Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Entrevista Renascença/Ecclesia

“Sinodalidade e clericalismo não combinam”, diz presidente do Laicado Brasileiro

29 out, 2023 - 09:07 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

A presidente do Conselho Nacional do Laicado Brasileiro participou nos trabalhos do Sínodo e considera que depois da primeira parte dos trabalhos "não dá para pensar mais numa Igreja clericalista". Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Sónia Gomes de Oliveira defende que "rompe-se o clericalismo com formação"

A+ / A-

A presidente do Conselho Nacional do Laicado Brasileiro, Sónia Gomes de Oliveira, defende, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, que a sinodalidade é mesmo “o primeiro passo para se vencer o clericalismo".

No final da primeira sessão do Sínodo que decorreu no Vaticano, durante todo o mês de outubro, a responsável sublinha a importância de o Papa Francisco criticar em diversos momentos o clericalismo e o carreirismo na Igreja.

Nesta entrevista a partir do Vaticano, onde participou nos trabalhos primeira sessão da Assembleia Sinodal do Sínodo dos Bispos, Sónia Gomes de Oliveira, lembra que numa Igreja sinodal “todos têm voz”.

"A partir do Sínodo, não dá para pensar mais numa Igreja clericalista", sentencia.

Noutro plano, a responsável afirma que os trabalhos deram visibilidade ao papel da mulher na Igreja. "Isso é sinal de uma grande esperança”, diz, argumentando. “Muitas vezes, nós somos a maioria, mas somos invisíveis. Ao trazer esse tema aqui para o Sínodo e ser debatido, a gente já começa sentindo essa esperança muito grande”, sublinha.

Para a presidente do Conselho Nacional do Laicado Brasileiro, a primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos que agora terminou em Roma reforçou a importância de termos “uma Igreja para todos”.

“Jesus não fez distinção de raça, de cor, de pessoas, de credo e nem de orientação. Então, a Igreja que a gente vê apontada hoje pelo Papa Francisco como essa igreja sinodal e que ele tenta nos encantar, nos animar para vivenciar, é essa Igreja onde há espaço para todos, todos, todos”, reforça.

Para Sónia Gomes Oliveira “ouvir a voz do Espírito foi o ponto central da primeira sessão do Sínodo" e isso permitiu aliviar “a tensão que existiu e existiu” durante os trabalhos.


Viveu esta experiência inédita de um Sínodo de mesas-redondas, em que foi possível debater e conversar, todos ao mesmo nível, sobre os temas da sinodalidade, da comunhão e da participação. O que representou esta experiência para si?

Para mim, foi uma experiência, primeiro de gratuidade e depois uma experiência rica, porque eu venho de uma comunidade e parece que trouxe um pouco daquilo que vivemos nas pequenas comunidades. Porém, nas comunidades nós vivemos entre nós, leigos e leigas. Aqui foi um pouco diferenciado, porque estávamos numa mesa-redonda onde podíamos debater de igual por igual, com bispos, com cardeais. Saiu um pouco da rotina. Foi uma experiência de entender o meu batismo, porque pelo batismo somos todos iguais, pelo batismo nós podemos ser corresponsáveis e somos corresponsáveis na missão. Isso para mim foi uma experiência muito forte porque me traz muito esse olhar: pelo batismo eu sou igual e posso dialogar de igual por igual dentro desse processo.

Para a igreja na América Latina, no Caribe, esse caminho de escuta já vem na continuidade do que vem sendo feito há muitos anos nas assembleias eclesiais. Pergunto se é algo que pode inspirar outras comunidades católicas?

Com certeza, eu penso que agora esse processo veio e veio para ficar.

Na carta que foi apresentada, fala-se de uma semente e é uma semente que para nascer ela precisa ser gerada, cair no chão. Então acho que agora é o momento de lançar essa semente e todas as comunidades, aqueles que nos escutam nas nossas paróquias, nas nossas dioceses, devem assumir isso, porque é um processo bom, participativo, onde todos se sentem iguais.

"O Papa teve uma intervenção muito dura"

Como viu a participação alargada do laicado nesta Assembleia? Foram semanas em que leigos e leigas estiveram com o direito a voto e com o direito a palavra num debate muito, muito importante para a igreja. Pode ajudar outras pessoas a sentir-se mais corresponsáveis na missão do dia a dia?

Sim. No nosso caso, o do Brasil, quando a gente pega o relatório da fase continental do Brasil e que o Brasil apresentou, diz que a experiência sinodal tomou um corpo grande a partir do laicado. Porque os leigos assumiram o processo e eu penso que, ao vir para cá para esta experiência, nós saímos muito mais fortalecidos, porque somos a maioria na igreja e nós é que fazemos grande parte ou a maioria dos trabalhos na igreja e na sociedade.

Então, o grande desafio também para todos nós cristãos leigos e leigas é entender o nosso papel também na sociedade: um testemunho, uma comunhão, uma participação. A nossa missão não é no interior da igreja, é na sociedade. Penso que essa experiência também ajuda o laicado a entender a sua missão e a sua vocação na sociedade.

Esse é um dos temas do sínodo, mas muitas vezes parece que ficou para um segundo plano no debate da opinião pública:a questão da missão. O Sínodo tem esse objetivo missionário?

Sim, na verdade não ficou no segundo plano, ele veio, mas ele veio de uma forma muito transversal, porque não dá para a gente falar de comunhão, não dá para falar de uma participação se não se está com a missão no centro, no coração, porque a igreja existe para a missão, a missão vem primeiro, entendeu?

Na verdade, são formas transversais, mas o coração de todo esse processo é a missão, porque não dá para pensar uma igreja se não for ao serviço. O testemunho de Jesus Cristo, o testemunho do evangelho é por conta da missão.

"Não dá para pensar mais numa Igreja clericalista"

Vamos olhar para o que foi o caminho desde 2021. Houve dificuldades, houve tensões... As resistências que existiram antes do processo marcaram de alguma forma estes trabalhos sinodais?

Creio que sim, até porque muitos chegaram aqui com muito medo. A experiência que nós trouxemos e vivenciamos até para iniciar foi muito boa, porque nós começamos com o retiro, um retiro que nos ajudou a entrar dentro de nós mesmos e começar soltando, deixando para fora muito daquilo que nós tínhamos trazido dos medos lá de fora.

Vemos que, muitas vezes, criamos crises porque trazemos muito do mundo, daquilo que as vozes lá de fora apontam e causam ansiedade nesse processo. Ouvir a voz do Espírito, ouvir o que Ele quer dizer para a igreja nesse momento, ouvir a voz dos pobres, ouvir a voz do povo foi o ponto central. Acho que a tensão também existia porque nós vivemos com pessoas, com gente e não existe uma unanimidade. A Igreja é bonita e o espaço também é bonito justamente por isso: porque vivemos e nem todos pensamos de forma igual. Então, a tensão existiu, e penso que a experiência da convivência comum também favoreceu isso. Nós tínhamos sempre um tempo de rever, foi a metodologia usada: rever o nosso processo. Aí, acabávamos chegando não totalmente a um consenso, mas a um respeito às verdades.

O sínodo teve muito essa dimensão espiritual. Aliás, os jornalistas só poderiam entrar e acompanhar a parte reservada à oração. Pergunto: qual é o desafio de traduzir esta experiência quando tiver de falar dela a outras pessoas? Porque deve ser uma coisa muito pessoal e íntima para depois se explicar...

Sim, na verdade, o que nós que vivemos esta experiência percebemos foi que o método para trabalhar foi muito bom. Porém, não dá para dizer que esse método vai poder ser usado em todos os lugares, até porque nós temos outros modos que podem favorecer debates. Acho também que essa é uma das belezas que o Sínodo apresenta: existem vários métodos dentro da igreja que poderão ser utilizados no decorrer da nossa caminhada, inclusivamente nas nossas comunidades. Foi lembrado que na América Latina a gente usa muito o método "ver, julgar, agir". A Lectio Divina tem outros métodos e nós podemos apropriar-nos deles.

Se conseguirmos adaptar o métido às nossas realidades, será muito bom. Porém, é um método que requer muito tempo para voltar para dentro de você, para olhar e não sei se muitas vezes isso teria que ter um tempo muito largo, muito longo.

"O coração de todo esse processo é a missão"

Temos falado neste Sínodo, temos falado muito da escuta - dentro da sala sinodal também, como referiu -, mas dizia há pouco que a igreja precisa de escutar o grito do povo, principalmente dos pobres. Isto é um desafio particular e pergunto se é um desafio particular, sobretudo, para quem tem mais responsabilidade?

Sim. Creio que foi um dos maiores gritos que saiu daqui de dentro, porque todos viemos das escutas. Eu falo muito a partir do que vivenciei no Brasil: a escuta das comunidades; comunidades de periferia, mulheres, povos indígenas, população em situação de rua. Quando se fala nesse processo da escuta, não é só para nós leigos, é para toda a Igreja. Os ministros ordenados, muitas vezes, precisam também de se abrir a essa escuta. Iclusivamente, ouviu-se muito o termo "burocracia", algo que muitas vezes institucionaliza as nossas igrejas e impede que se ouça esse grito. Acho que isso foi muito forte também.

Essa é uma das mudanças mais visíveis, mais palpáveis, no imediato? Refiro-me a essa necessidade de uma nova relação no povo de Deus entre aqueles que ocupam o ministério de liderança - os ministros ordenados - e a forma como se relacionam com a comunidade no seu todo, nos processos de tomada de decisão, nesta escuta e até na gestão corrente do dia-a-dia da comunidade...

Creio que um dos pontos é pensar um pouco as estruturas das nossas paróquias, os conselhos pastorais, os conselhos que existem dentro das nossas dioceses. Foi muito debatida a possibilidade de ampliar o processo de participação, principalmente dos cristãos leigos e leigas, não só na participação, mas também na tomada de decisão, porque somos nós que estamos ali. Foi muito forte, nesse sentido, trazer esses elementos, os conselhos pastorais, os conselhos diocesanos, os conselhos paroquiais, que são espaços de tomada de decisão. E onde não existem é indicado que se possam criar. Onde já existem, que se possa rever se essa prática é fiel àquilo que nós temos discutido aqui.

O Papa teve uma intervenção muito dura, foi tornada pública. Uma intervenção em que se mostrava particularmente crítico do clericalismo, que é uma coisa que não é só dos ministros ordenados, é uma mentalidade eclesial, em que tudo que é processo de responsabilidade de tomada de decisão é delegado para outra pessoa ou é concentrado numa única pessoa.

"A nossa missão não é no interior da igreja, é na sociedade"

Esta ideia da corresponsabilidade, da participação, da sinodalidade é uma transformação radical da forma de conceber as comunidades?

Sim. A sinodalidade, se for assumida nas nossas comunidades, é o primeiro passo para se vencer o clericalismo. A sinodalidade não combina com o clericalismo, porque a sinodalidade é esse processo de comunhão entre todos, todas, ande todos têm voz, todos têm vez, têm participação. O clericalismo não: é uma pessoa só tomando a decisão.

Então, as duas coisas são muito ambíguas. Onde queremos sinodalidade, não dá para pensar no clericalismo, nem em clericalismo de leigos e nem em clericalismo de padres, bispos, diáconos, etc. É uma igreja sinodal e acredito que essa é a igreja de Jesus. A partir do Sínodo, não dá para pensar mais numa igreja clericalista.

Nas comunidades, eu quero crer, esse é um dos pontos com que nós precisamos romper. Romper com o clericalismo. E rompe-se o clericalismo com formação, tendo consciência do seu batismo, tendo consciência da nossa vocação, porque eu, como leiga, eu faço parte, sou igreja também. Esse é o grande desafio para nós trabalharmos nos nossos espaços.

Insiste-se muito que a Igreja é um espaço para “todos, todos, todos”, usando a expressão que o Papa deixou em Lisboa, durante a Jornada Mundial da Juventude. Uma Igreja sinodal para todos, todos, todos tem que ser uma Igreja aberta, pronta para acolher?

Sim, sim. Porque senão não estaríamos a falar em seguir Jesus Cristo. Jesus não fez distinção de raça, de cor, de pessoas, de credo e nem de orientação. Não fez. Então, a Igreja que a gente vê apontada hoje pelo Papa Francisco, essa Igreja sinodal é essa Igreja onde há espaço para todos, todos, todos.

Muitas pessoas têm tentado mudar essa expressão dizendo coisas que não devem, mas acredito que uma igreja com o seguimento petrino, que eu amo Jesus e sigo o caminho de uma igreja sinodal, a partir dos nossos bispos, dos nossos padres e que caminha com o Papa Francisco, é essa igreja que quer acolher a todos e todas.

"Rompe-se o clericalismo com formação"

Durante os encontros com os jornalistas na sala de imprensa da Santa Sé, vários dos participantes falaram do papel das mulheres, do seu sofrimento, mas também da necessidade de as envolver em processos de decisão, em lugares de liderança, que é um tema de que já falámos. Pergunto-lhe se esta Assembleia Sinodal deixa sinais de esperança em relação a essa maior participação e, sobretudo, na maior consciência na comunidade católica de que as mulheres têm, efetivamente, de estar nesses lugares de liderança e de tomada de decisão?

Dá um sinal de esperança. Ainda não é o encerramento do Sínodo, mas já demos um passo: trazer o assunto para o debate. Em todos os debates, o tema das mulheres foi abordado e eu creio que isso já traz um sinal de esperança muito grande.

Para mim, que sou mulher, que sou mulher de igreja, que sou mulher de comunidade, nós sofremos muito. Eu digo isso por experiência própria, porque, muitas vezes, estamos na comunidade, animamos a comunidade, vivenciamos toda a experiência, mas, na hora da tomada de decisão voc, nunca se é chamada. Nem lembrada.

Quando somos chamadas a participar num espaço como este, nestes debates todos, percebe-se que há bispos e cardeais que veem essa realidade, percebem que não se trata de uma reivindicação, mas de um reconhecimento. Muitas vezes ,nós somos a maioria, mas somos invisíveis. Ao trazer esse tema aqui para o Sínodo já se começa a sentir essa esperança muito grande.

Falo isso muito a partir do que Maria de Nazaré vivenciou, porque eu trago muito isso. Ela quando cantou o Magnificat já esperava e tinha uma expectativa nessa novidade que ia surgir. Acho que é o momento para nós mulheres também. Não podemos ficar paradas. A partir de agora devemos continuar esse processo, entendendo que se vence cada dia com a participação.

"Em todos os debates, o tema das mulheres foi abordado"

Lembrou que esta é só a primeira sessão, mas muitas pessoas esperavam desde Sínodo mudanças imediatas, muito significativas. Acredita que algumas pessoas vão ficar dececionadas?

Creio que sim, até porque foram feitas muitas cogitações, dizendo que ia acontecer isso, aquilo, aquilo e aqueloutro. Acho que muitas pessoas vão dececionar-se porque esta etapa foi mais uma etapa de formação, de conhecimento, de base, para entendermos o que será a próxima etapa, em outubro do ano que vem. Mas, ao mesmo tempo, desperta uma esperança - volto novamente a dizer - e aí eu falava de uma gestação. Nós temos 11 meses, 11 meses para poder gerar e fazer nascer uma novidade no nosso caminho.

Que convite é que quer deixar nesta fase de gestação, para aqueles que ainda não participaram, que não se sentiram chamados a participar no processo sinodal?

Creio que aqueles e aquelas que ainda não participaram, não tiveram oportunidades de conhecer. Vai sair um texto desse processo, que ajuda a entrar, a animar a comunidade, a encantar-se também com o processo e vivenciar isso na sua paróquia, no seu grupo, na sua diocese. Agora nós somos chamados a viver essa história na nossa Igreja e a Igreja de Jesus Cristo nos convoca para essa novidade. Geramos e agora vamos fazer nascer essa novidade na Igreja.

"Ouvir a voz do Espírito foi o ponto central da primeira sessão do Sínodo"

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+