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Entrevista a Carlos Silva

"Não há desculpas". Governo de maioria absoluta deve valorizar a Concertação Social

21 abr, 2022 - 22:06

Sindicalista liderou os destinos da UGT durante nove anos e no próximo fim de semana, no XIV Congresso da central, que se realiza em Santarém, passa o testemunho ao novo Secretário-Geral, também socialista e bancário, Mário Mourão.

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Em entrevista à Renascença, Carlos Silva faz um balanço dos seus mandatos como líder da central sindical: as conquistas e as dificuldades sentidas para pôr em prática o diálogo social num período em que os partidos da Geringonça impuseram o desvio do debate das questões laborais da Concertação Social para o Parlamento. Assumindo-se como frontal, não poupa nas críticas à CGTP, a algum patronato e ao governo, mesmo quando é do seu partido; ao Orçamento de Estado, que impõe mais sacrifícios e continua a penalizar a classe média. Lembra que com maioria absoluta, as responsabilidades do Governo são maiores. E diz acreditar que será possível ter um salário Mínimo de 900 euros em 2026, mas lembra a proposta da UGT: 1.000 euros em 2028.

Foi eleito Secretário-Geral da UGT há nove anos e este fim de semana, despede-se, no Congresso de Santarém. Que balanço faz destes anos?

Os balanços são sempre difíceis de fazer, sobretudo quando se referem a um período conturbado da vida do país e da Europa. Estes nove anos foram uma sucessão de crises: a do subprime, a da austeridade, a da geringonça – que foi uma crise anti Concertação Social. A pandemia não ajudou na Europa nem no país nem a que o Movimento Sindical tivesse o seu condão de proximidade aos trabalhadores, nas empresas e locais de trabalho. E agora, a guerra na Ucrânia que, realmente, era a última coisa que nos faltava.

Portanto, só posso dizer que ainda cá estamos, com resiliência, com capacidade de intervenção, com os trabalhadores mobilizados. E naturalmente, agora, num novo ciclo da política portuguesa, em que faremos o que for necessário – sobretudo a partir do próximo domingo – para continuar a responder aos anseios e às expetativas dos trabalhadores. Mas foram nove anos muito complicados.

Mesmo assim, houve conquistas. Para a central, quais foram os pontos altos?

O Salário Mínimo Nacional (SMN) é uma conquista da central em 2014. Num governo que implementava políticas de austeridade da troika (e foi muito além), a verdade é que conseguimos acordos. O 1º Acordo de Concertação, que eu subscrevi, na altura com o Dr. Pedro Passos Coelho, foi o do aumento do SMN de 485 para 505 euros, a partir de 1 de janeiro de 2015.

Antes, 2013 foi o ano de “conhecer os cantos à casa”, mantendo o espírito de Concertação que é apanágio da UGT. Depois no final de 2015, houve Eleições Legislativas, que Passos ganha, mas acaba por não ser Primeiro-Ministro. É António Costa que é nomeado, pelas razões que todos conhecemos.

A partir daí, há o desenrolar de todo um conjunto de bandeiras, que sendo do movimento sindical e da UGT, em particular, foram agarradas pelos partidos mais à esquerda no Parlamento, que achavam que essas bandeiras eram suas e que o Parlamento era uma antecâmara da Concertação Social. Nós tentámos sempre contrariar essa ideia.

E a verdade é que os patrões estiveram sempre com a UGT e a UGT com os patrões nesse sentido; não no de estarmos ao lado do patronato. Mas quando precisámos de procurar aliados na defesa da Concertação Social, foi o que fizemos. E foi um tempo muito complicado.

Ainda assim, fizemos um acordo com o Partido Socialista em 2018 sobre o Reforço da Negociação Coletiva e Combate à Precariedade. O ano passado fizemos mais um acordo sobre as qualificações e a alocação para esse desígnio. Mas gostaríamos de ter ido muito mais longe. Era preciso desbloquear mais a negociação coletiva.

Na prática, esses acordos deram resultados efetivamente positivos para os trabalhadores?

Nem tudo foi positivo.

Por exemplo?

O combate à precariedade, que estava no Acordo de 2018 e queríamos ver implementado. Também não há dúvida que só em setembro de 2019 é que algumas matérias desse Acordo foram implementadas. Levou demasiado tempo. As questões da Legislação Laboral, como sabe, foram sempre muito exigidas pela esquerda parlamentar junto do Governo minoritário socialista. E da UGT, nalgumas matérias houve resistência, noutras nem tanto.

Esperemos que a discussão da Agenda do Trabalho Digno seja retomada do ponto em que ficou e não volte tudo princípio, como quer o patronato

Há uma matéria que, indiscutivelmente, foi boa para os trabalhadores: o aumento do SMN. Contra todos aqueles que diziam que o aumento do SMN ia trazer, falências, insolvências, gerar desemprego. Isso não aconteceu e as empresas acabaram por ter que se acomodar.

Tem que se alterar o paradigma dos baixos salários. E quando António Costa vem defender que é necessário - ou pelos menos gostaria - que durante o 1º semestre de 2022 se alcançasse, por um lado, um Acordo sobre a Agenda do Trabalho Digno e por outro, um Acordo sobre Política de Rendimentos e Competitividade, significa que tem na agenda matérias que são salariais, mas também são laborais.

Não foi possível tudo, mas a UGT sempre esteve disponível para dar os seus contributos. A Concertação Social não resolve tudo, mas neste país há organizações políticas e sindicais que são contra a Concertação Social. Tentaram sempre fazer tudo para o seu esvaziamento. E quando há algum acordo celebrado com a UGT, a nossa central é sempre acusada – por esses que estão sempre contra a Concertação – de assinar tudo, com todos: com os governos, com os patrões. Assinamos quando temos de assinar; não assinamos tudo.

Valeu a pena, embora o acordo para a dinamização da negociação coletiva tenha ficado longe das expetativas. Algumas dessas matérias estão implementadas na Agenda do Trabalho Digno, que acabou por “não ver a luz do dia” porque o governo caiu. Esperemos que ela seja retomada no ponto em que ficou e não no ponto de partida, como querem os patrões.

Ou seja, o governo agora liberto dos partidos da Geringonça, não tem desculpas para não recentrar o diálogo social na Concertação Social

Neste momento não há argumentos, nem à esquerda nem à direita. É um governo de maioria absoluta, que tem uma responsabilidade muito superior. Portanto, porque não há desculpas para não se implementarem determinadas medidas que têm a ver com a vontade política do governo.

Uma das medidas que consta do Programa do Governo é que o Salário Mínimo atinja ou até ultrapasse os 900 euros em 2026. Acha que é possível?

Acredito que é possível. A CGTP há muito que defende, “0 mais depressa possível, 850 euros”. Ora, “mais depressa possível” dá para tudo. A UGT colocou um patamar e uma data. Antes do PM falar nos 900 euros, a UGT colocou, o ano passado, o patamar dos 1.000 euros em 2028. Com base no PRR e no Portugal 2030.

Temos que, efetivamente, ultrapassar o paradigma dos baixos salários. E mais: a competitividade e produtividade, o crescimento da economia portuguesa não pode continuar a fazer-se à conta dos rendimentos dos trabalhadores, não apenas pela via salarial, mas também com a elevada carga fiscal que os rendimentos do trabalho continuam a ter.

1.000 euros em 2028: na nossa opinião, é um patamar tangível. Mas com o que tem acontecido do ponto de vista externo, há aqui fatores que podem ser um bloqueio. Se o problema da guerra se mantiver, se se agravar a subida da inflação, o descontrole dos preços e naturalmente, a perda de rendimentos dos trabalhadores, é evidente que temos que olhar para a subida do SMN como uma ainda maior necessidade para a reposição do poder de compra. Quando isso acontecer, temos é que perceber qual é a capacidade que as empresas têm de suportar esse aumento.

Apesar de ser sempre insuficiente, a verdade é que o SMN tem crescido sempre mais que a média dos outros salários. E tem havido um esmagamento dos salários que estão próximo do mínimo. São engolidos pelo aumento do Salário Mínimo.

Vão ser engolidos, o SMN este ano aumentou 40 euros. E se aumentar todos os anos 50 euros, significa que os outos salários são empurrados e também vão crescer.

Às vezes não crescem ou na mesma proporção.

Sim, mas a verdade é que ninguém nos garante que a negociação coletiva evolua no mesmo sentido e no mesmo patamar. É que isso não aconteceu. Por isso é que nós projetámos junto dos parceiros patronais e do Governo, a necessidade de empurrar o Salário Mínimo, como forma de pressão para os salários intermédios. Eles têm que crescer. E não têm crescido porque há uma enorme retração das empresas e também do próprio Estado, em manter os salários médios muito próximo do salário mínimo.

Vamos fazer um exercício: se nos próximos seis anos o SMN crescer até aos 1.000 euros significa que cada vez empurramos mais os salários que neste momento estão nos 800-850-900, até aos mil euros. Pode haver até mais 2,5-3 milhões de portugueses que passem a ganhar o SMN. Empurrando o SMN, obrigamos os salários médios – mais cedo ou mais tarde - a crescer. Se não for pela negociação coletiva, infelizmente, tem que ser por via legislativa.

Contestação social vai aumentar e se for preciso, UGT vem para a rua

A propósito do exemplo do Estado, que acabou de referir … falando agora do Orçamento, o Ministro das Finanças Fernando Medina já afirmou que este ano não haverá qualquer aumento intercalar para os trabalhadores da Administração Pública. O Governo não irá além dos 0,9% de aumento que já deu em janeiro. Prevê-se uma inflação de 4% ou mais, quer dizer que vai ser mais um ano de perda de poder de compra. Do que já viu do Orçamento acha que era possível fazer esse aumento intercalar?

Há doze anos que não há aumentos salariais na Administração Pública e o que tem acontecido são ínfimas atualizações. Não vale a pena vir com a conversa das valorizações salariais pelo avanço na carreira porque isso não apanha a generalidade dos trabalhadores. E sabemos que as avaliações de desempenho na Administração Pública deixam muito a desejar.

É uma questão de vontade política. Cabe ao governo decidir, em cada momento, até onde quer chegar. É evidente que manter os salários da Administração Pública sem aumento, vai criar uma convulsão. O que é que o governo pode esperar dos trabalhadores que continuam a ser castigados? E um governo de maioria absoluta não tem onde se esconder.

Portanto, podemos esperar um agudizar da agitação social e laboral

A partir do momento em que o Ministro das Finanças fez o anúncio das propostas do Governo, percebemos que é um Orçamento mais contido, com alguns sacrifícios. Mas como lhe dizia há pouco em relação aos meus nove anos, os portugueses vêm de sacrifício em sacrifício. Onde é eu isto vai parar?

O governo tem que ter atenção que os portugueses, no dia 30 de janeiro, depositaram uma determinada expetativa na eleição do PS. E querem traduzir essa expetativa num governo com estabilidade, mas que também responda às reivindicações de todos, trabalhadores e empresários. Os trabalhadores não podem ficar com uma mão cheia de nada. Portanto, é espectável que a situação social se agrave e as centrais sindicais têm de estar preparadas para responder aos trabalhadores e dar-lhes, pelo menos, o alento para fazerem a sua luta.

A UGT terá que vir para a rua?

Se tiver que vir, vem. Não será comigo, mas a UGT é o que é. O meu camarada Mário Mourão, que será o próximo Secretário-Geral, já garantiu que vai evitar o conflito ao máximo, mas há coisas que nem ele nem ninguém consegue evitar, que é responder aos trabalhadores e à necessidade de lhes dar as justas expetativas.

Na UGT não desistimos de reivindicar, embora saibamos quais são as condições do país e o enquadramento europeu. Muitas das coisas em Portugal, hoje como há muitos anos, dependem da boa vontade da Comissão e do Conselho Europeu. Por exemplo, em termos fiscais, já ouvimos o Primeiro-Ministro dizer várias vezes que espera “luz verde” de Bruxelas para a redução de alguns impostos. A UGT fará o que tiver que fazer. Preferimos sempre o diálogo e o princípio do compromisso, mas se continuarmos a receber uma mão cheia de nada … de boas intenções está o inferno cheio.

Orçamento do Estado continua a penalizar a classe média

Retomando o OE, pode dizer-se que é um Orçamento de austeridade?

Não quero entrar na querela político-partidária porque há uma parte da Oposição que diz que é um Orçamento de austeridade. Não quero entrar por aí.

Em termos objetivos

Em termos objetivos é um orçamento de guerra, que está preparado para responder àquilo que neste momento o conflito causa de consequências graves para a economia mundial, com o aumento dos preços. 40% dos cereais que se comercializam no mundo vêm da Rússia e da Ucrânia. Os preços dispararam, a inflação é galopante, os custos da energia, não sabemos onde vão parar, querem insistir nas sanções à Rússia, mas a Alemanha ainda não desarmou e continua a comprar-lhe gás natural à Rússia. Há uma grande incerteza.

O governo reparou o OE em função deste contexto de guerra, mas eu acho – e a UGT também – que devia ter ido mais longe na parte dos trabalhadores, na questão social, nas taxas intermédias dos escalões do IRS, não desagrava completamente a classe média, a carga fiscal continua a ser elevada.

Não podemos olhar para um Orçamento na perspetiva – e peço que não me interpretem mal – só para os pobrezinhos, só para quem ganha pouco. Então e os que sustentam o crescimento do país? A classe média está onde? O Orçamento do Estado continua a penalizar a classe média, porque nas taxas intermédias do IRS, que deve ser muito mais progressivo, as pessoas não sentem nada. Se os trabalhadores não virem o seu custo de vida desagravado, como vão reagir? Nesse aspeto, há uma atratividade maior e mais apoios para as empresas – que é importante para manter postos de trabalho – mas os trabalhadores, polo menos uma parte importante, ficaram fora deste Orçamento. E acho que devia ser mais ambicioso nesse aspeto.

E além disso, o governo continua a preocupar-se mais com a redução do défice do que com a ajuda às famílias

A questão das contas certas é muito importante, mas quando olhamos para os grandes países europeus, que são potências e pertencem ao G20, como a Itália e a França, nunca se preocuparam com o défice. O que importa é que contentem os seus cidadãos, independentemente dos resultados eleitorais. Se a França pode fazer porque é que não podemos fazer também?

Jorge Sampaio disse uma vez “há vida para além do défice” e nós devíamos olhar para isso num momento em que as famílias deviam ver crescer os seus rendimentos. É nesse aspeto que eu acho que o governo devia ter sido mais ambicioso, mais atrevido, dar às empresas, mas também aproveitar as verbas que aí vêm dos fundos estruturais (PRR e Portugal 2030) para ajudar mais as famílias e a classe média portuguesa.

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