A democracia "está um bocadinho doente". O olhar de seis escritores que cresceram em liberdade

06 mar, 2024 - 06:30 • Maria João Costa , com sonorização de André Peralta

Joana Bértholo, João Tordo, Afonso Cruz, Patrícia Portela, Bruno Vieira Amaral e Gonçalo M. Tavares analisam o momento do país que vai a eleições e olham para a celebração dos 50 anos do 25 de Abril como uma oportunidade de repensar.

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A democracia “está um bocadinho doente”. O olhar de 6 escritores que cresceram em liberdade
"O Livro da Democracia", um trabalho da jornalista Maria João Costa, com sonorização de André Peralta

São da geração de escritores portugueses que cresceu em democracia. Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, João Tordo, Joana Bértholo, Bruno Vieira Amaral e Patrícia Portela traçam um diagnóstico crítico e preocupado do país e olham para as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 como uma oportunidade.

Se isto fosse um livro sobre Portugal 2024 e tivesse um preâmbulo, o autor Gonçalo M. Tavares lançaria o mote. Na sua opinião, “provavelmente, nenhuma pessoa está satisfeita com o estado das coisas”, mas “a insatisfação deve ser um ponto de partida para meter mãos à obra”.

No olhar do escritor de “Uma Viagem à Índia”, há hoje uma questão “preocupante” nos jovens dos 14 aos 16 anos que não é exclusiva de Portugal, já que se alarga a toda a Europa. “Há uma tendência claríssima de manifestarem ideias racistas e xenófobos, ou seja, há uma quantidade de valores de exclusão, violentos que estão a aparecer, e isso devia estar no centro das preocupações”, refere.

Gonçalo M. Tavares aponta uma “falta de lucidez dos políticos democráticos”, porque “quando falam em jovens, falam em jovens com mais 18 anos”, ou seja, deixando de fora aqueles que ainda não votam, mas que serão os eleitores dos próximos 60 anos e onde surgem os tais valores racistas que identifica.

"Falta lucidez aos políticos democráticos"

Sem se referir a partidos, o escritor de 53 anos considera urgente falar sem medo. “Falta falar diretamente sobre a migração, sem medo, e sem considerar que o outro é um inimigo”, indica.

“A questão base da democracia é dialogar com pessoas com que não concordamos. O dialogar tem a ver com tentar introduzir argumentos para convencer o outro a mudar de posição, e o outro tentar argumentos para eu mudar de posição. Isso é a base. A ideia de que as pessoas mudam de posição, é uma ideia fundamental da democracia e quando não há discussão, quando não há argumentação, as pessoas vão se afundando na posição onde estão”, diz Gonçalo M. Tavares.

Neste capítulo do estado da democracia, outro escritor, Bruno Vieira Amaral, acrescenta uma nota de roda pé necessária à leitura de Portugal 2024. Na sua opinião, “uma democracia é a existência de eleições, de partidos livres, de uma imprensa livre, liberdade de expressão, separação de poderes, autonomia desses poderes”, contudo, há “muito mais do que isso”.

Acima de tudo, o vencedor do Prémio Fernando Namora considera “a participação dos cidadãos” como o maior fator de democracia. É aqui que está, no seu entender, “talvez o maior falhanço democrático de Portugal nestes 50 anos”.

Continuamos, enquanto sociedade civil, muito alheados dos problemas que nos dizem respeito e afetam diretamente. Isso leva com que muitas vezes se crie esta resposta populista, que não é apenas da direita. É uma resposta populista transversal. Quer dizer, isto não está bem, ou isto não foi alcançado por causa ‘deles’, mas aqueles somos nós também. Somos nós que falhámos enquanto sociedade”, detalha.

"Sistema imunitário da democracia invadido por um vírus"

Nesta sociedade há mais ameaças sistémicas, identifica João Tordo. O escritor de “O Bom Inverno” usa uma metáfora para explicar o desafio que a democracia portuguesa enfrenta, mesmo tendo uma Constituição desde 1976.

Na opinião de Tordo, a lei fundamental é uma espécie de “sistema imunitário que é formado quando se entra em acordos que são democráticos, e que protegem a liberdade, e os direitos dos cidadãos. Neste momento, a nossa democracia está a ser invadida como um sistema imunitário, às vezes, é invadido por um vírus, ou por uma bactéria”.

"Continuamos, enquanto sociedade civil, muito alheados dos problemas que nos dizem respeito"

Usando esta imagem clínica, João Tordo diz que “a questão é paradoxal, porque os sistemas imunitários só se reforçam quando são invadidos”. “É estranho. É que, de um lado da barricada, temos a lamentação: ‘como é que é possível que isto esteja a acontecer ao fim de 50 anos?!’; mas, por outro, eu gosto mais de ver a coisa como uma oportunidade para reforçar a nossa a nossa crença num sistema democrático”, explica.

Para João Tordo, é “para isso que servem as eleições. Serve a vontade dos portugueses de escolherem o que querem”.

Marcadas para 10 de março, as legislativas são também, no olhar de Joana Bértholo, uma “oportunidade” de mudar de página.

“Olho para este período que estamos a passar, como um período de uma grande oportunidade, para fazermos uma reflexão mais profunda, e adiada, a cerca do país que nos tornamos. Espere que não evitemos as questões mais turbulentas ou mais difíceis”.

E que questões são essas? A pergunta abre um segundo capítulo no livro sobre Portugal 2024. No ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, as celebrações devem servir, diz a autora Patrícia Portela, para reavivar a memória daquilo que em 1974 conduziu à mudança.

A autora nascida no mesmo ano da Revolução dos Cravos refere que estamos “a viver um momento muito especial”. “Vamos ter umas eleições antecipadas, e inesperadas, a um mês de celebrar 50 anos do 25 de Abril. Sente-se uma ocupação do espaço público de uma certa direita que não estava presente desta forma tão viva como está agora e, portanto, existe uma espécie de necessidade urgente de reavivar, repensar e retomar os princípios que levaram à democracia”, sublinha Patrícia Portela.

Na opinião da escritora de “Dias Uteis”, há uma “ideia de que as coisas são garantidas”, mas considera isso “uma coisa estranha”, porque explica: “O ser humano é feito para a mudança, mas depois está sempre a não querer mudar. É esquisitíssimo! Ao mesmo tempo, enquanto não muda, acaba por ir perdendo direitos, deveres e vai-se acomodando a uma coisa que vai mudando por ele, ao invés de ser o próprio agente da mudança”.

Para quem como o escritor Afonso Cruz que nasceu três anos antes da Revolução, há um olhar para o que somos hoje que vê melhorias, ao mesmo tempo que vê nos dias de hoje desafios trazidos pela liberdade.

“Nasci numa altura em que 25% das pessoas eram analfabetas, portanto, há aqui uma diferença substancial a todos os níveis e em todas as áreas. No meu caso específico, da literatura, as coisas mudaram radicalmente e mudaram para melhor”, indica de forma otimista.

"Há quem queira regressar para dentro desses muros, porque é mais seguro, porque a liberdade implica alguma insegurança"

Mas como em qualquer um dos seus livros, há sempre um “mas”. “Claro que existe muita descrença. Houve grandes sonhos. Abril é uma espécie de porta que se abre de uma prisão. As pessoas saem, não saem, vão lá para fora, caminham. Há quem queira regressar para dentro desses muros, porque é mais seguro, sentem-se confortáveis, porque a liberdade implica alguma insegurança e, claro, tem havido uma descrença crescente na política e nos políticos, e isso tem minado um pouco a sociedade”, diagnostica Afonso Cruz.

“A falta de ascensão social de alguns profissionais” é, no entender do autor de “Vamos Comprar um Poeta”, uma das razões de haver “revoltados” e de se abrirem “brechas para discursos populistas”.

Também nascido antes do 25 de Abril de 1974, Gonçalo M. Tavares aponta os problemas da pobreza e habitação como algo urgente a resolver.

Acabar com os sem-abrigo não é ir à Lua numa canoa

“Terminar com os sem-abrigo, uns dirão que é impossível. Não, não é impossível. Não é ir à Lua com uma canoa. É uma coisa que requer esforço, recursos, etc. As pessoas vão falando em determinados ideais e, de repente, abandonam-nos quando se deparam com alguma dificuldade. É claramente difícil, algo que requer muito esforço, mas é do âmbito da possibilidade. Uma das expressões que eu menos gosto nos portugueses é: 'isso é muito difícil', basicamente estou a dizer: eu não quero esforçar-me para fazer isso”, critica.

No capítulo do esforço dos portugueses, Bruno Vieira Amaral, que nasceu em 1978, já a democracia caminhava há quatro anos, pede mais envolvimento e cidadania. No seu entender, o problema não passa só pela elevada taxa de abstenção. É “o não envolvimento na democracia e na participação cívica dos cidadãos” que faltam.

O escritor, que fala na ausência de “sentido de responsabilidade dos cidadãos”, desafia os portugueses a trabalharem num “envolvimento” com “coisas que têm a ver com a vida do dia-a-dia”.

Somos pouco exigentes porque nos convém, se calhar mais, estar nesta posição, para depois nos podermos queixar de tudo e atirar as culpas para aquela elite que depois também nos trata de uma forma um pouco condescendente e quase paternalista, como sempre tratou, aliás, ao longo deste ano”, sublinha.

A urgência climática

Mais nova, com 41 anos, a escritora Joana Bértholo interroga-se sobre que democracia queremos ter, 50 anos depois do 25 de Abril. A autora aponta urgências a tratar e uma delas passa pelo impacto das alterações climáticas.

“Ocorre-me, por exemplo, a urgência hídrica que estamos a viver no Algarve, ou a exploração de lítio exacerbado como promessa de uma alternativa energética, ou a diminuição de investimento na ferrovia”, elenca a autora de “Ecologia”.

"Há um trabalho psíquico, coletivo, profundo a fazer pela nossa democracia"

“Acho que temos que pensar que país é que somos hoje no mundo perante o que está a acontecer, mas depois também pensar outras questões eternamente adiadas, mais internas. A relação com o nosso passado colonial, o machismo ainda prevalente na nossa sociedade, a questão da xenofobia, a imigração que está muito na ordem do dia. Há um trabalho psíquico, coletivo, profundo a fazer pela nossa democracia”, destaca Joana Bértholo.

Pensar global é o nome de outro capítulo que se abre nesta conversa com os escritores nascidos em democracia. Nesta página, Patricia Portela discorre sobre aquilo que devemos fazer nos 50 anos do 25 de Abril.

Na sua opinião, “Portugal devia esquecer esta ideia de nação e de Europa, e deveria começar a pensar de uma forma verdadeiramente global”, indica. “Este ano, não me canso de dizer, há quatro mil milhões de pessoas no mundo que vão às urnas, em quatro continentes. O que quer dizer que o mundo pode, apesar de tudo, usar uma das poucas ferramentas que tem que é votar e pode massivamente votar numa direção. Temos de começar a pensar assim, em macro”, opina Patrícia Portela.

Nesta leitura do que será Portugal futuro, Afonso Cruz dá um exemplo mais caseiro de como lidar com os desafios que se colocam na atualidade. Perante a ascensão da direita radical, o autor diz que “não é preciso proibir. Tem é de ser tornar difícil de aceder”.

“É um pouco como digo, se o meu filho quiser pôr os dedos na tomada, eu posso proibir, posso agarrá-lo, posso castigá-lo, posso fazer uma série de coisas, mas há uma maneira muito melhor de fazer isso, que é proteger as tomadas. Já não é preciso proibir. Já não é preciso fazer nada que seja contra a ética mais elementar, e é isso que, na verdade, tem de ser feito com a democracia.”

E se a palavra é a ferramenta do escritor, o voto é a arma do eleitor, relembra João Tordo. O escritor, Prémio Saramago, olha para o que diz ser o “estado turbulento” que estamos a viver e acredita que ele sairá reforçado.

Olhando para que país seremos a partir de 26 de abril de 2024, e questionado se a democracia ainda continua a ser a melhor vacina para o tal sistema imunitário que está a ser atacado, Tordo diz que sim. “É um bocado como o romance. É uma doença para a qual ele é a própria cura. A democracia às vezes também fica doente, e neste momento está um bocadinho doente, não só com a degradação das instituições, da Assembleia da República e do sistema político vigente, mas também com forças políticas que são antagónicas e que trouxeram ao discurso político uma agressividade e uma intolerância que é muito difícil de aceitar num país democrático”, conclui.

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