Nas margens da JMJ

André viveu na montanha-russa da droga até cair no inferno da prisão. Vai quebrar o ciclo?

24 ago, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta (texto), Ricardo Fortunato (imagem)

Aos 34 anos, André Moreira sabe bem o que é cair e levantar-se. Puxa a fita do filme da vida atrás e sabe bem onde e como falhou. Quer que o capítulo das drogas se encerre e escrever uma nova temporada que tenha um desfecho diferente. Não pensa voltar à prisão. A luta já sabe que será constante, mas a fé poderá ser o motor da mudança.

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André viveu na montanha-russa da droga até cair no inferno da prisão. Vai quebrar o ciclo?
André caiu com estrondo no mundo da cocaína. Levou-o aos furtos, que o puseram na prisão. Agora quer mudar de vida.

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Desde os 14 anos que André gostava de tudo o que dá adrenalina. Podia ser a velocidade das motas, ou uma noite a fumar haxixe. Sempre gostou de tudo o que lhe fizesse aumentar o ritmo cardíaco. Quando a cocaína lhe entrou pela vida adentro, nunca lhe soube fechar a porta. Mas foi ela que lhe abriu os portões da prisão. Cinco anos para pagar os furtos de carros e burlas com cartões que lhe sustentaram o vício.

Foi esta sucessão de factos levou André ao Vale de Acór − instituição que trabalha na recuperação de pessoas com dependência do álcool e da droga. E é isso que o trouxe à caminhada de quase 15 quilómetros do Cais de Sodré até ao Parque Tejo, onde juntamente com 1,5 milhões de pessoas – segundo os números oficiais – estaria na vigília e missa do envio presididas pelo Papa Francisco, na Jornada Mundial da Juventude (JMJ).

O jovem está num grupo de quase 200 pessoas da paróquia do Monte da Caparica, liderado pelo padre Pedro Quintela. O dia começou bem cedo às 4h00 da madrugada. A primeira paragem é no Metro e ainda vai passar pelo barco até chegarem Lisboa. A caminhada que se segue é dura. Mas não é nada que Bruno não esteja habituado.

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Desde a adolescência e até aos 23 anos, o álcool e o haxixe sempre fizeram parte da vida de André. Deixou de estudar cedo e fez de pequenos trabalhos forma de vida, até conhecer a futura mulher e migrar de Reguengos de Monsaraz para Cascais.

Prontamente conseguiu um trabalho num hotel. Seria para a piscina da unidade de quatro estrelas, mas uma demissão abriu-lhe as portas do bar. Bingo. Esteve lá durante 10 anos. Dinheiro, emoção, pessoas diferentes todos os dias e acesso direto a muitos vícios.

Futebol, claques e os amigos do surf

Pouco tempo depois, as coisas começaram a mudar. Começa a ir sozinho ao futebol. Nessa altura, os fim-de-semana passa-os em Alvalade para seguir o seu Sporting. Algumas das pessoas que conhecia do surf e nadadores-salvadores das praias da Linha de Cascais encontra-os nas rulotes de bifanas.

“É aí que começa a descambar”, revela André. As tardes antes dos jogos eram vividas com “muito haxixe à mistura”. Mas não só. “Aí eu começo a perceber que havia ali algo mais. A maior parte deles consumia cocaína”, recorda.

Não resiste e experimenta. A diferença, diz, é enorme. “Via a diferença de comportamento entre o álcool, o haxixe e a cocaína. Ganhas uma estríca, uma adrenalina no corpo”, diz. “Quando estás numa claque isso faz todo o sentido”, acrescenta.

É o princípio do fim de uma fase da vida de André. Primeiro, começou por ser uma grama ao fim-de-semana. Só para os jogos. O tempo passa e ele começa a chegar a casa depois dos jogos e a sentir necessidade de “dar mais nela”.

Depois já não é só ao deitar, é também ao acordar. De repente, começa a ser por tudo e por nada. Domina-lhe a vida. “O consumo já era uma necessidade para estar bem no dia a dia”, afiança. De uma grama por dia, passa para duas. O peso da droga cai-lhe em cima da vida. Tornou-se complicado de gerir “a vida familiar e o dinheiro da família.”

"Ou ela ou eu"

A companheira confronta-o. Pensa que ele tem outra mulher. Garante que nunca teve. A traição aconteceu, mas foi com a droga. André abre o jogo e diz-lhe o que se passa. E ela faz-lhe um ultimato: “Ou ela ou eu”.

Decide parar. Até estavam a pensar ter um filho. Mas a decisão de não consumir dura pouco tempo. Chega o verão, as festas, e volta à mesma vida. Mas nesta altura, a mulher faz-lhe nova ameaça: “Se queres ter um filho, então tens mesmo de parar”, recorda.

Faz uma reflexão e tinha duas hipóteses: ou deixava a relação e consumia livremente, ou parava e construi-a uma família.

Tem uma conversa com a família dele e com a família dela. Pedem-lhe para fazer uma recuperação numa clínica de desintoxicação, mas ele acredita que consegue sozinho.

Aguentou uns meses. A mulher engravida. A menina nasce. E nesse dia, ele sucumbe. Para comemorar, volta a consumir. A semana em que a mulher esteve na maternidade, passou-a de “roda no ar”.

Neste vaivém, com a bebé nos braços pára outra vez de “cheirar”. Só dura mais uns meses. Volta em grande. Não aguenta mais e acaba por sair do hotel em que trabalha. Perdeu peso. A droga começa a mudá-lo. Arranja um emprego como jardineiro. Mas aí já não ganha tanto dinheiro, mas cada vez gasta mais com os consumos. Isso tem de novo um impacto em casa.

“Deixei de ter os 70 ou 80 euros de gratificados diários, trabalhava num hotel de quatro estrelas, que mantinham boa parte do vício. Tenho de recorrer às economias pessoais”, relembra. A relação não aguenta mais este rombo.

“Eu desculpava-me que era dinheiro para copos. Mas ela sabia que era a droga”, frisa. Nessa altura, já pouca atenção dava a filha, só pensava em formas de conseguir cocaína. Acaba por sair de casa.

Trabalho cai, começam os furtos

Esta montanha-russa, ainda tem mais subidas à terra e descidas ao inferno. Até que a corda-parte. Deixa de trabalhar.

“Quando começas a consumir à séria deixa de dar para trabalhar. Passei a ser porteiro e tinha de estar mais focado. Não conseguia”, defende.

Entretanto, tinha começado a viver num hostel. Aí conhece um rapaz. Tornam-se companheiro de consumos. O dinheiro deixa de existir, mas a droga pede liquidez.

“Estávamos já mesmo sem dinheiro e ele faz-me essa proposta, começarmos a fazer esses pequenos assaltos, eram mais roubos e furtos”, concretiza.

Foram quase quatro meses nessa vida. Facilmente faziam 300 euros numa noite. Havia sempre dinheiro para os consumos do dia seguinte. Atacavam em parques de estacionamento com pouco movimento, junto às praias, e nas escolas aproveitando os momentos que os pais iam deixar os filhos e se descuidavam com o que deixavam nas viaturas.

Ia tudo de vento em poupa, até que chegou o dia que tudo correu mal. Após um assalto em Lisboa ele e o companheiro entraram no comboio. Para azar dele, na estação de saída, a PSP fazia uma operação policial. Parecia que ia passar sem ser descoberto, mas quando está a sair da revista cai-lhe do bolso o martelo que usava para entrar nos carros.

A inevitável prisão

É detido. Assume tudo. Não delata o companheiro de roubos. Vai a julgamento. Leva com cinco anos.

Acaba no Estabelecimento Prisional de Lisboa. “No momento em que chego à prisão o meu mundo cai, desmancha-se ali mesmo”.

Ao entrar na cela, pensa: “O que fizeste com a tua vida. Já não bastava ter feito tanta porcaria a nível familiar e agora acabas preso”.

Tinha uma grama de cocaína no bolso que, garante, passou nas revistas. Olha para ela e diz que a mandou fora. Se não fosse naquela altura, afirma agora, nunca mais teria deixado de consumir. Se a prisão não o mudasse, o que mudaria?

Até agora, garante, nunca mais tocou na droga. Pouco tempo depois foi transferido para Caxias. Cumpriu ao todo nove meses, até que lhe foi proposta a entrada numa instituição para fazer uma recuperação da dependência das drogas. Agarra a oportunidade. Após muita procura surge o Vale de Acór, na Costa da Caparica.

Novo mundo no Vale de Acór

Está na instituição há 14 meses. “Mudou a minha vida e a maneira como a vejo”, acredita.

Primeiro foi a terapeuta Maria que conseguiu que ele restabelecesse a ligação com a filha que perdeu durante anos. “Recuperei a minha ligação a Deus e a Jesus, numa peregrinação a Fátima. Fez-me repensar o caminho que eu queria”, afirma.

Já está na fase final do tratamento e pensa no futuro. Quer agarrar a chance que teve de poder estar a ver a filha. Começou a fazê-lo há três meses, uma vez a cada duas semanas. “Tenho de voltar a restabelecer a confiança da mãe e dos avós”, considera.

A luta com a droga sabe que será um combate permanente até morrer. Trabalho espera encontrá-lo como motorista. No passado, trabalhou numa empresa de congelados e gostou. Quer voltar a fazê-lo.

Em relação à experiência da vida na comunidade, garante que o ajudou a reencontrar-se. Fê-lo gostar do silêncio. Mas sobretudo sente agora que “não estou sozinho”.

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  • Adelaide Gonlçalves
    25 ago, 2023 Fátima 21:49
    Jesus anda aí, como se verifica em cada história de vida. Gosto de pensar que na Eucaristia toma todas as histórias humanas, de todos os tempos, abençoa-as e parte e reparte, para serem comungadas, depois de verdadeiramente restauradas, recuperadas e libertadas. Seja Deus louvado

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