Dúvidas Públicas

Corrupção pode pôr em causa o regime democrático, diz António João Maia

27 jan, 2024 - 14:33 • Sandra Afonso , Arsénio Reis

Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude alerta para os efeitos da corrupção ao mais alto nível: promove a evasão fiscal, aumenta a abstenção eleitoral, afasta os mais qualificados da política e ameaça a própria democracia.

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Dúvidas Públicas com António João Maia
Dúvidas Públicas com António João Maia

Para os portugueses “Portugal é um país de corruptos, sobretudo a função política, a justiça não é capaz de controlar, atuar devidamente sobre o problema, e vai piorar no futuro". Uma perceção que tem sido reafirmada ano após ano, lembra António João Maia, presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença.

Numa altura em que assistimos ao aumento de detentores de cargos públicos envolvidos em processos de corrupção, seja na qualidade de suspeitos ou de arguidos, António João Maia alerta para as consequências deste fenómeno com “potencial centrifugador”, sobretudo quando atinge cargos de topo. Representa não só uma ameaça às próprias instituições, mas também à democracia em si: aumenta o desinteresse pela política, o que alimenta a abstenção e afasta os melhores do serviço público. É ainda um argumento para a fuga e a evasão, quando a economia paralela já representa mais de um terço do total.

O professor de Ética na Administração Pública, do ISCSP/Universidade de Lisboa, defende ainda um compromisso de regime, aceite por todos os partidos, uma espécie de guião de conduta para políticos envolvidos em casos de corrupção, que defina quando devem colocar o cargo à disposição.

Nesta entrevista ao Dúvidas Públicas, António João Maia explica ainda que é utópico falar em corrupção zero, numa alusão ao Chega, comenta a legislação sobre o lobbying e explica o que falta nos canais de denúncia.


O fenómeno da corrupção está a crescer em Portugal?

Essa é uma questão que muitas vezes os meus alunos me colocam: se hoje há mais corrupção em Portugal do que havia, por exemplo, há 50 anos. Não sei e provavelmente ninguém sabe. O que há hoje é mais notícias de corrupção, de suspeitas, e os últimos dias têm sido férteis. Não vou comentar nenhum caso em concreto. Não posso, não devo, não conheço.

Desde logo, estamos a falar de um fenómeno que é tendencialmente oculto. Os casos que se sabem são apenas uma parte do todo e, dessa parte, apenas alguns são mediatizados, designadamente quando envolvem figuras da vida política e de destaque na vida social.

Haver mais notícias de corrupção é bom e mau. Bom porque, se os problemas existem, ao menos que a sociedade os conheça. É mau porque o problema existe, sempre existiu. Há 50 anos também existia, mas o regime estava ainda a sair de uma lógica de grande controlo, por exemplo, sobre a comunicação social, muitos casos ficariam logo à partida abafados. O conhecimento do problema a partir destes casos é importante, na perspetiva de alertar consciências e as instituições, para se precaverem.

Não me lembro de uma outra época com tantas figuras públicas envolvidas em processos judiciais: José Sócrates, ex primeiro ministro, foi acusado de corrupção, temos um antigo ministro da economia, Manuel Pinho, um antigo juiz, Rui Rangel, Ricardo Salgado, que já foi um dos maiores banqueiros do país, Armando Pereira da Altice ou Luís Filipe Vieira no mundo do futebol, só para dar alguns exemplos. Estamos perante um fenómeno sistémico?

Não sei se há dados que o permitam dizer. Será uma coincidência, mas de facto tem havido um conjunto de situações graves. Muitas estão em investigação, é preciso que haja, no final, provas, porque há um princípio fundamental - a presunção de inocência.

Se se demonstrar que são verídicos, são situações particularmente graves ao nível da gestão de entidades, organizações, que devem ser respeitadas, devem ser credíveis. Todos estes sinais desacreditam as instituições aos olhos dos cidadãos. Se não tivermos aqui capacidade para reagir, numa perspetiva de encontrar soluções que melhorem a prevenção, as instituições podem ficar muito, muito fragilizadas.

Temos isso estudado aqui no Observatório, quando a fraude é muito significativa e, sobretudo, quando é praticada ao nível da gestão de topo das organizações, pode inclusivamente levar à destruição da instituição.

"Portugal é um país de corruptos, sobretudo a função política, a Justiça não é capaz de controlar, atuar devidamente sobre o problema, e vai piorar no futuro"

Ao ponto de poder colocar em causa o regime democrático, por exemplo?

A nível político, sim. Se tivermos uma desconfiança generalizada e persistente sobre a capacidade e as funções de nível político, podemos ter aqui uma espécie de cisão, entre as estruturas políticas e os cidadãos.

Temos tido, como sabemos, uma tendência de crescimento das taxas de abstenção nos actos eleitorais e até que ponto é que, pelo menos alguma dessa motivação não está associada a estas notícias persistentes de corrupção ou de sinais de corrupção na política?

Até o facto de, por exemplo, nesta altura os dois maiores partidos estarem com problemas sérios, não passa também a ideia para as pessoas de que, afinal de contas, são todos iguais e eventualmente alguém pode tirar lucros dessa ideia?

Essa perceção já de certa forma existe. Aliás, vai ser publicado no final do mês o Índice de Perceção da Corrupção e da Transparência Internacional, eles fazem pequenos inquéritos e os portugueses invariavelmente têm revelado esse traço. Portugal é um país de corruptos, sobretudo a função política, que a Justiça não é capaz de controlar, atuar devidamente sobre o problema, e que vai piorar no futuro.

Isso pode ter vários efeitos, entre eles, e esse sim prejudica-nos bastante como sociedade, as pessoas de qualidade, muito competentes em termos de conhecimentos para exercer funções políticas, se calhar já preferem não ir por este caminho, em que facilmente uma pessoa é objecto de uma denúncia.

Está a pensar no Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, que se recusa a ser candidato a deputado, por exemplo?

Estou a pensar em muitas pessoas, não especificamente nesse nome.

A maioria das pessoas, e os estudos também revelam isto, quando questionadas dizem que as pessoas são tendencialmente corruptas, a maioria não é. Ninguém é perfeito, cada vez me convenço mais da veracidade desta afirmação. Mas daí até dizermos que todos somos tendencialmente menos integros, também não é verdade.

Quem é que favorece esta ideia generalizada de que Portugal é um país de corruptos, sobretudo na política? Há interesses políticos ou económicos? Ou em atos eleitorais, quem sai a ganhar?

As instituições da Justiça, o Ministério Público e a própria Polícia de Investigação Criminal não inventam os casos, eles são denunciados e têm de os tratar da mesma maneira dentro da lei.

Se calhar há aqui uma coincidência de um conjunto de casos que estão agora em fases de desenvolvimento, uns de investigação, outros mais na fase de julgamento que, por coincidência, na agenda, caem aqui neste calendário político.

Aproveitamentos? Provavelmente há.

"Enquanto a questão subsistir na praça pública e as pessoas continuarem vinculadas às instituições, tudo o que se diz e faz, indiretamente, está a beliscar essa relação de confiança que é tão importante junto dos cidadãos".

Temos um partido em que uma das principais bandeiras é a corrupção. Não me parece que possa ser por acaso.

É um contexto propício a esse tipos de mensagens. Questionamo-nos, Portugal é só corrupção? Era bom que fosse, mas não é. Nós temos problemas, muitos associados à corrupção e se controlarmos melhor a corrupção, outros acabam também por ser menos expressivos.

A corrupção é um tema que vende muito bem.

Temos aqui casos recentes que começam agora a ser investigados, mas também, por exemplo, o processo Operação Marquês, que já leva mais de dez anos. A justiça em Portugal é muito lenta?

procedimentos próprios e é o decurso desses procedimentos que depois se traduz neste alongar de tempo. Tem de cumprir estes procedimentos mas a própria noção associada à justiça tende a perder-se. Quando falamos de intervalos de décadas entre os factos, a denuncia, a investigação, os recursos, toda a fase procedimental, quando se chega à fase do julgamento percorreu-se um tempo tão longo que parece estranho para as próprias pessoas envolvidas.

O cidadão depois verbaliza que a Justiça parece não ser capaz de tratar destes casos da mesma maneira que trata outros, porque noutro tipo de crimes os procedimentos têm um tempo diferente. O procedimento em si mesmo é igual, não há é tantos recursos e tudo isso paga-se em tempo.

Não estou a pôr em causa o direito à defesa, obviamente que é fundamental. O problema é que isto tem custos.

Tudo isto significa de algum modo que a prevenção está a falhar?

A prevenção pode ser sempre mais eficaz e os relatórios do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção), publicados há duas semanas, evidenciam isso.

O país tem adotado medidas normativas, até por via das convenções que se tem vinculado em termos da Europa, mas depois tem-se verificado alguma dificuldade na concretização efetiva, no acompanhamento, na execução no terreno dessas medidas. É uma área que pode ser melhorada, com um envolvimento maior das instituições, e há instituições de controlo que devem fazer o acompanhamento. É claramente uma área que está sempre sobre a mesa.

A propósito do último caso mais mediatizado, da Madeira, queríamos a sua opinião, não do ponto de vista legal, mas do ponto de vista ético. Miguel Albuquerque devia demitir-se a partir do momento em que foi constituído arguido? Tinha condições para se manter no cargo?

As instituições devem ser credíveis e devem reforçar a credibilidade junto dos cidadãos. Todas. As políticas, por maioria de razão.

Este tipo de sinais prejudicam as instituições. Há aqui uma espécie de dilema: a presunção da inocência, que deve ser respeitada , é esse o argumento que em regra é utilizado; agora, enquanto a questão subsistir na praça pública e as pessoas continuarem vinculadas às instituições, tudo o que se diz e faz, indiretamente, está a beliscar essa relação de confiança que é tão importante junto dos cidadãos, por parte das instituições.

Mas por princípio, e é uma questão genérica, quem é arguido, tendo um alto cargo na administração pública, devia abandoná-lo?

Os anglo saxónicos têm essa matriz. Sempre que há uma suspeição, afastam-se, para não afetar a instituição. Isto é um princípio que me parece importante e necessário. Em Portugal também temos exemplos destes, mas alguns suspeitos têm preferido o argumento da presunção da inocência. ele é válido, deve ser respeitado. A questão é que, por via desta persistência nas funções, podemos ter o tal efeito de beliscar instituições.

Também se argumenta que é fácil haver uma denúncia, qualquer um de nós pode ser objeto de uma denúncia.

Ao demitir-se, por saber que estava envolvido num determinado processo onde ainda nem sequer foi constituído arguido, António Costa, o Primeiro-Ministro, não colocou a fasquia de tal modo elevada que depois, em situações como a de Miguel Albuquerque, não restam muitas saídas?

Foi uma opção. Foi assumido um outro princípio, o princípio de salvaguardar a instituição que se está a servir.

Temos aqui dois exemplos recentes e opções distintas. Elas são ambas válidas, percetíveis. Umas e outras podem ter impactos diferentes nesta relação de credibilidade, de confiança entre as instituições e a sociedade. Esse parece-me um valor muito importante, a preservar e a reforçar.

Não devia de haver aqui uma conduta política aceite por todos os partidos, não era mais honesto para com os cidadãos? Por exemplo, Duarte Cordeiro, já aqui referido, recusa ser candidato a deputado por ter sido envolvido na operação Influencer. Não devia ser uma regra, respeitada por todos?

Uma espécie de código de conduta. Faria sentido.

Uma das recomendações (do GRECO) é precisamente essa, que existam princípios, guidelines de conduta, que sejam respeitados. Faria sentido pensar numa espécie de compromisso de regime, relativamente a um conjunto de princípios quase fundamentais a ser respeitados, relativamente aos requesitos éticos, aos deveres de conduta. Essa é uma das componentes a melhorar.

Em janeiro de 2023, depois de uma sucessão de casos no Governo, António Costa anunciou um questionário obrigatório para futuros governantes, com 36 perguntas. Acredita no efeito desta medida ou de medidas deste tipo?

Se forem concretizadas devidamente, porque é muito fácil fazer um código de ética, um código de conduta. Não digo que seja o caso, mas isto acontece nas organizações públicas com as quais tenho trabalhado, quando vamos falar com os colaboradores, não conhecem os documentos, ou seja, foi elaborado para apresentar mas depois não passa para o terreno.

Ou seja, não tem efeito prático.

E esse é o problema. Ter um código de ética, um questionário, o que seja, é o primeiro passo, mas não se esgota aí. É preciso envolver as pessoas, é preciso que haja cumprimento e efeitos relativamente ao incumprimento - não apenas efeitos penais, isso será o mais grave, mas efeitos, por exemplo, em termos disciplinares.

Estes últimos governos foram os primeiros que criaram códigos de conduta, em 2016, uma medida que me parece muito, muito adequada. É preciso cumpri-lo e que haja consequências quando não acontece.

Que avaliação é que faz dessas medidas que foram implementadas pelo governo?

Temos códigos de conduta para o governo, para os parlamentares, o primeiro passo está aqui, o conteúdo dos documentos é potencialmente bom. Agora, têm de passar para o terreno, os destinatários têm de os conhecer e de os pôr em prática, porque senão ficam desacreditados logo à partida.

"Faria sentido pensar numa espécie de compromisso de regime, relativamente a um conjunto de princípios quase fundamentais a ser respeitados, relativamente aos requisitos éticos, aos deveres de conduta."

O cumprimento também depende da fiscalização. Como é que está o país nesta matéria?

Tem havido algum esforço na procura de recursos, humanos e tecnológicos. As estruturas que estão a ser criadas pelo Mecanismo Nacional Anticorrupção serão fundamentais para podermos ter um acompanhamento mais próximo das entidades, para se conhecer o conteúdo desses documentos e se é concordante com aquilo que deve ser e, por outro lado, como é que estão a ser operacionalizados dentro das organizações.

Dizem-me às vezes: será que é um código de conduta que vai resolver os problemas? Por si só não. Todos os instrumentos que existem, somados, não garantem o risco zero, o risco existirá sempre. Desde logo porque podemos ter pessoas menos íntegras em qualquer lado, em qualquer função. Esta é que é a porta de entrada que depois leva aos casos que vamos conhecendo e que agora estão na praça pública.

Falou há pouco do Greco, que no último relatório apontou sinais positivos: foi criada a Estratégia Nacional contra a Corrupção, um Mecanismo Anticorrupção, a Entidade para a Transparência, o Código de Conduta. Mas o GREGO também diz que parte da estratégia não está a funcionar. Por exemplo, a entidade para a transparência criada em 2019, em julho do ano passado não tinha ainda água nem luz . O que falta, vontade política?

É fundamental haver vontade política quando se fala em questões de ética, de integridade e de corrupção.

As medidas existem, como referiu, por via de convenções, a que Portugal se tem vinculado, nomeadamente no quadro europeu e da OCDE. As entidades são obrigadas a produzir códigos de ética, planos de prevenção de riscos, canais de denúncia. É preciso passar isso para o terreno, operacionalizar, dar eficácia a essas medidas.

O exemplo que dá é estranho. Não sabemos o motivo, mas os cidadãos podem questionar se haverá vontade política. Sem vontade política, dificilmente teremos outras coisas.

Se não há vontade política, outra alternativa é que haja incompetência, será ainda um retrato pior do país que temos.

A incompetência é o tal risco de que falava há pouco. A corrupção assim, com esta dinâmica a que temos assistido nos últimos anos, acaba por ser uma força com potencial centrifugador. As pessoas competentes, provavelmente, não se metem nisto. O risco de termos cada vez mais lideranças políticas de menor qualidade não está afastado. Aí sim, temos um problema que pode ser muito complicado no futuro. Esperemos que não.

Outro exemplo também apontado pelo GRECO é o lobby, cujo diploma foi adiado com a queda do governo. Considera importante regulamentar esta área?

É necessário. Todas as recomendações e estudos conhecidos apontam nesse sentido.

Portugal tem sido, por várias vezes, recomendado a adotar, clarificar, aprofundar a legislação no âmbito do lobbyng. É importante que haja mais transparência, mais clarificação na questão dos conflitos de interesses, que haja uma divulgação das agendas das funções políticas mais elevadas em termos administrativos, onde se tomam as grandes decisões sobre os grandes contratos do Estado, porque estamos a falar dos interesses dos cidadãos. Somos nós que pagamos tudo isto, transparência aqui é fundamental.

Na maior parte dos casos, os contratos correm como é suposto. Agora, cria-se um espaço para facilitar situações dessa natureza, sem dúvida nenhuma. Quando surgem este tipo de suspeições na praça pública, em que se argumenta a presunção da inocência, se tudo estivesse planificado, tínhamos logo à partida um conjunto de sinais que podiam facilmente ser escrutinados.

"A corrupção assim acaba por ser uma força com potencial centrifugador. As pessoas competentes, provavelmente, não se metem nisto. O risco de termos cada vez mais lideranças políticas de menor qualidade não está afastado."

As sondagens indicam que a corrupção é um tema que preocupa a maioria dos portugueses, 72% numa recente sondagem do ICS para o Expresso. Ainda assim, sempre se falou muito no país do fator C. Portugal tem a cultura do país das cunhas, vivemos com isso?

Se calhar já não de forma tão evidente, mas ainda temos. O fator C, o fator cunha, não leva necessariamente a situações de gravidade. Há uma certa dinâmica, até cultural, o jeitinho, como dizem no Brasil. Tenho um procedimento lá na tua instituição, vê lá se anda mais depressa, isto não tem necessariamente que levar à corrupção, mas este tipo de dinâmica pode ser propício a coisas mais graves.

Os códigos de conduta nas instituições devem ser trabalhados também nesta perspetiva de alertar as pessoas, cada vez mais, para alguma coisa de inadequado, ainda que seja só o jeitinho. Não se muda o mundo de um dia para o outro, mas parece haver uma relação muito estreita entre essa cultura do jeitinho e casos muito graves de corrupção que podem ter começado pelo pequeno jeitinho.

Segundo a Faculdade de Economia da Universidade do Porto, a economia paralela representava em 2022, quase 35% do PIB. Estamos a falar de 82 mil milhões de euros, às contas deste ano, são mais de cinco orçamentos para a saúde. O que justifica tanto dinheiro a circular fora do sistema?

Esse estudo, coordenado pela antigo presidente do Observatório (OBEGEF), Óscar Afonso, tem apontado para uma tendência de crescimento do valor da economia não registada, que nesta altura equivalerá mais ou menos a 34%.

Há vários fatores, um dos que surge à cabeça é precisamente as elevadas taxas de impostos sobre as empresas, pode compensar correr o risco para escapar . Também dizer que nem toda a economia não registada se traduz em crimes, é o caso da economia ou produção familiar, mas 34% da economia não estará toda aqui.

Como se combate este fenómeno?

Há medidas que podem ser tomadas: a redução da carga fiscal, mais fiscalização e controlo sobre a actividade das empresas e não só, apoios à formação e à sensibilização, mais transparência na gestão pública, combate à fraude empresarial e a educação cívica para a literacia financeira e fiscal.

Muitos cidadãos ainda não têm noção, como seria suposto, da razão porque pagam impostos. Estas notícias sobre corrupção aumentam a evasão. Voltamos então ao início, quando dizía que a corrupção não é um problema do país, mas que tem uma série de impactos, este é um deles.

É possível trazer esse dinheiro para a economia dita formal? Porque, por exemplo, o líder do Chega já mencionou que vai pagar parte das promessas eleitorais para as legislativas com este dinheiro. Acha isso possível?

O dinheiro continua na economia, não se traduz é em impostos e taxas que depois alimenta o Orçamento de Estado, que deve ser gerido em função dos interesses dos cidadãos.

Há o estudo dos 18 mil milhões (custo anual da corrupção em Portugal), da União Europeia de 2018 ("The Costs of Corruption Across the European Union", do "Grupo dos Verdes / Aliança Livre), que correspondia à época mais ou menos ao orçamento do Ministério da Saúde. Um euro que seja já é grave, 18 mil milhões é inquestionavelmente grave.

Agora, um discurso que aponte para corrupção zero é um discurso que não é realista. O que nós gostaríamos era ter uma sociedade perfeita, mas isso não existe. Não há sociedades perfeitas, o mais provável é que tenhamos sempre situações de irregularidade, incumprimento, pessoas menos íntegras, conflitos de interesses. Acreditar que é possível ter corrupção zero e os 18 mil milhões, ou estes 82 mil milhões, todos integralmente registados na economia, é uma ideia utópica.

Medidas como os vistos gold prejudicam a transparência? Já foi alvo de várias alterações, mas como está, ainda é prejudicial?

Tem algumas zonas que interessava serem mais clarificadas. Não posso dizer se devem ser liminarmente afastados, mas devem ser objeto de uma avaliação e se calhar há algumas dimensões que importava clarificar. Pode ter efeitos perversos até na comparação entre um cidadão português e um não português, que com vistos gold tem acesso a um conjunto de benefícios.

Vamos ter em breve um novo governo. Independentemente das medidas já criadas contra a corrupção, pedia-lhe duas ou três medidas que o próximo executivo teria realmente de aplicar.

A questão das agendas serem públicas, a regulamentação do lobby, estender o regime do controlo, prevenção dos conflitos de interesses à função política (uma das recomendações do GRECO). Portugal tem leis, está a falhar a avaliação das medidas. É preciso que se sinta que quem está nessas funções cumpre esses requisitos.

O estatuto do denunciante, que entrou em vigor em junho de 2022, obriga as entidades com mais de 50 trabalhadores a terem canais de denúncia. Sabe se a aplicação está a ser generalizada, há dados sobre as denúncias reportadas?

Creio que há alguns dados, eles têm de ser comunicados, nos termos da lei, à Assembleia da República. Já houve notícias de algumas situações, estou a lembrar-me da Câmara Municipal de Lisboa. As instituições parecem estar a cumprir.

O último projeto do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, do final de 2023, é precisamente sobre canais de denúncia. Convidámos 11 especialistas que já trabalhavam com canais de denuncia, nos setores público e privado, a partilharem os cuidados que devem existir na organização desta ferramenta, muito importante para desocultar o problema da fraude e da corrupção.

Quem pratica estes atos terá todo o cuidado para ocultar os factos. O canal de denúncias tem que ter credibilidade, tem que oferecer um conjunto de garantias, nomeadamente a presunção de inocência, o poder do denunciante optar pelo anonimato. Sem a possibilidade de anonimato, se calhar muitas denuncias não aconteciam.

As pessoas nem sempre escolhem o anonimato por receio de represálias, é também porque não querem ter chatices no futuro, não querem ser chamadas para ir a tribunal, querem apenas entregar os dados.

"Um discurso que aponte para corrupção zero é um discurso que não é realista".

Em Portugal está garantida a proteção do denunciante?

Nos termos da lei está. Na prática, o futuro dirá. Esse acompanhamento é uma das tarefas que está associada ao Mecanismo nacional Anticorrupção, que ainda se está a estruturar, mas é um dos âmbitos que irá ser avaliado e é muito importante. Mas ainda não há a estrutura que deve existir para esse efeito.

Mas já há denúncias, já há um caminho que está a ser feito, é preciso agora que os canais de denúncia ganhem a sua própria estabilidade, credibilidade e inspirem confiança nas organizações, porque só assim é que depois há as denúncias.

Ainda há duas questões sobre madeira, em que peço respostas muito rápidas. Questionado sobre o caso, o Presidente da República diz que a justiça não tem calendário. Não estranha a coincidência entre o ambiente pré-eleitoral e as investigações do Ministério Público no caso da Madeira?

A Justiça tem os seus tempos, a política tem as suas dinâmicas e os seus tempos. Por coincidência, temos um conjunto de casos na agenda, no timing eleitoral que temos.

As instâncias da justiça não inventam os casos, as denúncias chegam e têm que as tratar, é isso que seguramente fazem. O que vejo aqui é uma coincidência, não consigo perceber uma espécie de agenda de alguns operadores do sistema, nomeadamente na área da Justiça. Não acredito nisso.

Ainda no caso da Madeira, alguns jornalistas terão sido avisados de véspera, viajaram para a região. A violação de segredos de justiça é inevitável, nomeadamente pelo facto da pena ser leve?

É um problema, não deve acontecer. Há princípios que têm que ser respeitados. A lei assim o determina e a própria lógica de organização do sistema. Às vezes há interesses que se sobrepõem, não sei se foi o caso. Parece que algumas pessoas da comunicação social já saberiam antes das operações que elas iam acontecer, fico entristecido quando assim acontece, não nos enriquece nada como sociedade que o sistema funcione assim.

A terminar este Dúvidas Públicas, falta apenas pedir-lhe que revele a sua escolha musical, não necessariamente a música da sua vida, mas um tema que o tenha marcado. Quer explicar-nos como foi a escolha e porquê?

Gosto muito do Rui Veloso e este tema sempre me tocou,. Já tem quase 30 anos, é do CD Avenidas e é a música "Do Meu Vagar", que remete para um estilo de vida mais tranquilo, mais humanizado.

Hoje a vida é muito mais corrida, às vezes dou por mim a pensar que já não há presente, estamos aqui já a pensar no que vamos fazer à tarde, quando chegarmos lá estamos a pensar como vai ser a noite. Parece que já só há futuro. É uma correria intensa e isto tem relação com o que estamos aqui a falar, porque falar de ética é falar de valores que emergem da relação entre valores. Isto é tão voraz que já começa a ser difícil às pessoas perceberem quais são os valores referenciais em que vivem. Parece que vale tudo.

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