Congresso

Acolhimento de crianças. "Há um grande contraste entre a realidade e aquilo que a lei diz"

18 jan, 2024 - 23:57 • Ângela Roque

Médicos, juízes, técnicos sociais e investigadores reúnem-se esta sexta-feira na Universidade Católica, em Lisboa, para “repensar o sistema”, quando apenas 3,5% das crianças retiradas aos pais estão a ser acolhidas em famílias. Miguel Simões Correia, um dos organizadores do congresso, diz que não bastam leis boas, é preciso ter meios humanos e materiais para as fazer aplicar. E espera que o tema não seja esquecido pelos políticos na campanha eleitoral.

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Portugal é o país com mais crianças institucionalizadas na Europa e na Ásia Central: acontece em 95% dos casos em que são retiradas às famílias de origem. Os dados do mais recente relatório da UNICEF tornam ainda mais atual o congresso "Acolhimento em Portugal – Repensar o Sistema", uma iniciativa da associação Candeia, em colaboração com a Universidade Católica, onde a iniciativa vai decorrer esta sexta-feira, em Lisboa.

Miguel Simões Correia, da Candeia, é o organizador do Congresso. Em entrevista à Renascença diz que não basta o país ter boas leis, é preciso garantir que são aplicadas.

“A lei já dá preferência ao acolhimento familiar face ao acolhimento residencial. Diz que se deve sempre dar preferência a esse tipo de resposta, porque permite que a criança mantenha um enquadramento familiar quando é retirada à família biológica. Mas, se olharmos para a realidade e para os dados, só 3,5% das crianças que são retiradas é que são colocadas em acolhimento familiar, e isto obviamente gera um grande contraste entre a realidade e aquilo que a lei diz que devia acontecer”, sublinha.

Para este responsável, é preciso mais investimento. “O enquadramento jurídico está muito avançado em várias matérias, mas depois são escassos os meios que são postos à disposição dos serviços”. E espera que os políticos não ignorem o tema na campanha eleitoral para as eleições de março.

“Não tem havido visibilidade suficiente sobre este tema, que permita ver os serviços que trabalham nesta área como uma prioridade a investir, com financiamento e recursos humanos. Portanto, sim, é claramente um tema relevante para esta campanha, porque devia haver mais medidas, que não passassem só por legislação, mas também por políticas públicas”, afirma.

Riscos e desafios para quem acolhe e quem é acolhido

O Congresso "Acolhimento em Portugal – Repensar o Sistema" quer ajudar a encontrar soluções para as crianças e jovens retirados às famílias de origem, partindo da experiência que têm tido na associação Candeia e com o projeto "Amigos P’ra Vida". Miguel Simões Correia, presidente da associação, diz que definiram cinco prioridades a debater, a começar pela duração do acolhimento.

“Uma criança fica em média acolhida ainda mais de três anos. É um período muito longo, põe em causa o seu bem-estar e qualidade de vida, na vertente da saúde mental e da normalização da sua vida social”, refere. Para além disso, considera que os projetos de vida “não estão a ser propostos com o rigor e a atenção necessários ao superior interesse da criança”, ao mesmo tempo que algumas soluções que existem também não estão a ser devidamente divulgadas, como “é o caso do apadrinhamento civil”.

Para as famílias que acolhem há igualmente muitos desafios. “Os serviços não estão ainda capacitados, e às vezes até a própria legislação, ao nível de políticas públicas, não existe um enquadramento que dê resposta às necessidades das famílias”. Também os apoios aos jovens que estiveram em acolhimento são ainda escassos, embora Miguel Simões Correia considere positiva a recente alteração à lei que possibilita a reabertura do processo de promoção e proteção após os 18 anos de idade, o que não acontecia até agora.

“A criança acolhida, a partir dos 16 anos normalmente já tem a possibilidade de ir para um apartamento de autonomia, mas muitas vezes ou não há vagas, ou é difícil. Aos 18 anos já são eles que tomam a decisão, muitas vezes optam por regressar para a família biológica, mesmo contra o conselho da casa de acolhimento, ou tentam arranjar trabalho noutro país”, conta, lembrando que nessas idades “é difícil antecipar as dificuldades” de relacionamento com os familiares ou de enfrentar a vida sozinhos.

“Muitos acabam por fazer cessar o processo de promoção e proteção, mas arrependem-se rapidamente. O que acontece é que antes, quando se arrependiam, o processo já não podia ser reaberto porque já tinham mais de 18 anos, e agora foi aprovada precisamente a possibilidade de, havendo este arrependimento por parte do jovem, o poder fazer”, explica, adiantando que há muitas situações limite.

“Temos casos que conhecemos e que acompanhamos, de jovens que ficam mesmo em situação de sem abrigo, por exemplo, porque não têm para onde ir. Ficam totalmente desamparados, sem trabalho, sem casa, sem rendimentos e alguns deles acabam por ir viver para a rua. Portanto, esta possibilidade de reabrir o processo é um passo grande nos apoios à população ex-acolhida”, afirma.

Questões a refletir no Congresso que quer “repensar o sistema”, com a ajuda de médicos, juízes, técnicos sociais de várias instituições de acolhimento e de investigadores universitários. “Teremos nos nossos painéis pessoas ligadas à magistratura, técnicos da Santa Casa, de casas de acolhimento, famílias e jovens acolhidos, que também têm de ser ouvidos. A ideia é juntar estas pessoas e, com o contributo também da academia – estamos em parceria com a Universidade Católica, e teremos uma investigadora em cada um dos painéis –, olhar para os estudos já feitos e para o trabalho desenvolvido nas casas de acolhimento, na Santa Casa, etc, e perceber quais é que são as soluções possíveis”.

A experiência da Candeia e dos "Amigos P’ra Vida"

O projeto Candeia nasceu em 1991, tornando-se depois uma associação e IPSS. “O objetivo foi sempre dar mais qualidade de vida a quem está em situação de acolhimento, criando relações de estabilidade que sejam saudáveis. Daí o nosso lema ‘da relação nasce a Luz’ “, explica Miguel Simões Correia.

A associação promove o desenvolvimento e a autonomia das crianças e jovens, com atividades direcionadas para cada grupo etário (dos 6 aos 11, dos 12 aos 14, dos 15 aos 18 e para os maiores de 18). “Neste momento acompanhamos 230 jovens, e contamos para isso com mais e 100 voluntários que participam nas nossas atividades, sobretudo lúdicas, mas também de apoio ao estudo. A ideia é estar presente na vida deles o mais possível. Este ano temos 130 atividades previstas, culminando com os campos de férias no verão, mas o segredo está neste acompanhamento ao longo do ano”, indica ainda.

Em 2015 criaram o projeto "Amigos P’ra Vida", através do qual a associação “seleciona, forma e acompanha adultos e famílias voluntárias que desejem estabelecer laços de amizade com uma criança ou jovem que viva numa casa de acolhimento residencial, com o objetivo de criar uma relação de amizade”.

“Pretendemos criar uma plataforma onde adultos e famílias se possam inscrever como voluntários” e “entidades competentes possam sinalizar crianças e jovens que beneficiem desta relação”, explica.

O projeto baseou-se na experiência que um casal de animadores da Candeia fez com duas crianças de uma casa de acolhimento residencial, desde 2006. Foi lá que as conheceram e se tornaram sua “família amiga”. Em 2007, as duas crianças foram reintegradas na família biológica, mas desde essa altura que continuam a dar-lhes o seu apoio, e à mãe, com quem vivem.

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