24 set, 2020 - 08:00 • João Carlos Malta , Joana Bourgard (vídeo) e Joana Gonçalves (infografia)
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A 18 de março, o Presidente da República anunciava ao país a mais temida das notícias. Portugal ia confinar. Marcelo Rebelo de Sousa justificava a ação com uma pandemia que não é “como aquelas que já conhecemos na nossa democracia”. “Está a ser e vai ser mais intensa. Vai durar mais tempo até desaparecerem os seus últimos efeitos”, avisou.
O presságio revelou-se certeiro e, nesse mesmo discurso em que mandava os portugueses fecharem-se em casa, Marcelo já alertava: “Só se salvam vidas e saúde se, entretanto, a economia não morrer.”
Foi exatamente isso que muitos empreendedores e empresários continuaram a fazer pelo país durante os dois meses e meio que o confinamento durou. Neste período foram criadas 1.226 empresas, segundo os dados que a consultora D&B forneceu à Renascença tendo por base informação do Ministério da Justiça.
Os números de novos negócios revelam um decréscimo de 71% relativamente ao mesmo período do ano passado, quando surgiram 4.260 empresas. A pandemia pôs fim a uma tendência positiva na criação de empresas, de que os últimos anos foram exemplos.
Os setores dos transportes, dos serviços, da restauração e alojamento foram os que mais sofreram. No que respeita a novas empresas, todas as atividades sofreram reduções face ao ano anterior superiores a 48%. As indústrias e as tecnologias de informação e comunicação são as que, ainda assim, tiveram uma queda menos pronunciada.
O PR, no tal discurso de 18 de março, pedia a que cada fizesse a sua parte. “Não parar a produção, não entrar em pânicos de fornecimentos como se o País fechasse, perceber que limitar contágio e tratar contagiados em casa é e tem de ser compatível com manter viva a nossa economia”.
“Nós temos de fazer a nossa parte”, exortou Marcelo. “Assim é em tempo de guerra, as economias não podem morrer."
Mesmo assim, o que se seguiu foram despedimentos, "lay-off" e insolvências de empresas. A Covid-19 trouxe para a economia portuguesa um manto negro de pessimismo de que ainda não se conhecem as últimas consequências.
A dinâmica, mesmo que menor, de criação de novas empresas, tal como em muitas outras dimensões da vida económica e social em Portugal, põe a nu um país a duas velocidades.
Há um litoral dinâmico em que a macrocefalia de Lisboa (386 empresas) e do Porto (276) corresponde a mais de 1/3 das unidades criadas no período de confinamento. Braga, Setúbal, Aveiro e Faro ainda tem mais de 50 empresas criadas, mas depois vemos o Interior com dinâmica muito baixa.
Os serviços e o retalho são os setores em que mais apareceram novos negócios.
Os números são tão grandes quanto aterradores: até junho deste ano, a chegada de turistas caiu 65% e as perdas em exportações foram de milhares de milhões de euros em todo o mundo. O setor do turismo embateu de frente com a Covid-19. Mas em Espinho, há um casal que não se amedronta com as dificuldades. Acha até que é o momento ideal para avançar com a criação de uma agência de viagens. Mas como?
“A Covid-19 de certa forma só vem intensificar a necessidade deste tipo de conceito, e deste tipo de viagens. O turismo tem de mudar, há uma necessidade enorme, neste momento, de passarmos para um turismo sustentável. A palavra já está na boca do mundo há muitos anos, mas a verdade é que as pessoas não sabem o que significa”, começa por dizer Isabel Neto, de 33 anos.
Ao lado, Nuno abana com a cabeça em sinal de consentimento. O jovem de 34 anos garante que a ideia é a de criar uma alternativa ao turismo de massas, “preocupando-nos com o número de pessoas que levamos a viajar”.
“Os nossos 'tours' têm no máximo 12 pessoas. Temos de ter uma maior consciencialização da sustentabilidade do nosso negócio, criando um impacto positivo quer para o viajante, quer para as comunidades para as quais estamos a viajar”, acrescenta sobre a Levartravel.
Também no Norte do País, região que registou mais novas empresas, surgiu a Softparticle. Março marcou a chegada da pandemia de Covid-19 a Portugal, e uma pequena revolução na vida de Adérito Ribeiro.
Aos 45 anos, o vírus obrigou-o a mudar rapidamente. Tinha uma empresa grossista ligada ao ramo alimentar, com a qual fazia distribuição maioritariamente para o setor da restauração, que fechou por completo nos dias a seguir ao primeiro caso de infeção pelo novo coronavírus. A iminência de ficar sem clientes nem sequer lhe bateu à porta, entrou pela vida deste empresário adentro.
Adérito, contudo, não é de ficar parado. “Já existia a ideia de criar uma outra empresa para funcionar como ‘trading’”, explica. A pandemia traz com ela a necessidade de compra e venda de máscaras e outros equipamentos de proteção individual, e o empresário do concelho de Oliveira de Azeméis não deixou passar a oportunidade.
Foi imperioso avançar, porque ficou reduzido a pequenas vendas para supermercados, dos quais era fornecedor a par dos restaurantes. Apesar da queda a pique do negócio que liderava, este foi o sustentáculo e a base do que viria a seguir. Adérito tinha uma carteira vasta de clientes a nível nacional, porque sazonalmente fazia “cabazes de natal para empresas”.
Acha que a venda de máscaras veio para ficar no nosso dia-a-dia e que, em setores como a restauração e a aviação, serão doravante a regra. Confrontado com a possibilidade de o negócio cair, Adérito diz que não tem para já solução, mas que confia na capacidade de se adaptar.
“Não tenho nada em mente [no que diz respeito a novos negócios], mas vão surgir quando me dedicar a isso. Surgem muitas oportunidades. Quando acontecer vou saber. Confio na minha intuição.”
Por fim, na capital, há cerca de dois anos, que quatro alunos da Faculdade e Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) desenvolviam um projeto para curar fobias através de realidade virtual e realidade aumentada. Mas o novo coronavírus baralhou tudo e obrigou-os a reinventarem-se. Apareceu a Nevaro que viu no vírus o propulsor para arrancar.
O objetivo do grupo de quatro alunos da FCUL era tratar fobias, como a ajuda da biomédica e da gamificação.
Já havia testes a serem feitos em hospitais, mas a pandemia suspendeu-os num ápice. Não se perdeu tudo, transformou-se. Foi exatamente o trabalho que estavam a fazer que lhes permitiu perceber o que é que na área de saúde era necessário quando a Covid-19 chegou, e acelerar para (finalmente) constituírem uma empresa.
Houve um momento de reflexão sobre o que fazer. Não pararam, adaptaram. “Tivemos de nos reinventar e adaptamos a plataforma que estava a ser utilizado no Hospital da Luz para a aquisição dos sinais fisiológicos para outro propósito”, lembra Rita Maçorano, de 23 anos.
O grupo começou a perceber, através de entrevistas a pessoas da área da saúde, que havia uma necessidade para colmatar: monitorizar o quadro sintomatológico da Covid-19. O passo seguinte foi reajustar a plataforma para registar sinais vitais e indicadores do vírus: a temperatura, a tosse, e a capacidade respiratório.
“Adaptamos a plataforma e criámos a Nevarforcovid”, concretiza. Tudo num curto espaço de tempo, “porque a necessidade era emergente”. De repente foi necessário criar uma empresa, e tornar tudo mais formal. A isso obrigava a necessidade de proteger a plataforma com os protocolos necessários de proteção de dados.
Na calha, está já outra ideia. O stress provocado pelo intenso trabalho para arrancar com uma nova empresa, e as dificuldades do trabalho remoto que obrigaram a várias horas de trabalho, e fizeram com que alguns elementos da equipa começassem a dar sinais de esgotamento. Mas o que podia ser só um problema, levou estes jovens a procurar uma solução. E essa foi o aparecimento de uma segunda aplicação: a Holly.
“A maior parte da população, segundo diz a OMS, sofre de algum distúrbio mental, cobre uma percentagem gigantesca da população. O que tentámos trazer é a ciência e as estratégias que permitam lidar com essas realidades para o dia-a-dia de todos nós, sendo que nem todos vão a um psicólogo regularmente”, avalia o responsável pelo desenvolvimento tecnológico da empresa, André Manso, de 26 anos.
Co-CEO da empresa, Rita concretiza e detalha: “São estratégias de psicoterapia como o ‘tracking’, ou um pequeno diário para refletir sobre situações das nossas vidas.”
Em suma, a aplicação tenta desenvolver estratégias de psicoterapia que seriam feitas com psicólogo, e substituí-los por um guia mais digital com estratégias de jogo. “Dar murros para libertar energia, e relaxamento. Damos também métricas objetivas de como a pessoa está”, identifica.
O outro lado da realidade, mostra que no total do tecido empresarial português, se registaram 1.392 novas insolvências desde o início de 2020 até ao final de julho, o que representa um crescimento de 4,2% face a 2019 (mais 56 casos).
Numa economia deprimida, em que o PIB cai em valores recorde, acima dos 16%, e em que ninguém sabe que efeitos a pandemia ainda poderá ter, há ainda assim um país e pessoas que continuam a apostar no futuro e a arriscar criar novos negócios.