Pobreza energética

"Aqui anda tudo doente". Na ilha do Massa o frio obriga a fazer contas à vida

12 jan, 2024 - 17:40 • Miguel Marques Ribeiro

O Governo quer erradicar a pobreza energética até 2050. Um problema que afeta milhares de famílias que não conseguem aquecer a habitação, nem fazer obras de reparação que melhorem o conforto térmico.

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"Aqui anda tudo doente". Na ilha do Massa o frio obriga a fazer contas à vida
Uma casa com infiltrações. Proprietário não tem dinheiro para fazer obras. Foto: Miguel Marques Ribeiro/RR

“Isto são ilhas antigas, com quase 200 anos”, exclama Joaquina Monteiro.

Tem 91 anos, 88 dos quais vividos na ilha do Massa, um aglomerado de casas em pedra, de construção antiga, localizado na Rechousa, em Vila Nova de Gaia.

“A gente antes nem casa-de-banho tinha”, recorda. Fez obras profundas há mais de 50 anos e só nessa altura acrescentou água e saneamento.

Uma pequena revolução que não resolveu outros problemas, nomeadamente a falta de isolamento de portas e janelas. “Para não estar a gastar muita luz ligo o aquecedor às cinco horas. Depois já está o quarto quentinho… Meto-me na cama e pronto".

A descida da temperatura dos últimos dias não ajuda e o frio tem apertado um pouco mais. "É uma casa de pobres”, resume.

"Bolsas de pobreza energética" são problema nas grandes cidades

São situações como a de Joaquina Monteiro que o Estado que erradicar até 2050. Pelo menos, é o que está previsto na Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética. O objetivo é diminuir para 1% o número de situações em que as pessoas não conseguem manter uma temperatura adequada na habitação.

Em 2021, de acordo com um estudo publicado em dezembro pela Universidade Nova-SBE, "quase 2 em cada 10 pessoas não conseguem manter a casa aquecida e 3 em cada 10 vivem em casas com necessidade de reparação”. Há portanto um longo caminho a percorrer para resolver este conjunto de dificuldades que são sentidas sobretudo pelos "mais idosos, os menos qualificados e as pessoas desempregadas”.

Para não estar a gastar muita luz ligo o aquecedor às cinco horas.

O problema é mais grave nas regiões autónomas, mas no continente concentra-se mais na região norte. E, embora em cidades onde parque habitacional é mais recente, como Vila Nova de Gaia, os índices médios sejam tendencialmente mais baixos, é comum a existência de "bolsas de pobreza energética”, refere o estudo da Nova-SBE.

Telhado a cair e desumidificadores sempre a trabalhar

A ilha do Massa, onde vive uma dezena de pessoas, assenta como uma luva neste diagnóstico. Entra-se por um portão comum, à face da rua da Serpente. De um lado e do outro as casas encavalitam-se, cada uma com a sua forma e feitio. A habitação de Joaquina Monteiro é logo das primeiras. Em frente à nonagenária reside João Silva, de 40 anos, com a companheira e dois enteados.

Os quinze anos que passou como emigrante na Suíça ensinaram-lhe que em Portugal existe, por regra, um maior desconforto térmico nas habitações, provocado pelo frio.

“O frio lá é seco. A taxa de humidade é de 30%. Aqui é 80, 90. É normal que o frio não seja igual. Ainda ontem estavam 4 graus à noite, mas a sensação térmica era de 1 grau. É muito frio”, garante.

O pior mesmo são as despesas que isso acarreta, que chegam a atingir os “200€, para termos um mínimo de conforto. Você acha normal andar de kispo em casa?”, pergunta João, enquanto aponta as manchas de humidade no interior da habitação. Com "o telhado a cair", a entrada de água é inevitável. “Se estivesse agora a chover você via [a água] a escorrer pela parede. São 20 litros que o desumidificador recolhe à noite”, garante.

Casa fria no inverno e quente no verão

Com o frio e a humidade a aumentarem, crescem também os problemas de saúde. “Isto causa doenças respiratórias. Eu tenho sinusite, o garoto tem bronquite asmática. Veja lá o que isto não agrava a saúde”, lamenta João Silva. "Aqui anda tudo doente".

Uma consequência das fracas condições da habitação que é também sentido por Maria Celeste Brandão. “Por tudo e por nada tenho este problema de tosse, que é crónica. Se me constipar um bocadinho fico logo mais atacada, mas o que é que podemos fazer?”, questiona. "Temos de aguentar…”

A casa de Maria Celeste fica virada para a rua e é precisamente nessa zona, onde está localizado o quarto, que o desconforto térmico se faz sentir. “De inverno é frio, mas de verão é um bocado quente”, sobretudo à noite. “A gente está na cama e até tem que tirar a roupa para trás, que faz calor”.

“A construção não está adequada para o frio e no verão faz muito calor", explica João Silva. "Como é uma casa antiga, as paredes são muito grossas. Não é como o tijolo. Então ela retém o calor lá dentro e no inverno é o contrário. É muito frio”.

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Eu tenho sinusite, o garoto tem bronquite asmática. Veja lá o que isto não agrava a saúde.

Investir em obras para resolver a situação está, para já, fora de hipótese. "São janelas a mil euros, quem é que aguenta com isso? Não tenho possibilidades", admite João Silva.

Dificuldades que o erário público quer ajudar a resolver através da Estratégia Nacional de Longo Prazo para Combate à Pobreza Energética, cuja concretização fica para já suspensa, pelo menos até à próxima legislatura.

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