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Germano Almeida. “Divirto-me a escrever” e “uso-me como personagem”

29 out, 2021 - 06:59 • Maria João Costa

O cabo-verdiano é este ano o homenageado do festival Escritaria que invade as ruas de Penafiel até domingo. Germano Almeida está a lançar “A Confissão e a Culpa”, o livro que fecha a trilogia do Mindelo. O escritor admite que para ter tempo para a escrita, já deixou de fazer muita coisa.

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Sempre escreveu sem intenção de publicar. Em 2018, venceu o Prémio Camões, e agora está a publicar o último livro de uma trilogia que tem como personagem principal um escritor.

Germano Almeida, autor cabo-verdiano é o homenageado deste ano do Festival Escritaria em Penafiel. Em entrevista ao programa Ensaio Geral da Renascença, o escritor confessa que se tem divertido ao ver a sua obra celebrada nas ruas da cidade.

Nesta entrevista o autor de “O Fiel Defunto” recorda as memórias de infância e dos contadores de histórias que ouvia na rua à luz da lua, critica os cabo-verdianos que ambicionam escrever, mas não leem outros autores e confessa que se diverte a escrever.

Aos 76 anos, Germano Almeida assume que se usa a si próprio como personagem dos seus livros. Em “A Confissão e a Culpa” (ed.Caminho) a personagem do escritor que é morto, tem muito de si.

Ver as ruas de Penafiel cheias de palavras suas, ver a sua obra em várias montras da cidade, na biblioteca. É um ambiente de festa?

É um ambiente de festa e agradeço ser o escritor homenageado desta vez no Escritaria. Cheguei aqui na segunda-feira e fartei-me de admirar e ver as minhas fotografias espalhadas pela cidade. Diverti-me imenso, confesso a ver isto, porque não contava. É um prazer grande estar aqui e vamos aproveitar para lançar o livro "A Confissão e a Culpa" que fecha a trilogia do Mindelo.

Tornou-se um leitor, muito antes de ser escritor. É verdade que andava pela Boa Vista à procura de livros para ler?

Sim, é verdade. Não havia muita gente com muitos livros. Sempre que eu sabia que alguém tinha livros eu ia visitá-lo e depois pedia emprestado. Ainda hoje o livro em Cabo Verde não é considerado um valor que se possa guardar. Um livro, uma vez lido, não de deita fora, mas não se dá muita importância. Eu conhecia diversas pessoas que tinham livros e ia pedi-los para me darem emprestados. Depois tomava alguns, devolvia, tomava outros

E quando é que a escrita começou a acontecer, a tornar-se um ofício incontornável?

A escrita tornou-se um ofício incontornável, já eu era um homem com mais de 50 anos. Sempre escrevi, mas sem intenções de publicar. Escrevia para o prazer da escrita. Por exemplo "A Ilha Fantástica" escrevi-a toda no norte de Angola quando estava na tropa. Eram as minhas recordações da Boa Vista. O romance que escrevi na tropa era passado no período da guerra, mas era mais inventivo, tinha mais imaginação.

O Germano Almeida é sobretudo um contador de histórias. Isso está profundamente enraizado na tradição de Cabo Verde.

Exatamente. Lembro-me quando era miúdo, nós pagávamos a algumas pessoas que eram contadores de histórias. À boca da noite, porque não tínhamos eletricidade, nem televisão, tínhamos o luar, sentávamos à porta de casa e esses fulanos passavam horas infindas a contarem histórias. Claro que eram histórias que repetiam, mas nós ouvíamos sempre essas histórias

E lembra-se dessas histórias?

Das que me lembro, havias histórias em torno de Carlos Magno e dos Doze Pares da França, depois havia muitas histórias de feiticeiras e ladrões. De maneira que tínhamos uma imaginação povoada dessas histórias e para mim escrever foi sempre relacionado com contar histórias. Quando eu escrevo estou sempre a contar uma história a alguém, mesmo que imaginário.

Mas o Germano Almeida, costuma dizer que um escritor é uma pessoa como as outras.

Defendo que sim! Um escritor não é diferente das outras pessoas. Os homens da Boa Vista que me contavam histórias, muitos deles eram trabalhadores da casa do meu pai. Durante o dia eram trabalhadores braçais e à noite transmudavam-se a contar histórias.

Neste livro que está a lançar "A Confissão e a Culpa", um dos personagens é o escritor Miguel Lopes Macieira que no "Fiel Defunto", é quem nos fala, é o escritor que é morto. Aqui a certa altura diz "Não há conhecimentos inúteis para quem quer escrever livros". Tudo é matéria literária?

Eu defendo que sim. Tudo pode ser matéria literária. A gente pode ter conhecimento e não usar. Mas acho que para quem pretende escrever, todos os conhecimentos podem vir a ser uteis.

Mesmo que não tenha essa perceção imediata?

Mesmo que não tenha consciência disso. Ao encontrar um pedaço para ler, pode ter uma utilidade que não advinha. Eu honestamente posso dar-me a este luxo, porque já tenho uma idade provecta e já li muito e também já tenho a vista mais fraca. Hoje em dia posso escolher o que quero ler ou não, mas quando se é jovem não. Há tempos um jovem veio ter comigo porque queria que eu lesse umas coisas que ele tinha escrito. Queria publicar. Eu disse, bom, você vai deixar isto e eu vou ler. Depois perguntei-lhe: 'você lê muito?' e ele disse, 'não, não, eu não leio, não quero ser influenciado!'. Disse-lhe você anda a ser influenciado pela vida, pelas pessoas com quem convive. Ainda o melhor é ser influenciado por livros! É evidente que sofremos influencias de todas as espécies.

Muito do que está nos seus livros, não só nesta trilogia do Mindelo, mas em todos os outros, para quem vive em Cabo Verde, há muito que é possível ser identificável? Há personagens que são por exemplo pessoas conhecidas das ruas do Mindelo? Já teve problemas sérios por causa do que escreve?

Não, porque as pessoas são mais verosímeis do que reais. Eu gosto dessa ideia de escrever e as pessoas acharem que estou a tratar de outras. Claro que não estou. Eu crio personagens, nunca a partir de uma pessoa, mas de diversas. Há uma efabulação das pessoas que nos faz transformá-las em personagens, mas eu gosto da ideia de serem personagens que as pessoas acham que são identificáveis.

Por isso mesmo, alguém já lhe disse que aquele é o fulano tal?

Muitas vezes!

E o que é que responde?

Ok, pode ser fulano tal, mas tu também estás no meu livro! Tenho uma história que conto sobre um fulano, quando escrevi "O Mar da Lajinha". Ele foi identificar todos os personagens, porque nós eramos um grupo grande que ia tomar banho de mar todas os dias, às seis da manhã. Ficamos lá a contar histórias e ele disse-me 'identifiquei as pessoas todas que estavam na Lajinha". E eu disse-lhe: 'tu, também!'. Ele disse-me, 'não, não me vi'. Então não leste bem! Não leste bem porque também estás lá. 'Ah, então vou ler outra vez'! e disse depois 'de facto tens razão, eu também estou lá!' e não era verdade!

Em "A Confissão e a Culpa" é o livro onde ouvimos a voz que faltava nesta trilogia. No primeiro livro, "O Fiel Defunto" temos o protagonista, o escritor Miguel Lopes Macieira que foi morto em pleno lançamento do seu livro, depois em "O Último Mugido" temos a voz da viúva, uma personagem curiosa e agora temos o autor do crime. Que confissão é esta?

Já me ensinou agora uma coisa muito interessante! O autor do crime. Tenho sempre chamado de assassino, mas não gosto. Porque acho que ele não é um assassino. É um personagem que acaba por cometer esse ato um bocado tresloucado em função de uma ideia que tem. Quando escrevi os outros dois livros, as pessoas queixavam-se de que ficavam sem saber porque é que ele matou. E eu dizia, eu também não sei. Até agora ele não me contou porque é que matou. Mas fiquei com isto na cabeça e pensei, então vamos tentar contar a história na perspetiva do autor do crime. Vou ficar a usar essa sua expressão. Eu acho que ele não é um assassino.

E resolve contar a história do autor do crime de que forma?

O livro começa com o julgamento, a sua condenação mortal e quando lhe dão a oportunidade de se defender, acusando a mulher de o ter enganado com o escritor, ele recusa. Não lhe passa pela cabeça a ideia de que a mulher o engana com o escritor. Mas ele acaba por matar o escritor quando descobre que ele está em vias de deixar de estar apaixonado pela mulher para estar apaixonado por outra mulher. Embora acredite que eles têm uma paixão perfeitamente platónica, ele acaba por num ato pouco consciente acaba por assassinar o escritor, mas não assume isso como um crime. Continua a gostar do escritor como pessoa, embora ele sentisse que o escritor o intimidava. Achava-o um escritor demasiado convencido da sua sabedoria (risos)

Há aqui também uma certa critica a esses escritores mais "vaidosos"?

(risos) Porque nós em Cabo Verde temos muito esses fulanos que escrevem um poema, e acham que são poetas, escrevem um pequeno conto e já acham que são escritores. Não estou a criticar, mas acho que valorizariam mais a nossa literatura se se empenhassem mais a escrever, porque é escrevendo muito que nós aprendemos a escrever e escrevendo muito, no conjunto da nossa obra pode haver alguma obra válida que enriqueça a nossa literatura.

Volto às palavras do seu personagem, o escritor Miguel Lopes Macieira e ele diz "as pessoas pensam que não, mas escrever é uma atividade exigente, agradável, mas muito exigente". Para si também é isso, agradável e exigente ao mesmo tempo?

Sim, agradável. Divirto-me imenso a escrever, mas para já sei que há muitas coisas que eu deixo de fazer para poder ter tempo para escrever. De facto, é uma atividade solitária. Eu quando escrevo tenho como companheiros os personagens, gente viva, não! Não suporto escrever com gente presente. Os personagens fazem-me companhia. De todas as maneiras, nem sempre custa, mas gasta-se uma parte do nosso tempo dedicando à escrita.

E às vezes brinca com a sua própria literatura. Por exemplo neste livro "A Confissão e a Culpa" a certa altura refere outro livro, "O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araujo". Brinca com os seus livros?

E com os meus próprios personagens também, e comigo próprio também, porque digo que se não brincar comigo, não tenho o direito de brincar com os outros. Por exemplo, o Miguel Lopes Macieira eu diria que é o meu retrato, ao contrário. Mas sem dúvida que muito de mim está lá. Aliás, em quase todos os meus livros eu uso-me de certa forma como personagem, muitas vezes ao contrário.

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