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Os familiares deles morreram na Revolução.“É importante lembrar que o 25 de Abril não foi só flores”

23 abr, 2024 - 06:24 • Fábio Monteiro (texto), Maria Costa Lopes (vídeo e fotografia)

Há 50 anos, já depois de Marcello Caetano ter sido retirado do quartel do Carmo, cinco pessoas morreram na Rua António Maria Cardoso. Mas o 25 de Abril ficou para a história como uma revolução “sem sangue”. Para as famílias das vítimas, a falta de memória “é um insulto”. E uma dor.

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Os familiares deles morreram na Revolução. “É importante lembrar que o 25 de Abril não foi só flores”
Os familiares deles morreram na Revolução. “É importante lembrar que o 25 de Abril não foi só flores”

Praça dos Restauradores, 10 de abril. Passam poucos minutos das 15h30. Esmeralda e Ana Arruda aterraram em Lisboa há menos de 24 horas. Voaram de Dartmouth, nos Estados Unidos da América, acompanhadas pelos maridos, com um único propósito: estarem presentes na antestreia do filme “Revolução (sem) Sangue”, realizado por Rui Pedro Sousa, no cinema São Jorge.

O filme, adaptado do livro “Esquecidos em Abril”, exuma um capítulo pouco conhecido da história da revolução: a morte de cinco pessoas (quatro civis e um funcionário da polícia política) na Rua António Maria Cardoso, junto à sede da PIDE/DGS.

As expectativas de Esmeralda e Ana são, por isso, elevadas. Para as duas emigrantes portuguesas (já reformadas), naturais da ilha de São Miguel, Açores, o filme é mais do que uma reconstituição histórica. São Irmãs de João Arruda, uma das vítimas, e encaram o momento como uma recuperação da memória. E uma tentativa de justiça póstuma.

“Por nós [família], o João nunca será esquecido. Infelizmente, pelo Governo português, foi completamente esquecido. Ainda hoje muitas pessoas não acreditam que houve mortos no 25 de Abril. Mas infelizmente houve. E o João foi um deles”, diz Esmeralda.

Passadas cinco décadas do dia “inicial inteiro e limpo”, como grafou Sophia, a ideia de que o 25 de Abril foi uma revolução sem sangue – como o título do filme ironiza – ainda persiste. Seja em manuais escolares ou em discursos políticos, é rara a menção às vítimas.

“Quando há as celebrações de Abril, a Presidência da República nunca, nunca menciona as vítimas. Eu vejo sempre. Mesmo quando trabalhava, gravava. Até hoje não houve ninguém da presidência que dissesse qualquer coisa sobre as vítimas. Nunca mencionam as vítimas. Para nós é um insulto. Para as vítimas de Abril é um insulto”, diz Esmeralda.

João Arruda, 20 anos, frequentava o curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tinha consciência política, participava em ações contra o Estado Novo, distribuía panfletos do PCP e MRPP. No espírito, era um revolucionário.

“O sonho dele era um Portugal livre, ele sonhava com o 25 de Abril”, garante Esmeralda.

O jovem açoriano provinha de uma família extensa (um de 13 irmãos), pobre e humilde. Frequentou o seminário de Angra do Heroísmo. Com 18 anos, veio para o continente estudar, ainda com o intuito de ser padre. Passou pela Universidade Católica de Braga, mas acabou por fugir ao sacerdócio.

Mais preocupado com política do que com religião, João mudou-se para Lisboa.

“Tinha medo da inteligência dele, porque ia além da idade dele. Confiava nele, mas tinha muito medo das coisas que ele fazia. Quando viajava [até aos Açores], dos livros [políticos] que trazia – que era tudo proibido. Mas éramos muito unidos. Ele era muito amigo das irmãs”, recorda Ana.

Os últimos mortos do regime

O irmão de Esmeralda e Ana e mais três portugueses morreram no último espernear do Estado Novo. O episódio é pouco conhecido.

A 25 de abril de 1974, por volta das 20h20, perto de uma centena de populares, que horas antes tinham assistido aos eventos no Quartel do Carmo, confluiu na Rua António Maria Cardoso. O objetivo? Manifestarem-se diante da sede da PIDE/DGS.

O futuro da polícia política, então, ainda era uma incógnita. Dentro do Movimento das Forças Armadas (MFA) havia fações, próximas do general António de Spínola, que pretendiam “sanear” a PIDE, em vez de a extinguir – algo já documentado pelas historiadoras Irene Pimentel e Luísa Tiago de Oliveira.

Os gritos e palavras de ordem dos populares avolumavam-se, quando, do alto do edifício da PIDE, sem aviso, alguém (cuja identidade nunca foi conhecida) disparou sobre a multidão. Quarenta e cinco pessoas ficaram feridas, quatro morreram: João Arruda, Fernando Reis, Fernando Giesteira e José Barneto.

Cerca de uma hora depois, morreu também António Lage. O “servente assalariado” da PIDE, 32 anos, natural de Loivos, Chaves, saiu do edifício. E logo foi detido pelos militares, que, entretanto, haviam acorrido ao local e bloqueado os acessos da rua.

Assustado com os gritos dos populares – “matem-no, matem-no, matem-no” –, Lage tentou fugir e acabou baleado nas costas.

Na sequência destas mortes, o MFA foi obrigado a reagir, a tomar uma decisão quanto à PIDE. O edifício foi tomado na manhã de 26 de abril – e a polícia política extinta.

O passado continua presente

Os cinco mortos não se conheciam entre si. E não há explicações definitivas sobre o que terá levado os quatro civis até à Rua António Maria Cardoso.

Fernando Giesteira, 17 anos, nem tinha grandes convicções políticas. Morava em Lisboa há quase dois anos. Trabalhava no Cova da Onça, um bar situado no número 244B da Avenida da Liberdade. Provinha de uma família conservadora, profundamente católica, de Vreia de Jales, concelho de Vila Pouca de Aguiar.

50 anos depois, Ana Giesteira e Albano Ribeiro deixam o carro no parque de estacionamento Avenida da Liberdade 245 – precisamente na ponta oposta ao extinto Cova da Onça. O casal veio de Vila Nova de Cerveira para a antestreia do filme. São 17h00.

Para a irmã de Fernando Giesteira, antecipa-se uma noite de emoções. “A minha mãe morreu com saudades do filho. E morreu a pensar no filho. Tenho a certezinha absoluta. É verdade que no último suspiro que deu chamou pelo filho. Portanto, isso é uma mágoa que eu tenho”, conta.

Em abril de 1974, Ana morava em Lisboa. Trabalhava como doméstica e estava grávida do primeiro filho. A última vez que viu o irmão foi cerca de quinze dias antes da revolução. Um encontro que não esquece.

“A tristeza maior que eu tenho é [lembrar] a alegria nos olhos dele. A loucura com Lisboa que ele tinha, o ‘vou ser assim, vou conseguir ser gerente de um banco’. As palavras dele martelam-me na cabeça. A alegria quando ele me viu, o abraço que a gente deu. Nesse dia, quando me despedi dele, eu estava quase para ter o meu filho. E eu senti aqui uma dor”, diz, apontando para o peito. “Foi a última vez que o vi.”

Ana chora. Procura lenços de papel. O passado continua presente.

Na época, Albano Ribeiro, cunhado de Fernando, estava ligado ao PCP. E assistiu de perto a tudo.

“É importante lembrar que o 25 de Abril não foi só flores. Foi muito sofrimento. E eu que andei na rua, também era um jovem com 20 anos. Estive no Quartel do Carmo, estive na perseguição aos ‘pides’ no Bairro das Colónias, onde inclusive um dos comandantes da PIDE vivia: o Silva Pais”, lembra.

Com o 25 de Abril, “mudou tudo”. “Principalmente no que toca aos direitos e garantias das mulheres”, diz Albano. Ana ouve as palavras do marido e assente com a cabeça. “Mas a democracia é muito frágil, tem de ser defendida.”

Os mortos “não foram muitos, mas o meu pai foi um deles”

Falta meia hora para as luzes do cinema se apagarem. Carlos Reis é o último dos familiares das vítimas a chegar ao São Jorge. Uma enchente de curiosos e famosos já se aglomera no átrio.

A família de António Lage não está presente. A família de José Barneto também não – nem autorizou o retrato daquele pai de quatro filhos, escriturário no Grémio Nacional dos Industriais de Confeitaria, que morreu com 38 anos. O filme conta apenas a história de quatro mortos.

Carlos mora na margem sul de Lisboa, teve um dia de trabalho normal. E agora trouxe a esposa e filhos para uma recriação das últimas horas de vida do pai: Fernando Barreiros dos Reis.

Memórias tem poucas. Carlos tinha apenas 33 meses quando Fernando morreu. “A história de vida que conheço dele, que me foi contada, é que basicamente era um bom rapaz, um bon vivant, que estava a cumprir serviço militar”, conta.

Fernando Barreiros dos Reis, então com 23 anos, era militar e estava destacado na Companhia Disciplinar de Penamacor – unidade para onde o Estado Novo tinha por hábito enviar elementos da oposição ou militares com problemas de obediência. Álvaro Cunhal e José Manuel Tengarrinha passaram por lá.

Quando se deu a Revolução dos Cravos, o militar estava em Lisboa de licença. Por iniciativa própria, fardou-se e saiu à rua.

“Pensou eventualmente que poderia ajudar à revolução. Aquilo que viria a ser a revolução. Queria dar o ar da sua graça”, lembra Carlos.

Carlos não acredita em homenagens, em placas ou nomes de ruas. Mas acha que é preciso preservar a memória do pai e dos que morreram a seu lado. Um “esforço” que nunca foi “realmente feito”.

Se tivesse hipótese, passados 50 anos, o que é que diria ao pai? “Se calhar, obrigado. Porque se temos os dias que temos hoje, se calhar devemos a ele e aos que morreram com ele. Não foram eles, naturalmente, que iniciaram a revolução, não foram eles que lutaram pela nossa liberdade, mas foram eles que deram a vida, fruto dessa mesma revolução. Felizmente não foram muitos, mas o meu pai foi um deles.”

A pergunta que deixou Marcelo sem resposta

Dentro do São Jorge, todos os fotógrafos e jornalistas estão focados nos atores e atrizes do filme. As famílias das vítimas passam despercebidas, ninguém as reconhece. Os dois casais da família Arruda têm de furar uma multidão para conseguirem tirar uma fotografia junto ao cartaz do filme.

Sem ser para uma gravação que entra no final da longa-metragem, nunca as famílias dos mortos do 25 de Abril tinham estado juntas debaixo do mesmo teto.

Pouco a pouco, os presentes no átrio do cinema encaminham-se para as salas. Um dos espetadores – que confirmou a presença à última hora e que não passa despercebido – é Marcelo Rebelo de Sousa.

Acompanhado pelo conselheiro Pedro Mexia, Marcelo tem lugar reservado, na sala principal, junto a uma das portas de acesso.

Mal Esmeralda Arruda cruza essa mesma porta, repara no Presidente da República. E não perde a oportunidade. Aproxima-se e pergunta: “Por favor, posso cumprimentá-lo?” Marcelo levanta-se logo.

Sem perder tempo a explicar que é da família de João Arruda, Esmeralda continua: “Sr. Presidente, tenho muito respeito pelo senhor, mas tenho algo aqui que tenho de desabafar.” Marcelo acede: “Diga, diga.” Esmeralda prossegue: “Qual a razão de, até hoje, nas comemorações de Abril, as vítimas nunca serem mencionadas?”

Marcelo fica espantado com a pergunta, arregala os olhos. E responde: “Eu não sei.”

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