27 jun, 2023 - 07:08 • Liliana Carona (texto e fotos)
O rebate do sino convida a ir à igreja, mas para muitos dos populares da Lapa dos Dinheiros, a saúde, ou a falta dela, já não permite a deslocação. E às 8h30 da noite, a hora é sagrada.
“Ai! Quando já não ouvimos e quando deixamos passar um pouco, ficamos aflitos”, diz Sebastião Conde, 81 anos, que até há umas semanas, não conseguia ouvir com tanta facilidade o terço, porque às 6h30 da tarde ainda andava na agricultura, no terreno que circunda a casa.
Com a mulher, Maria Natália Pinheiro, 77 anos, sentam-se à beira do rádio, todos os dias, mesmo antes de se terem casado há mais de meio século.
“Tenho este terço que foi o meu marido que me ofereceu quando namorávamos, tem 60 anos, e já ouvíamos o terço antes. Temos de conferenciar as vidas e namoramos também, nunca deixámos de namorar, recorda-me muito aqueles anos e ele mantém-se na mesma”, sorri, olhando o companheiro de uma vida. “Ela é que me pediu em namoro”, interrompe Sebastião, salientando que os dois juntos sempre cumpriram um ritual: ouvir o terço na Renascença.
“Gosto de ouvir aquelas orações que rezam na Glória. Isto já é hábito, foi toda a vida. É importante, fomos assim criados. É uma pessoa que está a rezar o terço e nós rezamos com aquela pessoa, é como que está na nossa casa”, explica Natália.
O casal não se importa com a mudança de horário da transmissão do terço.
“Sabe bem a gente a rezar e a comer. Foi o Pedro, o nosso filho, que nos avisou que o terço ia mudar de hora. Em vez de ser às 6h30 da tarde passou para as 8h30 da noite, tanto faz para os doentes, mas para quem anda na agricultura, ainda calha melhor às 8h30 da noite. É uma hora em que estou sempre. Quando ando no campo, interrompia e vinha ouvir. Agora não é preciso”, valoriza Sebastião, em concordância com a mulher, que diz ser “uma hora mais dedicada”.
Este casal sempre desejou que houvesse emissão ao sábado e domingo, uma alteração que também aplaudem. “Ouvimos o terço todos os dias, desde que nos lembramos. Ao sábado e domingo não dava no rádio e fazia-nos falta. Quando havia a Rádio Sim, também transmitia ao fim de semana”, recorda com saudade Natália, sublinhando que se sente “como uma família toda junta, eu já conheço os senhores padres pela voz.
"Quando não dava terço ao sábado, a gente sentia-se triste. Gosto de rezar o terço e depois já fico descansada”, conclui. E não é só o terço que a fascina na Renascença. “Também gosto de ouvir as notícias, são mais curtas. Também tenho rádio no quarto que dá as notícias, todas as horas, e na televisão isso não acontece.”
Com algumas interferências, mas que não atrapalham a vontade de rezar e pedir por quem mais precisa, Sebastião considera ser uma hora importante, a do terço, pois “há uma data de anos que a mulher não pode ir à igreja, por motivos de saúde”.
“Dedicamo-nos sempre ao terço, é como uma pessoa que está na nossa casa, a rezar connosco.” Natália conta que reza muito as orações que aprendeu com a mãe e avó. “Eu quando me deito, digo assim: 'Jesus Cristo foi dizer missa numa noite de solidão. Chamou os seus discípulos a quem tinha dado pão, andai cá meus filhinhos que vos quero confessar. Amanhã de manhã eu vos dou de comungar, o meu corpo serve de hóstia e o meu sangue de vinho real. Três vezes ao deitar, os pecados que tiver, Deus lhos há de perdoar'.”
Para Maria de Lurdes, 69 anos, outra moradora na Lapa dos Dinheiros, a mudança de horário também não foi um problema. Encontramo-la no tanque público, a esfregar a roupa com sabão azul-esverdeado. Todavia, como trabalhou na área da geriatria, reconhece que “se calhar para os lares, hospitais, por exemplo, em que deitam as pessoas cedo, talvez não tenha sido boa ideia a mudança, mas para mim até foi melhor, são 6h30 da tarde e agora estou a lavar roupa no tanque”, explica Maria de Lurdes, que ouve o terço desde que se conhece como gente.
“Oiço o terço todos os dias, por causa desta mudança, vou ouvi-lo mais tarde. Desde sempre, de muito nova, que oiço o terço, nunca me lembro de ter ficado sem ouvir o terço. E agora como tenho um tablet, oiço também quando quero”, demonstra a moradora da Lapa dos Dinheiros. “Não interessa a hora, vou continuar a ouvir o terço, com todo o gosto, é uma das coisas que nos ajuda imenso a levar a vida para a frente”, refere ainda Maria de Lurdes.
Levar a vida para a frente na companhia da rádio é o que também alumia Odete Oliveira, 66 anos. “Sempre ouvi o terço desde que me conheço. Gosto de rezar o terço, mas não sozinha, acompanhada, junto-me com a rádio. Para mim é igual, tanto me dá o horário. Havia de já estar na cama às 8h30 da noite? Nem pensar. Peço por toda a gente, peço para acabar a guerra, peço por todas as criancinhas. Está sempre sintonizado na Renascença, é só carregar no botão”, mostra Odete.
Na Lapa dos Dinheiros, com cerca de 300 habitantes, há muitos a carregar no botão da rádio, todos os dias, para ouvir o terço. E hoje para se ouvirem na rádio. “Quer dizer, isso vai dar em algum lado? Ai! E quando ouvirem a minha voz?”, larga, surpreendida, Odete Oliveira.