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D. José Ornelas e a Igreja no Estado Novo: "Foi amordaçada, mas também não se resignou”

15 abr, 2024 - 05:30 • Lusa com Redação

Em entrevista à agência Lusa, o presidente da CEP diz que a Igreja se "anichou dentro do regime” porque “era sobrevivente de toda a confusão política" do século XIX e da República, tempos "muito violentos” para a instituição. O regime parecia ser uma espécie de "refúgio", o que se revelou um "mal-entendido".

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O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, olha retrospetivamente para a situação da Igreja durante o Estado Novo e não tem dúvidas: “Foi uma Igreja amordaçada, mas também uma Igreja que não se resignou”.

Para o também bispo de Leiria-Fátima, no início “a Igreja também se anichou dentro do regime”, desde logo porque “era sobrevivente de toda a confusão política de ainda antes, no século XIX, e depois no século XX, com a República, que foram [tempos] muito violentos” para a instituição.

“E o regime dava assim uma espécie de ninho, de refúgio. E esse foi o mal-entendido, porque depois as coisas vieram a complicar-se e não foi a Igreja que saiu vitoriosa desse confronto”, diz José Ornelas, em entrevista à agência Lusa, destacando que, depois, sobreveio uma “época de luz, de luta, de descoberta de novas coisas”.

Desde logo, “o Concílio Vaticano II [iniciado no pontificado do Papa João XXIII, em 11 de outubro de 1962, e terminado em 08 de dezembro de 1965, já com Paulo VI] aconteceu como algo de tremendamente revolucionário dentro da Igreja”.

“E esse espírito chegou também a Portugal” através dos padres que foram estudar para o exterior, “alguns dos quais depois se tornaram bispos – [como] o bispo do Porto [António Ferreira Gomes], como emblemático de toda esta situação, como alguém que nunca se vergou aos ditames do regime e que, por isso mesmo, foi exilado”, recorda.

D. José Ornelas sublinha, ainda, “a atitude do Papa Paulo VI, que conhecia bem a situação portuguesa desde quando era Secretário de Estado" do Vaticano relativamente a um "regime que estava fechado em si próprio e que não escutava a voz de ninguém, nem dos seus parceiros políticos e militares, que eram quem permitia a guerra em África, que o condenavam a nível diplomático, mas depois tornavam possível também a aventura militar em que Portugal estava metido”.

“O Papa conhecia isto e, por exemplo, muito significativo, nunca nomeou um substituto para o bispo residencial para o Porto em lugar de D. António Ferreira Gomes. Foram sempre administradores, até que ele pôde voltar depois da morte de Salazar”, lembra.

O prelado reforça o papel de Paulo VI no alerta para a situação vivida em Portugal com a sua visita a Fátima, em 1967, para o cinquentenário das aparições, e que escancarou o ambiente de tensão entre a Igreja Católica e o Governo.

“Foi [uma visita] tensa, também no encontro dos dois [Paulo VI e Salazar] em Monte Real, porque o Papa não quis ir a Lisboa, (…) e foi um momento muito claro, não só o Papa não ter ido a Lisboa, receber Salazar na Base de Monte Real, vir diretamente a Fátima e voltar para Roma, mas também logo em seguida [01 de julho de 1970], receber os líderes dos movimentos [africanos] que lutavam pela Independência”, sublinha José Ornelas, admitindo que “isto foi algo que, para os próprios crentes portugueses, foi completamente difícil de entender”.

Afinal, vivia-se o período em que a narrativa oficial era a de que os militares portugueses estavam em África “a defender a fé e o Império”.

Para o jovem José Ornelas, seminarista na altura, quando o 25 de Abril chegou, a questão da necessidade de transição para a democracia “estava completamente resolvida”.

“Tinha educadores, algum deles, a maioria, eram italianos que não concordavam claramente com o regime. Mas foram muito inteligentes e pedagogos. Nunca deram propriamente um sinal de que eles queriam fazer a revolução. Ouvi deles: vocês é que têm de a fazer, nós queremos fazer-vos perceber o que é realmente uma democracia, o que é um país a funcionar”, relembra o presidente da CEP.

No seminário de Coimbra, este atual bispo madeirense dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) - congregação de que já foi superior-geral - encontrou “padres que falavam muito claramente” da situação.

“Aí começou verdadeiramente tudo. Nessa altura, o meu irmão tinha ido combater para a Guiné. Lembro-me que eu tinha escrito um aerograma a dizer-lhe que estava muito orgulhoso de ter um irmão a combater pela pátria. E ele escreveu no aerograma seguinte: ‘Pensava que já tinhas crescido’. Só isto”, recorda, admitindo que este foi mais um “clique” que o despertou para a realidade.

Posteriormente, em Lisboa, passou dois anos no então Instituto Superior de Estudos Teológicos, onde encontrou professores como Frei Bento Domingues, e onde conviveu com um oficial do Exército que ali ia estudar Teologia.

“Era um oficial que nos fazia fotocópias - na altura, era o stencil que funcionava, as fotocópias eram raras ainda e caras. Mas ele trazia-nos sempre do Exército e disse-nos claramente que pertencia ao Grupo de Informações e que estava no ISET precisamente para saber qual a temperatura que se vivia por ali. No fim de semana antes do 25 de Abril, ele disse-nos: ‘esta semana, ou há um banho de sangue ou isto muda’”.

E mudou mesmo, numa altura em que “tínhamos a noção de que o regime estava podre, estava a cair por si próprio”, acrescenta o presidente da CEP.

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