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Bairro da Jamaica. A história (incompleta) de como uma casa nova tirou a 244 famílias o estigma do gueto

07 fev, 2024 - 07:00 • João Carlos Malta (texto) , Marta Pedreira Mixão , e Catarina Santos (vídeo e fotografia)

Durante quase 40 anos, o Seixal conviveu com um bairro ilegal no coração da cidade. Prédios que não eram mais do que esqueletos de betão armado, cujos alicerces eram feitos de pobreza, insalubridade e crime. Em 2018, o Jamaica começou a vir abaixo. Pouco mais de seis anos depois do início do realojamento de quase 800 pessoas, a Renascença foi perceber se a prometida mudança de vida se concretizou. Pode uma casa digna abrigar um novo futuro?

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O bairro que já não é: sair do Jamaica para voltar a sonhar com o futuro
O bairro que já não é: sair do Jamaica para voltar a sonhar com o futuro

Vitória abre a porta do novo apartamento com um sorriso. Percebe-se o orgulho quando detalhadamente mostra cada divisão do lar que é o seu há meio ano. Ainda há bem pouco tempo não era assim. Estamos no inverno, estação que costumava viver em angústia. A época de chuvas era sinónimo de casa alagada. Sofás, camas e eletrodomésticos, quase tudo ficava estragado. Para deitar ao lixo.

Durante anos foi a realidade que viveu no bairro da Jamaica, Seixal, até que em julho do ano passado quase tudo mudou. A santomense faz parte do grupo de 244 famílias a quem foi atribuída uma nova habitação no âmbito de um realojamento “pioneiro”, que começou em 2018, e abrangeu quase 800 pessoas. Esta terça-feira escreveu-se um dos últimos capítulos com o realojamento dos últimos 23 agregados familiares, que tinham ficado com a vida em suspenso depois de uma providência cautelar ter travado a mudança em outubro do ano passado.

No Seixal, a estratégia do Estado não passou por transferir quem ali morava para outro bairro social, sem condições, como foi repetido vezes sem conta no passado. A ideia foi a de dispersar aquelas famílias na malha urbana. O objetivo é retirar o estigma social associado ao peso de uma morada maldita.

Regressar ao passado para perceber o presente

Mas para compreender melhor a alegria de Vitória com a nova vida, temos de recuar alguns anos. Mais precisamente, viajar até àquele que era o quotidiano num dos bairros mais problemáticos da Área Metropolitana de Lisboa e pelo qual, ao longo de várias décadas, desde 1980, passaram e viveram muitas centenas de famílias ꟷ sobretudo de imigrantes dos PALOP que chegavam ao país para tentar uma vida melhor. A história de Vitória Benguela Silva, apesar de única nos pormenores, não era incomum naquele bairro.

Natural de São Tomé e Príncipe − como parte significativa dos moradores do “Jamaica”, bairro cuja designação oficial é “Vale de Chícharos” −, chegou para morar na casa de um familiar do companheiro. Um "quartinho". Passado pouco tempo, quiseram ter independência e privacidade e, por isso, ele olhou para uma garagem inacabada − na zona do bairro onde a comunidade cigana era dominante − e sonhou transformá-la em casa.

Da ideia à realidade passou mais de um ano. Vladimir, o marido, faz vida da construção civil, numa empresa de Sesimbra, e sabia que podia transformar um espaço cheio de lixo, entulho, para onde escorriam os esgotos dos andares de cima, numa habitação. “Ficou uma maravilha”, relembra Vitória, a quem os vizinhos gabavam o “milagre” que o companheiro ali tinha feito.

Era uma casa com quatro quartos, duas salas, uma casa de banho, uma cozinha. “Era avontadíssima (sic)”, exclama a mulher, hoje com 47 anos. Parecia tudo perfeito, até que chegou a época das chuvas. “Isso é que era pior, porque como estávamos na cave, a [antiga] rampa para os carros descerem fazia com que a água fosse toda para dentro da casa”, descreve.

Pés debaixo de água em casa e sofá em cima de tijolos

Há uma noite, em 2016, que não sai da memória de Vitória. O marido levantou-se de madrugada para ir à casa de banho. Mal tirou as pernas da cama e as pôs no chão, sentiu-as a ensopar. O quadro disparou. As fichas elétricas estavam cobertas de água.

“Era muita, muita, muita água. Tanta que não conseguíamos sequer abrir a porta da rua, que era em chapa”, lembra. Tiveram de chamar os bombeiros, mas nem eles conseguiram ajudar. Foram cinco horas a tirar água, à cadência da capacidade de um balde. “Ficámos com muita coisa estragada”, lembra.

O susto foi enorme e é um marco na vida de Vitória. “Foi o meu pior dia em Portugal”.

Tudo acabou por se resolver, mas ficou o trauma. “Quando chovia entrava em pânico. Muitas vezes, tinha de sair do trabalho para ir ver a casa.” Passou a viver em sobressalto. Se anunciavam chuva tinha de pôr tijolos a levantar o sofá, desligar as tomadas e prender as fichas na parede.

“Tenho uma vida mais sossegada, mais segura, sem o stress de estar no trabalho preocupada [se a casa está inundada]”, Vitória Benguela, de 52 anos

Em julho do ano passado, pensou que não mais a chuva ou os esgotos seriam um problema. Finalmente, teria a nova casa que tanto desejou. “Foi uma grande alegria”, resume. O apartamento tem quatro quartos, onde estão os três filhos, ela e o companheiro, e ocasionalmente a mãe e a sogra, uma sala avantajada e uma cozinha luminosa. O que mudou? “Tenho uma vida mais sossegada, mais segura, sem o stress de estar no trabalho preocupada [se a casa está inundada]”, detalha.

Na nova casa, num terceiro andar sem elevador, a água já não entrará por baixo. Está radiante com a mudança. Tem “uma casa como as outras”. Ainda assim, as chuvas não deixaram de ser um problema. Uma infiltração fez com que começasse a cair água no quarto onde dormem as duas filhas. Apesar disso, Vitória não tem dúvidas: o balanço é “ótimo”.

Processo de destigmatização em curso

Dirce Noronha, de 46 anos, sabe bem o que custou e quanto vale esta mudança. Ela própria a vive e experiencia. Foi das que mais fez para alterar o curso do futuro que parecia inevitável, muito antes de 2018. Como ex-presidente da Associação de Moradores do Jamaica não se cansou de lutar. Agora − seis anos depois de ela própria sair da torre 10, à época em risco de ruir e onde viviam mais 64 famílias −, olha para trás com a sensação de dever cumprido. Sente que tudo valeu a pena.

“Vivíamos precariamente, sem condições, com aquela água, com a falta de condições sanitárias, problemas de luzes, tudo. Eu acho que posso dizer que tudo mudou 99%, para não dizer 100%. [A vida] melhorou muito”, assegura.

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"Quando anunciavam que ia chover, tínhamos de pôr os sofás em cima de tijolos para não se estragarem", Vitória Benguela, ex-moradora do Jamaica.

Não eram só as condições materiais do bairro que penalizavam quem ali vivia. Havia também o estigma, algo imaterial, mas cuja presença se sentia no dia-a-dia. “As pessoas eram mal vistas por serem do Bairro da Jamaica, eram conotadas com o tráfico de droga e há quem não conseguisse arranjar um trabalho por ali morar”, conta.

Dirce lembra que havia quem temesse que se descobrisse onde residia e pedia aos colegas de trabalho, que lhe davam boleia, para a deixarem longe do bairro. Fazia quilómetros a pé para casa.

Já com muitas famílias a viver há vários anos fora do bairro, a ex-moradora pode dizer com segurança que, agora, as pessoas que viviam no Jamaica “são muito mais bem recebidas [pelos outros] por estarem a viver fora do bairro”. O futuro, antes sombrio, é agora mais luzidio. “Há melhores condições para os filhos, melhor educação”.

Para muitos pode parecer algo básico, mas para as crianças de Vale de Chícharos não o era. “Agora os meninos que viviam no Jamaica já podem dizer que têm uma casa. Os pais dos amigos da escola não gostavam que eles viessem aos aniversários no bairro”, recorda.

“Vivíamos precariamente, sem condições, com aquela água, com a falta de condições sanitárias, problemas de luzes, tudo. Eu acho que posso dizer que tudo mudou 99%, para não dizer 100%. [A vida] melhorou muito”, Dirce Noronha, 46 anos

Dirce resume a mudança numa palavra: “Dignidade.” “Vivemos com mais dignidade que era algo que tínhamos perdido”, resume.

Ratos eram vizinhos

Vanusa Coxi cresceu e fez-se também ela mulher no Jamaica. É agora membro da Associação de Moradores do Bairro, apesar de também já ter sido realojada numa nova casa. A descrição da realidade que viveu durante anos é crua. “Os ratos eram nossos vizinhos. Víamo-los no dia-a-dia. Andavam por dentro dos prédios. Nem gosto de me lembrar. Tenho crianças e já se sabe o que esses bichos fazem dentro de casa”, descreve.

A humidade era mais do que muita e Vanusa revisita a altura em que comprou um beliche para os filhos. Ficou “logo tudo oxidado”.

“Comprei e os bichos estragaram, já não comprei mais nada, porque era deitar dinheiro fora. No inverno, nas paredes da minha casa, se chovesse muito, entrava água pela varanda da cozinha”, recorda.

Não havia esgotos públicos, por isso as águas fétidas das descargas ficavam nas imediações dos prédios. O cheiro era nauseabundo. Ao olhar para o bairro, a imagem não era muito diferente da realidade de alguns bairros africanos ou sul-americanos, em que os fios de eletricidade se espalham em teias caóticas. Eram resultado de puxadas e mais puxadas da rede pública de eletricidade. Nunca houve acidentes, apesar de o perigo parecer bastante real.

Outra coisa de que Vanusa se lembra bastante bem é do rótulo dos que ali viviam. Estava bem definido: “Bandidos.” Vanusa percebe o porquê, apesar de discordar. “Éramos sinónimo de um mundo à parte, de tudo o que é ilícito. As pessoas tinham medo até de entrar no bairro. Não saíam na paragem de autocarro, preferiam sair mais à frente ou mais atrás”, assegura. Mas também há o outro lado, o daqueles que apesar de serem de fora do Jamaica ali deixavam os filhos à cunhada Solange, que foi ama de muitas crianças ao longo dos anos.

Tal como Dirce, Vanusa fala da exclusão no mercado de trabalho. Os jovens que se candidatavam a empregos nas lojas de um grande centro comercial da cidade eram rejeitados porque viviam no Jamaica. Quem empregava “tinha medo”.

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"Os ratos eram nossos vizinhos, viamo-los no dia-a-dia. Os ratos andavam por dentro do prédio. Muitas vezes entravam dentro de casas", Vanusa Coxi, ex-moradora e atual membro da Associação de Moradores do Jamaica.

O realojamento, que começou em 2018, deu aos moradores do Bairro, segundo Vanusa Coxi, “um cantinho”, “um espaço”. “As pessoas têm agora uma habitação condigna, sentem-se motivadas a manterem a casa bonita. Compram as coisitas, pode não ser tudo de uma vez, mas vão comprando aos poucos, vão fazendo.”

As casas não são dadas, as famílias pagam rendas

O presidente da Câmara do Seixal, Paulo Silva, já apanhou este processo em andamento, quando em 2022 substituiu Joaquim Santos no cargo. O comunista faz um “balanço francamente positivo” do realojamento do Bairro da Jamaica, ao qual não consegue apontar falhas. “Não vejo nada [que tenha corrido mal].”

Paulo Silva defende a estratégia desenhada, num investimento que custou 22 milhões de euros. “Utilizámos um modelo inovador que foi o de não criarmos novos bairros sociais e dispersarmos essas famílias pela malha urbana do concelho do Seixal, promovendo a necessária coesão social com a restante população”, explica.

[2:46 PM] Salome Esteves

O autarca fala já de uma integração plena na sociedade e quer desmistificar a ideia de que estas casas foram oferecidas. “Não é verdade. Pagam rendas entre 5 euros e 400 euros [consoante os rendimentos dos arrendatários]. Todas as famílias estão a pagar pontualmente, o que demonstra que elas assumiram que este processo também lhes dá novas obrigações. Não é só o direito a uma casa nova, também têm obrigação de pagar a renda”, resume.

“Éramos sinónimo de um mundo à parte, de tudo o que é ilícito. As pessoas tinham medo até de entrar no bairro. Não saíam na paragem de autocarro, preferiam sair mais à frente ou mais atrás”, Vanusa Coxi, 38 anos

Quem não faz uma avaliação tão positiva é Jannis Kühne, um alemão radicado em Portugal e investigador da Universidade Nova e do ISCTE. Desde 2017 que mantém relação com o bairro, onde chegou à boleia do Grupo Chão, que ali fazia trabalho comunitário. Na altura, a tese de mestrado que escreveu tinha por base o “movimento Caravana”, que naquele ano pretendeu dar visibilidade às condições sub-humanas em que viviam as populações de bairros degradados da Grande Lisboa, como o 6 de Maio, na Amadora, o bairro da Torre e a Quinta da Fonte, em Loures, e o Jamaica no Seixal. Queriam fazer a discussão chegar à Assembleia da República e conseguiram.

Há meses que acompanha 15 famílias daquele bairro no pós-realojamento para perceber o que aconteceu neste processo. Ainda sem conclusões definitivas, não consegue ser tão otimista como Paulo Silva. Identifica algumas coisas que não mudaram do Programa Especial de Realojamento (PER) para esta nova estratégia. Permanece uma metodologia de cima para baixo, que não dá primazia ao diálogo colaborativo.

Sentado numa cadeira no enorme descampado de terra onde antes se erguiam os toscos blocos laranja de tijolo, Jannis critica “o enorme aparato policial” e o “bairro fechado”, nos dias em que decorriam as mudanças das famílias e demolições.

Como elemento do Grupo Chão foi impedido de acompanhar as famílias a quem dava apoio. “Havia desconfiança em relação a nós”, explica.

Apesar de reconhecer que a maioria das famílias está muito feliz com as novas habitações, o investigador fala de casos concretos em que há infiltrações e problemas nas estruturas das casas que tardam em ser resolvidas. Isso leva-o a dizer que “há situações que são iguais ou quase piores ao Jamaica, com bolor, com condições de habitabilidade que não são nada boas.”

Jogo do empurra

É o caso de Vitória Silva, que aos 73 anos anda às voltas com as instituições responsáveis pela nova casa que habita há mais de cinco anos. Sente que vive o jogo do empurra, entre a Santa Casa da Misericórdia, a quem compete a gestão do apartamento, o condomínio, a Câmara do Seixal e a seguradora da habitação.

Sempre que recorre a uma destas entidades sente que a mesma “chuta” a responsabilidade para outra.

"Há situações que são iguais ou quase piores ao Jamaica, com bolor, com condições de habitabilidade que não são nada boas", Jannis Khüne, investigador do ISCTE e da Universidade Nova

Vitória está habituada a viver em condições precárias há vários anos, pelo menos desde que foi para o Bairro da Jamaica para dividir um quarto com os dois filhos, numa casa em que viviam mais familiares. Era tudo tijolo, cimento e frio. Quando mudou para a nova habitação pensou que tudo ia ser melhor. Não foi. Ao início, o apartamento com dois quartos, cozinha, sala e casa de banho, parecia aconchegante, confortável. Até recebeu a visita do primeiro-ministro, António Costa, durante a cerimónia protocolar.

Parecia um sonho, mas rapidamente passou a pesadelo. A sala onde está sentada, no sofá, encheu-se de humidade. A cozinha ainda mais. As paredes começaram a ficar cada vez mais negras, até que o preto dos fungos ganhou a batalha à tinta branca. Mas o pior de tudo é, sem dúvida, a casa de banho.

Diz que foi desde que a vizinha fez obras no andar de cima que a situação se tornou insuportável. A partir dessa altura, garante, a água começou a correr pelo teto da casa de banho.

A isto somam-se os canos entupidos, que fazem com que a água da sanita suba com todos os dejetos, tal como a do bidé e lavatório, que se enchem de terra. Mais do que uma vez alagou a casa toda. O cheiro que ficava era indiscritível. Teve até de chamar ajuda para tirar a água, não o conseguia fazer sozinha. Um problema nos joelhos tirou-lhe mobilidade.

E o pior de tudo: diz que já chegou a ter de fazer as necessidades fisiológicas para um saco para as ir deitar fora ao lixo, porque a sanita não funciona.

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"Tive de mandar raspar a parede e tudo o que tinha dentro das caixas tive de deitar fora, porque já não funcionava por causa da humidade", Vitória Silva, ex-moradora da Torre 10 do Bairro da Jamaica.

Vitória mostra ainda o quarto, para que se possa ver que a humidade não poupou o guarda-fatos, onde a roupa começa a ficar estragada.

A cozinha onde passa a maior parte do tempo é, de facto, a divisão mais atingida pela humidade. Ao pé da porta, o teto estava tão negro que teve de pôr pladur para disfarçar o problema, depois de ter tentado, por várias vezes, pintar. A água escorria pelas paredes e caía no chão.

A comida que tinha na despensa começou a ficar estragada e as máquinas guardadas em embalagens deixaram de funcionar.

Apesar de tudo, Vitória encolhe os braços: “Prefiro 30 mil vezes estar aqui do que no Jamaica.”

Casas em que o novo era velho

Vanusa Coxi confirma que esta não é uma situação singular. Repetiu-se em muitas habitações a cargo da Santa Casa, que ficou com a responsabilidade de gerir as casas para onde foram realojadas as primeiras 64 famílias. Entretanto, o presidente Paulo Silva, apesar de elogiar o trabalho daquela instituição, anunciou que as mesmas vão passar a ser geridas pela autarquia, como já acontece com as restantes 177 frações.

Vanusa deixa ainda críticas às empresas que ganharam os concursos da câmara para reabilitar os apartamentos.

“Muitas das empresas, sou sincera, foram às casas e fizeram nada. Por exemplo, havia cozinhas em que os armários já estavam estragados e não se deram ao trabalho de os trocar. E quando eu digo estragados é estarem podres por dentro. Pintaram, ou qualquer coisa do género, e está feito”, ilustra.

Houve quem entrasse nos novos apartamentos e encontrasse casas de banho com problemas e puxadores de portas estragados. “Acabou por gerar um descontentamento muito, muito grande nas pessoas”, diz Vanusa, que não percebe a atitude dos empreiteiros que não fizeram o trabalho para o qual foram pagos.

Foram feitas queixas à câmara e, nalguns casos, as empresas voltaram às casas, noutros nem isso. Segundo Vanusa Coxi, houve alguns moradores que ainda ouviram insultos. “Vocês saíram da Jamaica, já saíram do bairro, estão aqui neste tipo de casas e ainda estão a querer reclamar. Não têm de reclamar nada, têm de estar agradecidos”, conta.

Ela revolta-se: “Não interessa de onde é que eu saí, o que interessa é que estou aqui, sou inquilina, moro ali. Tenho o direito de ter a casa em condições”, acrescenta.

Não repetir os erros do passado, não repetir o PER

Foi para evitar situações de alegada e real discriminação que no Seixal se evitou repetir aquilo que para muitos foram os erros do passado. Não se quis destruir um bairro para construir outro novo, com os mesmos problemas e os mesmos vícios.

Dirce diz, no entanto, que no início do processo a ideia chegou a ser proposta. Mas os moradores recusaram. “Isso é uma forma de exclusão social”, sublinha. Na memória de todos ainda estava o que aconteceu quando foi construído o bairro da Cucena, e onde no início da década de 1990 foram realojadas algumas famílias do Jamaica.

“A pessoa sai de um bairro, vai viver noutro bairro onde não tem transporte ao pé. O que há mais perto é a esquadra da polícia. Não há uma mercearia, não há um centro comercial”, detalha. “Fica sempre o rótulo de bairro para quem lá vive”, acrescenta. Por isso, conclui, sem rodeios, que este “é o melhor processo de realojamento que existiu em Portugal”.

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"Hoje em dia as pessoas são muito mais bem recebidas pelas outras.A saúde das pessoas está melhor e as pessoas vão viver mais anos. Os meninos que andam na escola já podem dizer que têm uma casa", Dirce Noronha, ex-presidente da Associação de Moradores do Bairro da Jamaica

Na Câmara Municipal do Seixal havia a vontade de não repetir aquilo que consideram os erros do PER (Programa Especial de Realojamento). “Traduziu-se na construção de bairros que são autênticos guetos”, diz Paulo Silva. “Quem mora num bairro social não tem os mesmos direitos dos outros”, reforça.

“Na procura de emprego, ao dizer que mora no bairro social, [a pessoa] fica logo em desvantagem. Se vai ao banco tratar de alguma questão ou quer um crédito, fica logo em desvantagem. E não é isso que queremos”, enfatiza o presidente da Câmara do Seixal.

O autarca remete para os relatórios sobre a habitação degradada na Área Metropolitana de Lisboa e diz que estão lá “a quase totalidade dos bairros construídos no PER”.

E conclui que foi “uma política que falhou”. “Não se resolve os problemas habitacionais criando outros bairros de construção barata”, afirma.

Na autarquia do Seixal, o PS é o principal partido da oposição. O líder da concelhia local é Samuel Cruz. O jurista elogia o processo iniciado pela câmara, mas para logo de seguida dizer que apenas se concretizou porque o Governo socialista de António Costa deu o tiro de partida e criou as condições para que fosse possível. E até garante que foi preciso o primeiro-ministro ver o filme "São Jorge", de Marco Martins, − onde ficavam bem visíveis as condições de vida daquele local −, para que se começasse “este processo revolucionário”.

“Vocês saíram da Jamaica, já saíram do bairro, estão aqui neste tipo de casas, e ainda estão a querer reclamar. Não têm de reclamar nada, têm de estar agradecidos”, Vanusa Coxi

Samuel Cruz critica ainda a autarquia comunista pela situação a que se chegou naquele município. “O problema da habitação no concelho do Seixal é muito, muito grande, porque as câmaras comunistas na Península de Setúbal não executaram o PER e, por isso, existem centenas de agregados familiares por realojar”, assegura.

Também não é fã do modelo do PER, mas diz que “o ótimo é inimigo do bom”. Pensa que o modelo de realojar as pessoas integrando-as no tecido social é melhor do que construir bairros − e até garante que foi o PS a defendê-lo pela primeira vez no Seixal. Ainda assim, na década de 1990, a situação do imobiliário era diferente, os preços estavam mais inflacionados, e, por isso, pensa que na época foi o modelo possível. Argumenta ainda que teria sido melhor os moradores do Jamaica irem para um novo bairro social do que viverem nas condições sub-humanas em que habitaram durante décadas.

O líder da concelhia do PS chama a atenção para o facto de este processo de realojamento não ter apenas consequências positivas. E explica o porquê: “O preço da habitação aumentou muito. Nenhum casal jovem consegue comprar casa no Seixal, pela simples razão de que a câmara estipulou um valor em que comprava tudo a 1.500 euros metro quadrado”, explica. No caso de aquisição de um imóvel, segundo a lei, a autarquia tem direito de preferência.

Samuel Cruz alerta ainda para a incapacidade de repetir este modelo pioneiro. Em 2017, quando o processo começou, o preço das casas estava mais baixo, o mercado imobiliário “estava ainda a recuperar” da crise de 2013. Hoje a realidade é diferente, defende, e os preços explodiram. O PS acredita que ainda há pelo menos 500 famílias para realojar no concelho e que “não há 500 casas disponíveis no mercado”.

Por isso, “a nova construção, não sendo um modelo ideal, é possível que seja necessária para resolver o problema”, garante.

O investigador Jannis Kühne concorda que nem tudo correu bem neste processo. Olha-o mais do ponto de vista social do que económico. Denuncia uma certa “violência simbólica”.

A mesma expressa-se, segundo Jannis, em coisas simples como a impossibilidade de conhecer a nova casa até ao dia da mudança. “Como é que é possível que as pessoas não possam ver a casa antes de viver nela? As pessoas só veem a casa no dia em que é efetuado o realojamento”, sublinha.

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"O preço da habitação no Seixal aumentou muito e nenhum casal jovem consegue comprar casa. Isto porque a Câmara comprou tudo o que havia até 1.500 euros/m2", Samuel Cruz, presidente da concelhia do PS do Seixal.

Se são pessoas que têm um contrato de arrendamento como as outras, Jannis não percebe o porquê de isto acontecer, mas tem uma teoria. “Talvez seja para impedir que haja mais conflito. Isso não é nada justo, qualquer outra pessoa que arrendou uma casa vai visitar a casa antes. Não é?”, questiona.

Os novos vizinhos e a integração

Num processo de mudança há sempre o outro. Neste caso os vizinhos. Dirce diz que no início nem todas as reações foram boas. Diz que 80% das pessoas do bairro com quem contactava se queixaram.

“Houve quem metesse gradeamento nas janelas [quando sabiam que iam ser vizinhos de pessoas que vinham do Jamaica]”, ilustra.

“No sítio onde vivo, meteram câmaras nos corredores. Eu perguntei porquê e disseram que um morador pediu contribuições para as comprar, por causa das pessoas que vinham do Jamaica. Quem me disse não sabia que eu era de lá”, lembra. Mais tarde, sentiu uma nova barreira de integração. “Não me chamavam para as reuniões de condomínio. Quando se dizia que vinha da Jamaica, as pessoas faziam uma cara esquisita, do tipo ‘é delinquente’. Sentia-me discriminada, desprezada”, recorda.

“A minha filha, que na altura tinha 14 anos, dizia o mesmo, que as pessoas nos olhavam de forma diferente”, lamenta.

Vanusa Coxi conta o caso da familiar Solange, que no prédio em que vive se confronta com uma vizinha que constantemente desafia as visitas que ela recebe. “Acredito que todas as pessoas que vivam no prédio recebam outras. Um sobrinho vai lá a casa, pede-lhe para ir à loja e empresto a chave. Não é normal que essa pessoa lhe peça as chaves porque diz que ele não vive ali”, conta.

Há outros exemplos, conta Dirce, como um vizinho que perseguia uma pessoa que vinha do Jamaica sempre que via lixo na rua fora do caixote. Ia a casa dela bater à porta, acusando-a sem provas. A revolta era tanta que a acusada foi mexer no lixo que estava espalhado à porta do prédio e encontrou uma carta que provava que não era ela a origem do problema.

O presidente da câmara, Paulo Silva, diz que o processo de realojamento foi faseado, numa periodicidade trimestral, exatamente para que os técnicos da autarquia pudessem acompanhar as famílias durante o período de integração. Admite que, de facto, no início a reação foi de medo por parte de quem morava nas casas onde as pessoas do Jamaica foram realojadas. “Isto agora vai ser uma tragédia, o que nos vai acontecer?”, recorda-se de ouvir.

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"Entedemos que não devíamos criar novos bairros sociais em que se vive como se fosse um gueto. Quem vive num bairro social não tem os mesmos direitos dos outros", Paulo Silva, presidente da Câmara do Seixal.

Mas o autarca assegura que, pouco tempo depois, “as coisas dissipavam-se, porque as pessoas se integravam”. O mesmo é confirmado por Dirce Noronha, que afiança que cada vez são menos as queixas às instituições que lideram o processo de realojamento.

No entanto, Jannis Kühne lembra que o estigma não resulta apenas do território em que as pessoas vivem. “Não é porque o sítio já não existe que as pessoas já não têm um estigma. Muitas vezes, infelizmente, passa também pela cor de pele”, concretiza.

Mas houve muito que correu bem nestes seis anos de realojamento. Dirce ilustra-o com a história de um engenheiro informático que vivia no bairro e não conseguia trabalhar na área em que tirou o curso superior. “Ele não escondia onde morava. Por isso, era conectado com o bairro e viam-no com maus olhos. Ele saiu, participou num concurso público, e tem agora um bom trabalho”, afiança.

Vanusa resume a vitória principal do realojamento. As casas em que agora vivem “são normais”, “com boas condições”, “onde pode viver toda e qualquer pessoa”.

 “Assim nós também podemos sair de casa sem nos dizerem, ‘olha, aquela pessoa vive no bairro’ ou irmos procurar emprego e dizerem ‘não, ela não pode ficar aqui porque vive no bairro’”, resume.

(In)justiça?

Numa sociedade cada vez mais polarizada, a forma como estes processos são interiorizados pelo resto da comunidade também é importante. Os agentes políticos, muitas vezes, têm dificuldade em justificar os apoios a grupos específicos da população e segmentos mais carenciados. No Seixal, o problema também ocorreu.

“Não vou negar algum descontentamento de uma franja da população que dizia: ‘Eu para ter casa tive de a comprar, porque é que a estes lhes está a dar casa?’” Nessa altura, Paulo Silva repetia que a autarquia “não está a dar nada a ninguém”, “está a celebrar contratos de arrendamento e todas as pessoas estão a pagar renda”.

O autarca acrescenta que a câmara tem outros programas, para que outras famílias possam aceder a uma casa. “Apresentamos concursos para 140 casas a renda acessível. Quem trabalha e recebe mil euros, que já é acima da média, não consegue pagar 700 euros por um arredamento”, diz.

“Temos de intervir no mercado para que todos tenham direito a uma casa, não estamos só preocupados com Vale de Chícharos, Rio de Judeus ou o [Bairro de] Santa Marta. Estamos preocupados com as pessoas que trabalham, para que consigam ter uma habitação condigna”, afiança.

"Na procura de emprego, ao dizer que mora no bairro social, [a pessoa] fica logo em desvantagem. Se vai ao banco tratar de alguma questão ou quer um crédito, fica logo em desvantagem. E não é isso que queremos", Paulo Silva, presidente da Câmara do Seixal

Sobre este tema, o líder da concelhia do PS do Seixal, Samuel Cruz, afirma que já assistiu a todo o tipo de reações. Há quem fique “contente” e seja “solidário” com a melhoria de qualidade de vida daquelas pessoas. Mas há também os que demonstram “muita revolta” e um sentimento de injustiça, porque dizem fazer “um grande esforço e muitas vezes nem sequer conseguem adquirir” habitação. “A perceção é a de que a situação que vivem contrasta com a das pessoas que saíram do Jamaica.”

O impacto no crime? Não há dados

O Jamaica era um bairro em que a precariedade material andava de mãos dadas com a criminalidade. O impacto que este realojamento está a ter nos números do crime, segundo a comandante da Divisão do Seixal da PSP, Sofia Gordinho, não é possível de contabilizar. Não há números e dificilmente haverá.

Gordinho pensa que este trabalho deve ser feito por outras instituições, mas acredita que é difícil isolar um facto, como o fim de um bairro, e atribuir-lhe o efeito explicativo de um fenómeno tão complexo como a criminalidade.

A comissária Sofia Gordinho lembra que, no Bairro da Jamaica, a esmagadora maioria das queixas “era por ruído”. As festas que se realizavam no exterior das torres e que, muitas vezes, começavam na quinta-feira e acabavam no domingo, traziam para aquele espaço centenas, às vezes milhares, de pessoas. A música ia até quase de manhã.

“Houve ao longo dos anos, casos de disparos, de tráfico de droga, episódios de violência, mas de forma mais esporádica”, declara a responsável policial. Gordinho diz que o Jamaica estava “longe de ser o faroeste ou uma zona sem lei”. A maior parte das pessoas “trabalhavam, tinham as suas vidas, as suas dificuldades, mas lutavam diariamente, como qualquer um de nós, para se sustentar.”

Mas há um aspeto que não carece de estatísticas para ser aferido, garante a comandante de Divisão da PSP do Seixal: “o aumento do sentimento de segurança”.

“O simples facto de mandar aqueles prédios inacabados abaixo já interfere. Isso garantidamente conseguimos”, explica.

Os excluídos

O processo de realojamento do Bairro da Jamaica era para durar quatro anos, entre 2018 e 2022 − ou seja, já deveria estar concluído. Isto apesar de ter existido uma pandemia pelo meio.

Mas o principal fator que impediu o fecho do processo foi a providência cautelar interposta por várias famílias do lote 6 e do lote 8. Um conjunto de pessoas excluídas do realojamento quis impedir que os prédios fossem demolidos.

Num dia de chuva, como os de meio de janeiro deste ano, chegar ao que resta do Bairro da Jamaica não é fácil. As poças de água que se formam entre os buracos da estrada de terra fazem os carros que ali passam parecerem barcos a baloiçar numa tempestade. Para quem faz o percurso a pé, torna-se num desafio ziguezagueante.

Os últimos a sair. "Dadi" tem a casa arrumada em caixotes há três meses
Os últimos a sair. "Dadi" tem a casa arrumada em caixotes há três meses

Na entrada, o som do hip-hop marca o ritmo do dia para os que no patamar do lote 8 passam por ali a manhã. Meia dúzia de carros de bebé denunciam um prédio onde há muitas crianças, sendo que a poucos metros a paisagem fica marcada pelo entulho, que mistura malas abertas, pedras e ferro.

Subindo as escadas, os buracos nas paredes misturam-se com as janelas partidas e grafitis que pedem “um lar para todos” ou que anunciam que o “karma existe”.

Finalmente em casa de Alda Pontes, conhecida de todos no bairro por Dadi, a sala denuncia uma vida em suspenso. As caixas, espalhadas por todo o lado, mostram que uma mudança que ia ocorrer foi interrompida. A mulher de 52 anos sente-se como alguém que está no meio da ponte. Por um lado, foi uma das famílias contempladas com uma nova casa, por outro era a representante legal de duas sobrinhas que foram excluídas do realojamento.

Ela e a família contavam ter uma nova casa em outubro, mas a providência cautelar de quem ficou de fora obrigou-os a permanecer no prédio. Pelo menos foi esse o entendimento da autarquia.

“Foi uma desculpa esfarrapada, isto mexe com a vida de uma pessoa, mexe com o psicológico. A gente não sabe o que vai ser o amanhã, não sabemos onde estão as nossas coisas”, explica.

Alda acusa a câmara de querer dividir o bairro ao manter as pessoas nas casas, mesmo aquelas que têm direito a uma nova habitação. Essas revoltaram-se contra os que interpuseram a queixa em tribunal.

Dadi diz que a autarquia, com esta atitude, “gera um ambiente de intrigas”: “Põe os vizinhos uns contra os outros, faz com que quem tem casa queira pressionar os outros a retirar a providência cautelar.”

“Éramos como uma família aqui, todos tínhamos o mesmo interesse, que era o de sair. Mas a câmara conseguiu quebrar esse laço familiar”, critica.

Diz já ter sido intimidada, mas revela não ter medo. Apesar disso, assume que tudo o que se passa à sua volta a está a afetar. Está numa fase em que apenas quer "ficar deitada, ficar no cantinho”.

"Éramos como uma família aqui, todos tínhamos o mesmo interesse, que era o de sair. Mas a câmara conseguiu quebrar esse laço familiar", Alda Pontes, 52 anos

“Não posso ficar assim, porque, daqui a pouco, posso ficar num pico de ansiedade e passar à depressão”, teme. Diz que no auge do conflito, no final do ano passado, deixou o trabalho porque não estava a aguentar toda a pressão. Trabalhava num espaço para crianças e sentia que não conseguia manter a concentração.

Em relação ao realojamento, diz que a autarquia complica o que era simples, porque tem “dinheiro vindo da Europa” e a “obrigação constitucional de dar uma casa condigna”. A situação das duas sobrinhas, Tassi e Neide, é clara para Alda. Têm direito a uma nova casa porque sempre viveram ali. Diz que apenas recentemente abandonaram o bairro, de forma temporária.

A primeira, Tassi, estuda no norte do país e a segunda, Neide, doente oncológica, está em Londres com uma filha, para tratar do problema de saúde. Ambas querem voltar.

Uns metros ao lado, Édina Carvalho, outra das responsáveis pela providência cautelar, não esconde o inconformismo de ter sido deixada de fora. Assegura que há anos que vivia no que chama “um puxadinho”, nas traseiras do lote 8, onde antes havia umas garagens que foram transformadas em casa. Foi para lá para ter autonomia da mãe e viveu ali, até que uma gravidez de risco a devolveu a casa da progenitora, “onde teria mais condições”. “Foi apenas logística familiar”, resume.

Ela trabalha e não costuma estar à tarde em casa, altura em que regularmente são feitas as visitas dos técnicos da Câmara do Seixal.

Argumenta que foi o suficiente para ficar de fora. “Dizem que eu estou excluída por não residir na minha casa permanentemente, mas nunca houve espaço para diálogo. Nunca nenhuma das técnicas tentou perceber qual era a logística da família. Nunca houve esta dinâmica de tentar conversar”, reflete.

Câmara rebate acusações

Na Câmara do Seixal, Alexandra Arnaut é chefe da divisão de Habitação, e sabe tudo sobre este processo de realojamento − não o tivesse acompanhado desde o início. Esclarece que os mais de 240 agregados envolvidos no realojamento sabiam que havia “critérios que tinham de cumprir”. Foram pedidos documentos às famílias a provar que ali viviam, que depois eram verificados.

Ao longo dos anos, Alexandra Arnaut diz que houve mais famílias a ficarem de fora do realojamento, mas nenhuma antes tinha decidido contestar a decisão em tribunal. Arnaut entende que, numa altura em que o acesso à habitação é tão difícil, todos tentem, por todos os meios, consegui-lo.

A responsável pela habitação do concelho considera que a autarquia até usou um critério bastante largo e, por isso, das iniciais 234 famílias a realojar passou-se para o número final de 244. Sublinha que, aos que foram excluídos neste programa, não foram fechadas as portas e foram propostas outras soluções.

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"Nós temos reuniões prédio a prédio onde fazemos ações de sensibilização, onde é visto os contratos que eles irão assinar em termos de arrendamento, ponto por ponto, onde tratamos as questões dos lixos, de viver num prédio, dos horários para fazer ruído, da bicicleta, onde a devem arrumar (....)", Alexandra Arnaut, chefe da divisão de Habitação da Câmara do Seixal.

Alexandra Arnaut não rejeitou falar individualmente de algumas das pessoas que ficaram de fora do realojamento. Em relação a Edina, diz que esta já tinha sido realojada no agregado da mãe noutro processo. Explica que, como agora é maior e tem um filho, pode requerer ao município uma habitação social. Mas neste processo não pode ser incluída, porque não fez prova de que vivesse fora da casa da progenitora. “Não tinha documentação de que vivesse no lote 8”, diz.

Em relação ao caso das irmãs, garante que ninguém foi excluído por estudar fora e que as visitas domiciliárias falam muito. “Quando não encontramos uma peça de roupa no sítio em que a pessoa diz viver…”, ilustra.

Já em relação à mulher cuja filha que tem um problema oncológico, afirma que o caso tem sido usado como “chavão nas redes sociais”. Mas contrapõe: “Existem pessoas com doenças oncológicas graves e com outros problemas associados [impedidos de mudar de casa pela providência cautelar] e ninguém está preocupado que essas pessoas estejam ali com tudo embalado em condições ainda mais indignas do que estavam.”

Em relação a Neide, diz que a investigação da autarquia descobriu que a filha já estaria a estudar no Reino Unido antes do tratamento médico. “Isso suscita-nos logo dúvidas, e a partir do momento em que suscita dúvidas, começamos a fazer visitas domiciliárias regularmente. Depois, a pessoa consegue provar ou não que ali vive. Nós acreditamos que elas não têm direito à habitação neste programa. Poderão ter noutro”, reitera.

Quem não concorda de todo com estas explicações é a advogada das famílias, Marina Caboclo. Foi ela que quase à 25ª hora interpôs a providência cautelar que durante mais de três meses suspendeu a demolição do que resta do Jamaica. Isto até o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, no final do mês de janeiro, ter dado razão aos argumentos da autarquia e determinado que os edifícios vêm mesmo abaixo.

Marina Caboclo defende que estas famílias “não tinham alternativa habitacional”, ou seja, vivem no bairro e não têm para onde ir. “Por isso, recorreram à ajuda.”

A advogada considera que as técnicas da câmara se deslocarem às casas quando as pessoas estão a trabalhar, e depois escreverem que não as viram, e que não veem vestígios de que a pessoa vive ali, “é uma coisa muito subjetiva, muito arbitrária”.

A advogada diz que o que aconteceu no Jamaica viu repetido noutros bairros ilegais, como o do Segundo Torrão, em Almada.

As autarquias reiteradamente não cumprem o procedimento administrativo, afirma. Traduzindo: “Quando o Estado tem uma decisão que é prejudicial para uma pessoa, a decisão tem de ter bem explicados os fundamentos de facto e os fundamentos de direito.”

 Ou seja, não se pode limitar a dizer que a pessoa está excluída porque não tem direito. Há obrigação de explicar porque se exclui e com que critério. E quando a decisão é desfavorável ao cidadão, este deve ter tempo para responder.

"Isto só acontece porque a câmara e o Estado acham que, porque é um bairro autoconstruído com imigrantes, com pessoas negras, com pessoas pobres, não têm de cumprir um mínimo do mínimo da lei. Quer dizer, não é uma formalidade, é completamente desumano. Como é que uma pessoa vai ter a sua casa partida e não recebe um papel a avisar qual é a data em que a casa vai ser partida?", Marina Caboclo, advogada das famílias que interpuseram uma providência cautelar

“É um direito constitucional, é um direito que está garantido na lei. E a câmara não deu esse prazo às pessoas”, afirma Marina Caboclo. E mais grave, no caso do Jamaica, na opinião da jurista, é que “as cartas que as pessoas receberam não diziam quando ia ser a demolição, não diziam que as pessoas tinham de desocupar as casas, não diziam as datas”. A única coisa que o município fez, assegura, foi afixar um papel, um edital, no bairro sem ter a certeza de que todos o leram.

Marina Caboclo acusa os poderes públicos de racismo institucional. “Isto só acontece porque a câmara e o Estado acham que, porque é um bairro autoconstruído com imigrantes, com pessoas negras, com pessoas pobres, não têm de cumprir um mínimo do mínimo da lei. Quer dizer, não é uma formalidade, é completamente desumano. Como é que uma pessoa vai ter a sua casa partida e não recebe um papel a avisar qual é a data em que a casa vai ser partida?”, questiona.

E concretiza que tem dificuldade em entender como é que a câmara, “num momento de crise habitacional tão grave quanto o que vemos agora, pode achar que é normal despejar pessoas, famílias que são reconhecidas como vulneráveis, que não têm alternativa habitacional.”

A mesma advogada critica a autarquia por não ter procedido ao realojamento das famílias do lote 6 e do lote 8 que tinham direito a ter sido realojadas logo em outubro do ano passado e passar o Natal na nova casa. “Nada na decisão o impedia”, resume.

Realojamento diferente

Alexandra Arnaut contrapõe e afirma que, se a câmara pecou, foi por excesso. Diz que houve casos em que era consabido que uma pessoa não morava no prédio, mas conseguiu prová-lo. O município ficou de mãos e pernas atadas. “Sim, isso aconteceu no Lote 10”, assegura.

A mesma responsável diz que foi feito um grande esforço para que este não fosse apenas um realojamento como outros. A autarquia fez várias “ações de sensibilização” com a população do Jamaica. As mesmas visavam antecipar as diferenças entre viver num bairro ilegal, em comunidade, e num prédio inserido na malha urbana do Seixal.

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"Como é que é possível que as pessoas não possam ver a casa antes de viver nela? As pessoas só veem a casa no dia em que é efetuado o realojamento", Jannis Kühne, investigador do ISCTE e da Universidade Nova.

“Nós temos reuniões prédio a prédio onde fazemos ações de sensibilização, onde é visto os contratos que eles irão assinar em termos de arrendamento, ponto por ponto, onde tratamos as questões dos lixos, de viver num prédio, dos horários para fazer ruído, da bicicleta, onde a devem arrumar, como é que se estende a roupa, se a roupa tem que ir torcida, se tem de ir com água. Tudo, tudo”, enumera.

A mesma responsável diz que tentaram ainda adequar os imóveis às situações etárias e sociais dos moradores. Por exemplo, aos mais velhos e aos que têm mobilidade reduzida foram atribuídos os rés do chão. Aqueles a quem foram diagnosticados problemas de saúde ficaram mais próximos dos centros de saúde.

O investigador do ISCTE e da Universidade Nova Jannis Kühne não pinta um cenário tão cor-de-rosa. Há quem não se tenha dado assim tão bem com o desenraizamento que um processo destes sempre causa.

“Algumas pessoas sentem muita falta da comunidade e dessa ligação ao bairro, porque eram vizinhos e cuidavam uns dos outros, podiam deixar os filhos ao cuidado das vizinhas”, explica.

Jannis fala ainda dos problemas que resultaram da transição entre a informalidade de viver num bairro ilegal e passar a ser inquilino a pagar renda à autarquia. Antes, quando havia um problema com a casa, mesmo tendo em conta que eram habitações em muito pior estado de conservação, “eles resolviam nos próprios moldes”. Há uma nova relação com a propriedade, identifica.

“Quando havia uma rutura num cano, organizavam-se de alguma forma e tentavam resolver o problema, porque já contavam com a ausência do Estado ou da câmara a resolver certas coisas em tempo útil. Agora estão dependentes de um condomínio, estão dependentes do proprietário e estes processos são lentos ou não avançam de todo. Isto é uma agonia para as pessoas”, descreve.

Kühne identifica outra alteração: mudou também a relação com as entidades que fornecem serviços. “Há situações de pessoas que não conseguem pagar as contas. Antigamente não havia contas. Agora há várias contas e é muito rígido, não é? Não é uma dívida que têm com um vizinho, já é uma dívida com a EDP ou com a Galp”, ilustra. “Sei de casos em que já houve cortes de luz”, acrescenta.

"Algumas pessoas sentem muita falta da comunidade e dessa ligação ao bairro, porque eram vizinhos e cuidavam uns dos outros, podiam deixar os filhos ao cuidado das vizinhas", Jannis Kühne

Independentemente das dificuldades que um processo destes tem, pela grande mudança que transporta, Dirce Noronha não tem dúvidas sobre o que sair do Bairro da Jamaica significa para a maioria das 244 famílias.

“Trouxe novos sonhos, novas ambições e novas esperanças. Há pessoas que tentam agora conquistar muita coisa e que antes, só por viver lá no bairro, achavam que não tinham essa possibilidade. Atualmente, as pessoas têm outra maneira de ver as coisas, têm outra perspetiva da vida e há futuro. Hoje em dia, podemos dizer aos nossos filhos que nós temos futuro. Nós podemos sonhar em dar-lhes algo melhor”, resume.

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