala da exposição é tão ou mais tocante. “São os rostos de 14 bebés, recém nascidos ou fetos, que morreram em 2021 e nunca foram reclamados”, e de quem a SCML e a Irmandade de S. Roque também se encarregaram de sepultar.
À espera de ser mãe, Mafalda d’Oliveira Martins admite que esta foi a parte mais difícil do projeto. “Foi a que mais me custou”, mas diz que lhe permitiu ir para lá da linguagem abstrata dos números, e sentir e perceber melhor esta “ferida humana” do abandono, da solidão e do desinteresse.
A exposição "Oblívio" vai ficar na galeria Belard até 16 de março. Catarina Mantero, artista plástica e responsável pelo espaço, diz que um dos seus objetivos tem sido “dar luz a um certo tipo de arte que eu sinto que não se via muito em Lisboa”, com um “foco significativo na nova figuração”, mostrar “como é que a figura se reinventa”.
“Já não interessa a pintura mimética, ou o desenho mimético, interessa transcender isso e que as obras de arte sejam capazes de conter dentro delas não só uma narrativa linear reconhecível, mas também uma certa expressão ao serviço da história que se está a contar. E este trabalho da Mafalda em particular ilustra isso na perfeição, até pela técnica que usa”, explica.
A galerista não esconde o quanto este projeto a sensibilizou. “Para além do conteúdo da obra, que como ser humano, portuguesa, lisboeta, fala-me ao coração. É um tema que tem um peso enorme, porque vivemos todos vidas muito aceleradas, todos já tivemos de lidar com a perda em algum momento da nossa vida – eu perdi a minha mãe há puco tempo -, e a Mafalda está aqui a pôr um espelho diferente: isto são pessoas que viviam na sociedade, pagavam impostos, muitos tinham uma casa e morrem sem ninguém no mundo: sem um irmão, um tio, um primo, um sobrinho, alguém que os vá recolher. Isto é muito sensível e é de louvar que a Mafalda tenha decidido dar luz a um tema destes”, sublinha.
A disposição dos retratos foi estrategicamente pensada. “A galeria é dividida em quatro salas, e quisemos aproveitar isso, como se fosse a narrativa de um livro com vários capítulos”.
Como se entra e sai da galeria pela mesma porta, “o último capítulo é outra vez o primeiro do caminho de volta”, o que permite ver tudo outra vez, com outra atenção. “Se calhar já olhamos mais atentamente para a técnica, para a peculiaridade dos desenhos, reparamos num ou outro pormenor que nos faz lembrar alguém mais próximo. Ou seja, isto funciona como uma onda, uma frequência, um vaivém de intensidade”.
“Tenho o maior orgulho de poder mostrar este corpo de trabalho aqui, porque o tema da exposição diz respeito a todos” e também “é uma forma de agradecer a estas entidades que honram estas vidas e que lhes dão uma morte digna”, acrescenta Catarina Mantero.
A inauguração da exposição acontece na quarta-feira, 31 de janeiro, entre as 18h00 e as 21h00. Às 20h00 há uma atuação prevista de um coro de 17 vozes que interpretará uma peça de Mafalda d’Oliveira Martins, que também compõe, e que deixa o convite: “venham contemplar e refletir connosco sobre este tema e, quem sabe, encontrar beleza no meio desta ferida humana”.