JMJ seis meses depois

Cónego Paulo Franco: "A Igreja ter um lugar para todos não significa que compactua com tudo"

08 fev, 2024 - 06:30 • João Carlos Malta (entrevista), Marta Pedreira Mixão (vídeo)

Foi o homem que há seis meses esteve à frente da logística da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e contactou com milhares de jovens e muitas periferias. Paulo Franco vê o acontecimento como um marco histórico de nova forma de estar, mas reconhece que a "Igreja tem perdido a sua influência na sociedade, talvez porque se tem fechado numa imagem muito hermética".

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Entrevista Paulo Franco
Veja a entrevista ao cónego Paulo Franco

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A Igreja Católica “não é o lugar onde estão os perfeitos”, deve acolher todos, mas “não significa que compactua com tudo", afirma o cónego Paulo Franco, numa entrevista à Renascença publicada no dia em que estreia o documentário “Nas margens da Jornada Mundial da Juventude”.

Durante a JMJ, o sacerdote assumiu um papel central na organização do evento que trouxe 1,5 milhões de pessoas a Portugal. Foi o homem que coordenou a logística.

Numa entrevista à Renascença, gravada em dezembro do ano passado, e em jeito de balanço, fala sobre um dos temas mais importantes do pontificado de Francisco, as periferias, que em sentido mais lato representa as pessoas que sofrem de algum tipo de discriminação e vivem nas margens da sociedade.

A bênção a casais do mesmo sexo, recasados e os alegados paradoxos de uma Igreja que se diz inclusiva, o cónego Paulo Franco não foge a nenhum tema.

O cónego Paulo Franco é atualmente presidente do Grupo Renascença Multimédia, funções que iniciou no ano passado e que aos 51 anos acumula com as de cónego do Cabido da Sé de Lisboa, desde 2017, e pároco do Parque das Nações, desde 2005. É ainda juiz do tribunal eclesiástico de Lisboa. Recentemente, deixou a direção do Secretariado de Ação Pastoral do Patriarcado de Lisboa.

Meio ano depois da Jornada Mundial da Juventude, que se realizou em Lisboa, de que formas concretas é que este evento contribuiu para que a mensagem de uma Igreja que não quer excluir chegue decisivamente às pessoas?

Queria falar não apenas sobre aquilo que foi a Jornada, mas sobre aquilo que nos deixou como legado, que nos deixou enquanto provocação a todos nós sociedade, a todos nós Igreja, a todos nós. Penso que ninguém fica indiferente àquilo que aconteceu ao longo deste ano, deste grande acontecimento.

E permita-me que sublinhe o acontecimento e não o evento, como muita gente lhe chama. Porque um evento, muitas vezes, fica arrumado no tempo, enquanto que um acontecimento desejamos que marque a história e pode inclusivamente transformar a história. E eu acredito que a JMJ é um verdadeiro acontecimento, que muda, transforma e cria novidade na história.

Sobre esta questão que me colocou acerca das periferias e de como é que a Jornada pode ter sido um símbolo ou não desta relação com as periferias, permita-me que eu que utilize três exemplos. O primeiro deles é uma vontade que nós organizadores tivemos desde o início, que foi o envolvimento destas periferias ou destas pessoas que se encontram tantas vezes em situações de periferia. E que elas tivessem uma presença e uma ação concreta efetiva na preparação da JMJ.

Um testemunho que os organizadores da Jornada deixaram, aquando da sua realização em 2019 na Cidade do Panamá, foi o do chamado campo da reconciliação − o lugar onde os participantes podem celebrar o sacramento da reconciliação, confessarem-se, e, pela absolvição, encontrarem no perdão de Deus, uma vida nova.

Queríamos que esses confessionários fossem construídos por alguém que também na sua vida está a fazer um processo de transformação e de purgação. E essa expressão da sociedade, encontramo-la de forma muito concreta naquilo que são os estabelecimentos prisionais. E, por outro lado, quisemos também que fosse um testemunho daquilo que também toda a humanidade é chamada a ser, alguém que deseja sempre melhor, que deseja sempre mais, que deseja sempre transformação para a sua vida.

Documentário "Nas Margens da Jornada Mundial da Juventude"
Documentário "Nas Margens da Jornada Mundial da Juventude"

É um exemplo muito claro de como estas periferias tiveram um lugar e foram valorizadas. E também, de alguma maneira, nós quisemos que a Jornada chegasse até eles e que eles se sentissem também parte ativa daquilo que foi a Jornada Mundial da Juventude.

"Tivemos a vontade desde o início de envolvimento destas periferias ou destas pessoas que se encontram tantas vezes em situações de periferia. E que elas tivessem uma presença e uma ação concreta efetiva na preparação da JMJ."

Outro exemplo, foi o das pessoas com deficiência. Nós tivemos voluntários portadores de deficiência que foram atores na preparação da Jornada.

Lembro-me da Leonor, que estava todos os dias na sede da Jornada a trabalhar connosco e que nos enchia de alegria. Passava a vida a perguntar se era preciso alguma coisa. Dava-nos um abraço e incentivava-nos às vezes, naquelas alturas em que nós estávamos completamente com as franjas em pé, como costumamos dizer.

Outro exemplo, muito claro, foi a relação da Igreja Católica, concretamente com aquilo que são outras expressões cristãs não católicas. Eu acho que todos nós nos lembramos de uma música, de um grande artista português, que foi lançada na Jornada Mundial da Juventude, o Héber Marques lançou aquela música “Este dia de sol”. O Héber pertence a uma comunidade cristã, não católica e evangélica, e ter escolhido a JMJ também para lançar uma nova música enquanto artista, acho que é um sinal de abertura, de que caminhamos juntos, que trabalhamos juntos e que construímos uma mesma realidade.

Até porque referiu que a Jornada não foi um evento, foi um acontecimento e que marca a história, de que forma é que a Igreja aproveitou este balão de oxigénio da Jornada para se rejuvenescer nos seus lugares de decisão e de destaque?

Eu acho que esse é um trabalho que não se vê no imediato. Vê-se a médio longo prazo, ou seja, as coisas na sociedade e, por isso, também na Igreja, não se transformam por decreto. Ninguém se transforma por decreto porque alguém impõe.

Resolvem-se quando interiormente, naquilo que é o entendimento das pessoas, naquilo que são as prioridades das pessoas, as coisas se vão transformando. E, naturalmente, ao irem-se transformando em cada um de nós, nós vamos encontrar espaço para outras coisas.

Eu quero acreditar que em muitas das comunidades cristãs, que se envolveram de forma muito ativa na Jornada, e que estavam fora das comunidades cristãs das paróquias, hoje é gente muito mais ativa e muito mais atenta àquilo de que os outros precisam. É gente muito mais disponível para construir uma Igreja com um rosto diferente.

Não se perdeu, na sua ótica, esta oportunidade de rejuvenescimento da Igreja e está lançada uma semente?

Eu acho que não. Quer dizer, eu não posso falar por toda a Igreja em Portugal, até porque não tenho um conhecimento particular de todas as comunidades. Mas, por exemplo, ao falar da comunidade de que sou parte no Parque das Nações e também enquanto vigário da Vigararia de Lisboa, aquilo que eu vejo nestas paróquias é que muitas pessoas, muitos atores, que estiveram envolvidos na altura da Jornada, gente que às vezes estava na periferia dessas comunidades, hoje é gente muito mais comprometida. É gente que, entretanto, já se disponibilizou para outras coisas, para outros serviços, para outras iniciativas, não apenas pastorais, mas até sociais que vão ao encontro destas periferias.

"[A Igreja transformou-se?] Eu acho que esse é um trabalho que não se vê no imediato. Vê-se a médio longo prazo, ou seja, as coisas na sociedade e, por isso, também na Igreja, não se transformam por decreto."

Uma das coisas muito interessantes foi que os adolescentes tiveram, ao longo de três anos, uma proposta formativa e uma proposta de caminhada cristã muito ligada à Jornada. Quis-se que fosse mais interativa, e que os próprios adolescentes fossem protagonistas da sua própria caminhada cristã.

Eu dou por mim hoje a ver que esses mesmos grupos que fizeram essa preparação, onde se sentiram protagonistas, querem continuar a ter ações concretas junto da comunidade local, junto das periferias, junto dos mais pobres, junto dos bairros.

E eu continuo a ver os adolescentes e os jovens preocupados com isso. Eu acho que são sinais do caminho, e daquilo que aconteceu ao longo da Jornada, e também daquilo para que o Papa os convocou.

Numa sociedade em que a mudança é cada vez mais rápida e em que a pobreza e a desigualdade continuam a crescer, como é que a Igreja e a fé podem contribuir para que os excluídos possam sair da situação em que estão?

Vamos aqui distinguir duas coisas. Uma coisa é a ação da Igreja enquanto agente junto dessas pessoas, outra coisa é a Igreja enquanto anunciadora de uma verdade que ajuda as pessoas na sua vida e na sua condição. Vou começar por este último. Obviamente, quando nós vivemos uma vida iluminada pela fé, vivemos com uma dimensão que vai muito para além daquilo que é a nossa experiência temporal.

Ou seja, as contingências do tempo presente já não têm poder a ponto de nos autodestruir ou de condicionar o rumo que nós traçamos para a nossa vida. Não porque é uma agenda pessoal, mas porque é o cumprimento de uma missão que se recebe. E eu acredito que a vida de fé, marcada por este sentido de missão, por este sentido de defesa da verdade, por este sentido de construção da justiça, faz-nos olhar para a vida de uma outra forma.

A fé nessa dimensão dá-nos uma perspetiva de vida e um olhar e um horizonte completamente diferentes. E mesmo diante das dificuldades, vivemos numa esperança maior que vence essas mesmas dificuldades e que dá sentido até às contingências do tempo presente que tantas vezes nos vão machucando um bocadinho, mas que não nos destroem, porque nós sabemos que não estamos sozinhos e estamos aqui por uma razão maior.

Depois, como é que a Igreja pode ser agente diante dessas periferias? Em que é que pode ajudar? Há duas dimensões fundamentais que a Igreja tem como princípio naquilo que é a sua doutrina social. Por um lado, o princípio da solidariedade, de estar ao lado, de ajudar, de ser sensível, de não ser indiferente.

E essa solidariedade implica, muitas vezes, uma ajuda concreta. Às vezes costuma-se dizer, mas em vez de ajudar, não seria melhor ensinar para a pessoa ser autónoma? É claro que sim, mas se a pessoa estiver a morrer de fome, não sei se tem capacidade para aprender o quer que seja. Primeiro tem de matar a fome, depois vou ajudá-la.

E isso remete para o segundo princípio, que é o princípio da subsidiariedade, ou seja, fomentar, ajudar e dar as ferramentas necessárias para que o outro possa fazer também o seu caminho.

Uma das mensagens mais repetidas pela Igreja Portuguesa desde a JMJ é a do já icónico “Todos, todos, todos”. Há alguma instituição, alguma religião ou local que seja literalmente para todos sem condições prévias para entrar?

Eu espero que seja para todos, todos, todos, que para entrar não haja condições. Depois para permanecer na fidelidade há adesões. O “Todos, todos, todos”, como uma vez o antigo presidente desta casa [a Rádio Renascença] o cardeal D. Américo Aguiar dizia, não significa “tudo, tudo, tudo”. Ou seja, o facto de a Igreja ter um lugar para todos não significa que compactua com tudo.

Tem um lugar para todos, para lhes anunciar uma verdade, uma verdade de libertação, para que eles possam fazer uma experiência nova, e de uma vida nova que Deus lhes quer propor. Depois, se a pessoa quer seguir, quer aderir ou não quer aderir, é uma decisão de cada pessoa. Não pode ser é a Igreja a decidir e a dizer: “Olha tu, como vais dizer que não, então olha, eu não te vou dar o lugar. Não, eu vou-te dar o lugar. Depois tu dizes que sim ou dizes que não. É uma decisão tua, na tua inteira liberdade, depois de acolheres aquilo que eu tenho para te anunciar. Agora eu quero-te aqui. Essa foi a atitude de Jesus. Foi sempre a atitude de dar lugar a todos, de dar, de escutar todos e de ter uma palavra de misericórdia para com todos, mas também de lhes propor uma novidade nas suas vidas.

Porquê? Porque amava as pessoas e, por isso, queria dar uma proposta de libertação e de salvação. E hoje continua a ser essa a missão da Igreja.

Então o “todos” é só para entrar, não para permanecer, certo?

Não. É para a entrada e para permanecer. Porque eu posso permanecer inteiro ou posso não permanecer inteiro.

Temos cada vez vidas mais complexas e é natural que, mediante um conjunto de regras como existem na Igreja Católica, que as nossas vidas, num ou noutro ponto, possam não ir ao encontro daquilo que é defendido pela Igreja….

Não é o que é defendido, é o que a Igreja apresenta como a verdade e que Deus lhe pede que se transmita.

Faz sentido perder essas pessoas, porque num ou noutro ponto da sua vida não se cruzam com aquilo que a Igreja quer?

Isso é partir de um princípio errado, porque isso é partir do princípio de que dentro da Igreja toda a gente tem de ser perfeita. Isso é errado, porque senão onde é que estaria o lugar da misericórdia de Deus para com as pessoas? Para que servia o sacramento da reconciliação para eu me ir purificar diante de Deus? A Igreja é uma enfermaria de gente doente.

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"Eu espero que seja para todos, todos, todos. E que para entrar não haja condições depois para permanecer na fidelidade a adesões (...) o facto da Igreja ter um lugar para todos não significa que compactuo com tudo"

E, portanto, a Igreja é para “todos, todos, todos”, no sentido de que há lugar para que todos façam este caminho onde Deus quer ir, fazendo um caminho também de salvação e de libertação da pessoa. A pessoa não consegue imediatamente? Claro que não! Nós só seremos inteiramente perfeitos quando tivermos junto de Deus no céu. Até lá, somos pecadores, e até lá, Deus envia-nos exatamente à Igreja para que também a Igreja nos ajude a fazer este caminho de conversão e de transformação.

Portanto, a Igreja não é o lugar onde estão os perfeitos, é o lugar onde estão os doentes. Jesus diz: “Eu não vim para os que têm saúde, eu vim para os que estão doentes, para os para os curar. E a Igreja, como instrumento de Deus, tem de ser um lugar onde os acolhe.

Dito isto, não acha que o slogan do “todos, todos, todos” promete mais do que é na realidade?

Ainda bem, porque se não prometesse mais a gente nunca crescia, nunca evoluía. Ainda bem que promete mais….

Referia-me ao como as pessoas, depois de entrarem ou quando chegam, são de facto acolhidas.

E aí vamos bater noutra coisa, nas fragilidades que a Igreja tem, que as estruturas da Igreja têm, sejam paróquias, sejam movimentos, sejam grupos, em que muitas vezes ainda têm dificuldade de viver neste sentido de integração, de viver neste sentido de acolhimento.

"A Igreja não é o lugar onde estão os perfeitos, é o lugar onde estão os doentes."

Às vezes, estão muito fechadas sobre si próprias, às vezes grupos um bocadinho mais pequenos, que têm uma identidade muito própria, um estilo muito próprio, às vezes muito hermético até, e não quero ofender ninguém, às vezes têm pouca disponibilidade para acolher uma coisa que seja diferente.

Uma pessoa que pense de maneira diferente, uma sensibilidade distinta, uma cultura que não é a mesma. E, às vezes, essa dificuldade leva a que a pessoa não se sinta inteiramente querida, não se sinta inteiramente acolhida. E aí é também um sinal de que nós que formamos, que vivemos a vida da Igreja, precisamos também dessa conversão.

Portanto, por mais que a mensagem centralizada da Igreja e da hierarquia vá num determinado sentido, a Igreja, como instituição, com várias ramificações, terá mais dificuldades, depois no terreno, em dar corpo a essa mesma mensagem?

Terá mais desafios, terá mais desafios. E nós estamos apenas a ver o nosso contexto em Portugal, porque se virmos o contexto da Igreja Universal, onde é que nós iríamos? Porque, na Europa, nós ainda temos uma abertura muito grande. Se calhar quando o Papa fala deste “todos, todos”, apesar de o ter dito em Lisboa, não estava apenas, nem sequer principalmente a falar para Lisboa, para Portugal.

"As estruturas da Igreja têm, sejam paróquias, sejam movimentos, sejam grupos, em que muitas vezes ainda têm dificuldade de viver neste sentido de integração, de viver neste sentido de acolhimento."

Estava a dizê-lo para o mundo inteiro, porque se calhar há outras realidades, outras culturas, outras expressões eclesiais da Igreja, onde se calhar esta dificuldade em acolher e em encontrar lugar para aquilo que é diferente é ainda muito mais difícil do que no nosso contexto europeu, por exemplo, ou do que o nosso contexto português. Nós às vezes, somos muito pequeninos e, às vezes, estamos muito fechados sobre nós próprios.

Como dissemos na introdução, o tema da periferia é um dos mais importantes para Francisco. De que forma é que este olhar para os mais necessitados, ou que estão mais longe dos centros do poder, seja de que forma for, mudou com este Papa? Será algo que vai perdurar na ação da Igreja?

Que vai perdurar, isso não há hipótese. Os documentos do magistério da Igreja e dos Romanos Pontífices perduram e de alguma maneira são usados na tradição da Igreja, um bocadinho como referência e, portanto, é inevitável que aquilo que o Santo Padre tem procurado para a sociedade se vá mantendo. E disso não tenho dúvidas nenhumas. Quanto à questão sobre o que ele mudou, ele não mudou a doutrina…

É só uma questão de estilo….

Eu acho que foi uma questão de linguagem, se quisermos, de estilo. Mas o estilo pode abarcar muita coisa, acho que tem a ver com linguagem. O Santo Padre, o Papa Francisco, o facto de ter uma linguagem muito simples, muito terra a terra, muito pragmática, muito humana, leva a que as pessoas consigam entender de forma mais simples aquilo que é a doutrina da Igreja de sempre, porque é a doutrina do Evangelho, da inclusão, da misericórdia, da dignidade da pessoa humana por aquilo que ela é e não por aquilo que ela tem ou por aquilo que ela sabe.

E o Papa Francisco tem insistido muito nisto, porque certamente ele sentia também que essa era uma lacuna da Igreja e que talvez, por isso, a Igreja tem às vezes perdido a sua influência na própria sociedade. E agora não quero, uma vez mais escandalizar ninguém. Mas é verdade. A Igreja tem perdido a sua influência na sociedade, talvez porque se tem fechado numa imagem muito hermética de si própria e pouco disponível também à evolução dos tempos.
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"A Igreja tem perdido a sua influência na sociedade, talvez porque se tem fechado numa imagem muito hermética"

Eu acho que o Papa Francisco veio despertar para isso, veio despertar para um olhar atento àquilo que são as realidades e os tempos de hoje que devem ser lidos com as luzes de sempre, que são as luzes do Evangelho.

A forma conta…

Obviamente, obviamente. Aliás, isto vê-se na nossa realidade humana. Quando nós temos uma criança e estamos a ensiná-la, a maneira como ensinamos a pedagogia tem mais efeito ou mais eficácia, ou menos, dependendo dessa mesma pedagogia. Ora, se a Igreja é uma mãe que nos educa como cristãos, seus filhos, a maneira como a Igreja, enquanto mãe, utiliza uma pedagogia mais efetiva e mais eficaz, também me ajuda a fazer melhor caminho.

A ação social da Igreja é um dos seus pilares fundamentais. Durante a Jornada, fomos ouvindo por parte dos voluntários e pessoas com responsabilidade organizativa que os casos de pedofilia no interior da instituição estavam a dificultar a capacidade de mobilização nas paróquias. Teme que estes casos deixem essa sequela e comprometam de alguma forma esta ação da Igreja, no futuro?

Primeiro, relativamente JMJ, eu nunca senti isso. Sempre estive desde a primeira hora com o senhor D. Américo no projeto da Jornada, e nunca senti que o drama e o flagelo que são os abusos, porque o são, e não há que meter a cabeça debaixo da areia, são um drama, são um problema, são algo grave, tivesse tido uma influência negativa no que diz respeito ao trabalho e à preparação da Jornada.

Mas e se esquecermos a Jornada e olharmos a ação concreta da Igreja no seu dia a dia.

Nós vivemos num país onde eu acredito que as pessoas são inteligentes e sabem ler a realidade. Um caso [de pedofilia] que fosse era gravíssimo, um caso que fosse era a mais do que aquilo que devia de ser. Por isso, a tolerância zero tem sido muito, muito, muito marcada pelo Papa Francisco e pelos bispos que o devem cumprir nas suas dioceses.

E, portanto, em momento algum existe uma justificação para o drama que são os abusos, eles existiram e foram maus. O importante agora é corrigirmos, defendermos as vítimas e procurarmos que isto sirva de cura e de transformação daqueles que têm mais responsabilidade, que são os que de alguma maneira formam moralmente os outros, que são os membros da Igreja. Como acredito que as pessoas são inteligentes, acredito que as pessoas sabem ver para além da parte e sabem perceber que o todo não é igual à parte. E o facto de terem existido realidades negativas e más no seio da Igreja, isso não faz da Igreja necessariamente uma coisa má.

Mas isso é a sua expectativa. Conhecendo, como conhece a realidade, não nota que em termos de imagem esta capacidade de atração da Igreja para com os novos fiéis tenha ficado irreparavelmente danificada?

A minha experiência diz-me exatamente o oposto. Eu acho que o facto de nós também termos enfrentado a realidade levou as pessoas a perceber que Igreja teve a coragem de resolver as coisas, a coragem de olhar para as suas próprias feridas e para as suas próprias dores. Eu, por exemplo, tenho uma paróquia muito jovem, porque tem casais relativamente novos e que têm os seus filhos. Na catequese tenho cerca de cerca de 800 crianças. No agrupamento de escuteiros há cerca de 150 crianças nos campos de férias. E este ano, por incrível que pareça, os números subiram em todas as dimensões. Subiram nos escuteiros, subiram na catequese, subiram nos campos de férias.

Não sente que haja medo por parte das famílias de muito concretamente deixar uma criança sozinha com um padre?

Nós nunca estamos assim sozinhos como a criança. Por exemplo, na minha paróquia nós temos um código de conduta para a defesa e para a proteção das crianças. Desde o ano passado que implementámos um conjunto de regras exatamente para a proteção das crianças e das pessoas vulneráveis. E as pessoas, os membros da comunidade, sentiram confiança na comunidade cristã.

Porquê? Porque nós vemos sinais de proteção, sinais de defesa das crianças, de sinais de defesa dos mais frágeis. E é isso que nós temos de crescer. É exatamente nesses sinais de que estamos aqui para proteger. Estamos aqui para ajudar. Estamos aqui para estar ao lado. E quando assim é, as pessoas confiam.

Ninguém negará que a Igreja tem um papel fundamental no terreno no combate à pobreza. No entanto, o apoio da Igreja aos mais necessitados merece a crítica de alguns setores que o apelidam de caridade e assistencialismo que ajudando, mantém os mais pobres e os desfavorecidos numa situação de dependência. São críticas com algum fundo de verdade ou completamente injustas?

As críticas são sempre críticas, justas ou injustas. São sempre críticas e têm um fundamento para terem sido feitas. Eu não vou discutir se em muitas situações pode ser considerado assistencialismo ou não. O que eu gosto sempre de olhar é, aquela pessoa que ajudei precisava de ajuda ou não? Precisava, então não me culpem por ajudar.

"Nós [padres] nunca estamos assim sozinhos como a criança. Por exemplo, na minha paróquia nós temos um código de conduta para a defesa e para a proteção das crianças. Desde o ano passado que implementámos um conjunto de regras exatamente para a proteção das crianças e das pessoas vulneráveis."

Agora lembro o princípio de solidariedade em que tenho de estar ao lado, tenho que ajudar. Se a pessoa está a morrer de fome, eu não posso dizer olha, vai aprender a plantar, porque ele nem força tem para se levantar, para poder plantar comida, para poder ir pescar um peixe.

Em primeiro lugar, tenho de ajudá-lo. Paralelamente, eu tenho de fazer um trabalho com essa pessoa, de ajudá-la a sair da sua situação miserabilista e encontrar um outro caminho novo para a sua vida. E eu não posso afirmar que a Igreja, nas suas instituições sociais, não o faz. Eu já estive ligado a várias áreas da solidariedade da Igreja. Fui assistente da Cáritas Diocesana de Lisboa, fui presidente de dois centros sociais paroquiais e todos eles com esta dupla necessidade, por um lado, de ajudar objetivamente, porque a pessoa quando está a morrer de fome, tem de se lhe dar comida.

Mas por outro lado, também não podemos ficar só aí. Temos de ajudar a pessoa a fazer um outro caminho. E nas instituições com quem eu contactei e que eu conheço, há também esta preocupação. Também não podemos socorrer-nos da crítica fortuita ao assistencialismo para nos desresponsabilizarmos de ajudar aqueles que precisam, que às vezes é isso que acontece. Critica-se o assistencialismo para nos libertar da responsabilidade de olhar para o meu irmão que precisa de minha ajuda.

Noutra dimensão, a Igreja acaba de abrir a possibilidade de os casais homossexuais poderem ser abençoados por padres, no entanto ressalvou que isso não muda a doutrina tradicional sobre o casamento. Não pode aqui a Igreja ser acusada de estar a realizar uma operação de cosmética e de que na realidade a discriminação continua?

Eu acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra, ou seja, uma coisa é a possibilidade de uma atenção e a Santa Sé foi muito clara na explicação que deu sobre a questão das bênçãos a pessoas do mesmo sexo, ou a casais divorciados, recasados. A bênção é sempre um gesto de súplica a Deus, de pedido de ajuda.

E todas as pessoas têm o direito de pedir ajuda a Deus. Têm o direito de pedir a Deus que as atenda, que as auxilie. Os sacerdotes, diáconos, leigos, enquanto instrumentos de Deus, devem também servir a Deus naquilo que é ajuda aos outros e naquilo que é súplica pelo bem dos outros. E é nesse sentido que eu li, e que eu percebi, a intervenção da Santa Sé através do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre esta matéria, ou seja, que isto não significa uma alteração da doutrina sobre o casamento, mas um sublinhar da importância do pedir ajuda, do pedir proteção, do pedir a presença de Deus.

Traduzindo, isso não quer dizer que a Igreja continua a não aceitar estas pessoas como elas são?

Se não as aceitasse como elas são, elas não tinham lugar na igreja.

Mas se têm de pedir ajuda pelo que são?

Como eu peço. A questão aqui é não diferenciá-las em relação a mim ou em relação a si ou a outra pessoa qualquer, não haver diferença. Ora, eu como pessoa posso chegar a um padre, e pedir uma bênção e não ser negado.

Não deve haver é uma bênção específica sobre aquela união, no sentido de aprovar aquela união como uma união à imagem daquilo que Deus nos criou, homem e mulher. O uni, crescei e multiplicai-vos. Que não haja esta confusão relativamente à doutrina do matrimónio, ou seja, que haja uma atenção à pessoa ou às pessoas e uma súplica a Deus por essas pessoas. Não confundindo isso, com a doutrina sobre o casamento. É isso que a Igreja diz. E é assim, eu repito uma vez mais nós em Portugal estamos num contexto, o Papa quando fala, fala para o mundo inteiro.

Eu em Portugal conheço, na minha paróquia, pessoas que participam na comunidade paroquial em momentos de oração, nas celebrações, que são homossexuais. Ninguém as põe fora da Igreja. Ser homossexual não é um pecado, é importante as pessoas perceberem isso.

Na sua ótica, isto pode ser apenas um primeiro passo no sentido de um acolhimento integral dos homossexuais? Haverá uma paridade entre heterossexuais e homossexuais no casamento?

Relativamente a isso, eu tenho dúvidas de que seja possível mudar. Tenho dúvidas porquê? Nós na Igreja temos dois tipos de leis: as leis divinas naturais, e as leis positivas impostas pelos homens. Relativamente às leis positivas, elas podem ser alteradas, revogadas, mudadas. Podem-se fazer novas leis de acordo com aquilo que é a sua fundamentação. Relativamente à lei divina ou natural, elas não podem ser mudadas porque elas não foram criadas pelos homens, foram criadas por Deus. A lei sobre o matrimónio, sobre o casamento, é uma lei divina. Porquê? Porque nós vemo-la presente no ato da criação, no livro do Génesis, e vemos presente na boca de Jesus nos Evangelhos.

E quanto a isso é difícil, é difícil não, é impossível. Estamos a falar numa lei posta por Deus. Não é uma lei positiva dos homens e, portanto, quanto a isso, eu acho que não podemos mudar a doutrina sobre o casamento, porque é uma lei divina.

Na Jornada houve alguns episódios que revelaram intolerância contra esta comunidade, a invasão de uma celebração, uma bandeira queimada. Como interpretou estes casos? São fenómenos que não representam os católicos ou ilustram um desfasamento entre o discurso oficial e a prática dos fiéis?

São casos, como em tudo na sociedade, existem. Mas são marginais e são expressão muitas vezes da dificuldade que as pessoas têm em respeitar a diferença e em aceitar aquilo que vai para lá da sua forma de pensar. Mas isto não é exclusivo na Igreja, nós vemos isto na sociedade, em várias outras expressões.

"É impossível [comparar casamentos homossexuais a casamentos heterossexuais]. Estamos a falar numa lei posta por Deus. Não é uma lei positiva dos homens e, portanto, quanto a isso, eu acho que não podemos mudar a doutrina sobre o casamento, porque é uma lei divina."

Não falo especificamente sobre este tema da homossexualidade, mas falo de outros temas, de outros temas da sociedade, em que há sempre franjas, há sempre minorias que se sentem altamente ofendidas e que manifestam, às vezes pela força, perdendo toda a razão o seu ponto de vista.

Num evento que juntou um milhão e meio de pessoas é natural que haja uma percentagem, graças a Deus foi mínima, em que isso também se manifestou.

Da agenda oficial, em momento algum houve alguma discussão. Antes pelo contrário, a organização da Jornada veio inclusivamente condenar esses atos e dizer que todos tinham lugar.

E, portanto, eu vejo isso com muita tristeza, porque não é a expressão da Igreja, nem a expressão do Evangelho, nem é a doutrina da Igreja. São fenómenos isolados e tristes. Não é por aí que caminhamos, nem é o caminho do Evangelho.

Nas reportagens que publicámos sobre este tema que denominamos “Nas margens da Jornada”, falamos com uma jovem homossexual, a Carolina, filha de catequistas e que teve este desabafo “O medo foi precisamente de não ser aceite pela Igreja. Para mim, era mesmo muito importante ser aceite pelas pessoas que me rodeavam”. É legítimo que alguém viva com medo de assumir quem é por não ser aceite pela comunidade a que pertence?

Claro que não é legítimo. Claro que é muito triste quando uma sociedade tem no seu seio gente que sente que é rejeitada por alguma razão. Não pode. Seja por razões religiosas, seja por razões políticas, seja por razões sexuais, seja pelas razões que forem.

Portanto, isso é mau. Graças a Deus, eu ouvi essa entrevista e ela diz que também ficou feliz com a Jornada porque sentiu que a acolheu e sentiu-se participante. Bonito, bonito. E isto é um exemplo concreto de que a Jornada foi também sinal de mudança e que também está a iniciar-se ou aprofundar-se um caminho de mudança e de integração dessas pessoas.

Ainda bem, graças a Deus e é importante, todos percebemos que independentemente da realidade das pessoas, estas têm direito a ter um lugar na vida da sociedade e, portanto, também na vida da Igreja.

O casamento cristão é indissolúvel. Qual o sentido teológico ou de pertença à Igreja, de negar a comunhão a quem se divorcia. De que forma é que este ato fala do comprometimento de uma pessoa com a fé?

Uma pessoa divorciar-se não é razão para negar a comunhão. Aliás, não há razão para, em momento algum, a não ser uma situação grave e pública, o ministro negue a comunhão a quem quer que seja.

Reformulo, referia-me aos recasados…

Como diz Jesus, no Evangelho, aí está em situação de adultério e ao estar em situação de adultério, está numa situação pública de pecado visível e público. E nessas situações é pedido às pessoas que se abstenham da comunhão eucarística, até por uma questão de escândalo. Mas em momento algum um sacerdote nega a comunhão.

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"Conheço pessoas que participam na comunidade paroquial em momentos de oração, nas celebrações, que são pessoas homossexuais. Ninguém os põe fora da Igreja, ser homossexual não é pecado".

Normalmente não o deve fazer, até porque eu não sei se aquela pessoa, num momento imediatamente antes, não se confessou, num momento imediatamente antes, não teve uma razão para vir à comunhão. Eu, pessoalmente, nunca neguei a comunhão a ninguém. Por essa razão e, portanto, acredito daquilo que conheço que não é normal um sacerdote negar a comunhão por uma situação dessas.

"[No caso dos recasados] aí estão em situação de adultério e ao estar em situação de adultério, está numa situação pública de pecado visível e público. E nessas situações é pedido às pessoas que se abstenham da comunhão eucarística, até por uma questão de escândalo. Mas em momento algum um sacerdote nega a comunhão."

Outra coisa é essa pessoa vir ter connosco, padres, e expor a sua situação e perguntar o que é que a Igreja diz acerca da sua situação.

Se o seu comportamento fosse o padrão, isto não seria uma questão, mas é. Faz sentido que se mantenha esta regra, havendo pessoas que muitas vezes saíram de um casamento de forma involuntária, ou até foram vítimas de situações de abuso e de violência.

Não pode acontecer.

Mas acontece.

Pois acontece, infelizmente. Mas há uns anos, o Santo Padre, na Amoris Laetícia, dizia isso mesmo, estas pessoas têm de ser acompanhadas e não pode ser tudo colocado no mesmo saco. Nós não podemos olhar para as pessoas e formatá-las. O pastor da comunidade, o pároco deve saber acompanhar cada caso e identificar cada caso, percebê-lo e ajudar a pessoa a fazer o seu caminho.

"Daquilo que conheço não é normal um sacerdote negar a comunhão por uma situação dessas [aos recasados]."

O Santo Padre disse que até se mudou a lei da dos tribunais eclesiásticos e da administração da justiça eclesiástica, exatamente para facilitar e para agilizar os processos, de forma a perceber, nesses casos, quais é que são as situações em que, objetivamente, as primeiras uniões se calhar não foram válidas. Uma pessoa que é vítima de abuso isso, por exemplo, pode ser caso de nulidade de casamento.

Porquê? Porque o chamado bem do outro, bem do cônjuge, não foi garantido. E esse é um pilar para que o casamento seja válido, que esteja garantido o bem do cônjuge.

O que é que Santo Padre pede? Pede que se saiba fazer um acompanhamento das pessoas, que saibam identificar os problemas das pessoas, de forma a ajudá-las a resolver a sua situação para que possam ter acesso à comunhão eucarística.

Mas clarificando, na sua opinião, o recasamento é motivo para privar alguém da comunhão?

Eu não faço leis, eu não faço leis. O que Jesus diz no Evangelho é muito claro. Aquele que está casado repudia a sua esposa e casa novamente comete adultério contra a primeira união. O que a Igreja diz é que o adultério é um pecado grave. Estamos de acordo. Correto? O adultério é um pecado grave.

Ora, se é um pecado grave, a pessoa não está numa comunhão plena com Deus. Isto é o que a doutrina da Igreja diz, o que catequese da Igreja diz, é o que Jesus diz no Evangelho. O resto fica na consciência da pessoa. A pessoa diante disto é que se tem que autojulgar. Não sou eu que vou dizer à pessoa: “Estás em pecado, não estás em pecado. Podes comungar, não podes comungar”.

A pessoa é que diante disto, na sua autonomia, também deve fazer um exame de consciência e deve dizer em que situação é que eu está? Tenho direito de abeirar-me de Deus? A comunhão eucarística é expressão da verdade da minha comunhão com Deus? Ou não estou numa comunhão plena com Deus e, portanto, não me devo aproximar da comunhão eucarística?

Seja a questão do adultério, seja outra questão qualquer na nossa vida. Não é preciso essa situação para não me sentir em comunhão com Deus. Uma vez foram ter com Jesus para que Jesus resolvesse a situação deles? Ele respondeu: “A mim ninguém me fez juiz, o meu Pai que está nos céus é que julgará. O Pai a mim manda-me que eu anuncie a verdade. O resto está nas vossas mãos”. É isto que eu acredito.

A Igreja portuguesa chegou a propor que os que vivam na condição de recasados devem ter “a vida em continência” sexual. Isto é realizável?

Isso não foi a Igreja portuguesa que propôs. Isso aconteceu porque um bispo citou….

Isto são palavras de um Patriarca…

Exatamente, o Patriarca da altura que num documento que escreveu citou um número da Familiaris Consortio do Papa João Paulo II, onde ele dizia isso. E neste documento, o Patriarca D. Manuel Clemente, na altura, cita este número nesse documento. Não foi uma lei que o Patriarca fez. Ele limitou-se a citar um número que São João Paulo tinha dito.

Mas isto é realizável? Como padre como é que tem esta conversa com um fiel…

Não sou casado, nunca fui casado. Não consigo com propriedade estar-me a pronunciar sobre essa matéria. Pergunta-me: É um conselho que faça muito sentido? É um conselho que me parece estranho, parece-me materializar demais a relação de duas pessoas. Parece-me que é uma redução da relação humana de duas pessoas, de amor, a um ato meramente carnal e só por isso acho que é pobre.

Porque eu acho que o compromisso, a relação da pessoa, vai muito para lá disso. Aliás, a relação carnal deve ser uma expressão duma intimidade e de uma relação maior, porque não passa de um ato animal e nós acreditamos que não o é, que a sexualidade na vida do casal não é apenas uma coisa carnal, material e animal. Ponto número dois, também pôr uma barreira entre o que é pecado e o que não é pecado, por uma questão meramente sexual, também acho pobre. Acho que a coisa vai muito para além disso, por isso não me pareceu que seja a melhor forma de colocar a questão.

"[Pedir abstinência sexual a um recasado] é um conselho que me parece estranho."

Acho que é importante encontrar aqui outros caminhos. O Papa, na Amoris Laetitia, lança também outras questões e diz, inclusivamente, nessas situações, que a Eucaristia não deve ser o prémio dos perfeitos, mas deve ser o alimento para aqueles que precisam de se alimentar no seu caminho e que o sacramento da reconciliação continua a ser o lugar da purificação dos seus pecados.

Qual é a minha leitura? É a de que o Santo Padre põe a hipótese, nesta linguagem, das pessoas que estão nessa situação, muitas vezes, até se poderem abeirar da confissão e de poderem comungar e não lhes ser totalmente negada a confissão. Ou seja, que continuem a fazer o seu caminho e que sejam acompanhadas. O Santo Padre põe aqui várias possibilidades que os pastores de alma, assim chamados, os párocos, devem utilizar para o acompanhamento pessoal.

É o grande sublinhado que o Papa faz, que em momento algum sejam rotuladas as pessoas e criadas regras meramente formais, mas que se passe ao acompanhamento individual de cada pessoa e cada caso seja tratado como um caso.

Quem está dentro da comunidade cristã, não vejo preocupado com estes casos, vejo é pessoas de fora, que não estão ligadas à Igreja e que não fazem este caminho.

Concluindo, como é que se conciliam alguns dos dogmas da Igreja, os princípios fundadores, e defendidos pelos setores mais tradicionalistas com esta mensagem de abertura a todos?

Eu tenho dificuldade em responder a essa pergunta. Se calhar tem de perguntar a quem eventualmente tem dificuldade com “todos, todos, todos”, o que não é o meu caso.

Mas reconhece que é uma tensão permanente?

Reconheço. Penso que as pessoas não estão de má-fé. As pessoas quando manifestam um olhar e uma sensibilidade, manifestam com base naquilo em que acreditam e com base naquilo que veem como caminho de verdade e, portanto, estão de uma forma honesta, intelectualmente honesta, diante das coisas.

A questão é que muitas vezes têm dificuldade, se calhar, em ver para além daquilo que é o seu pensamento pessoal. O Santo Padre não pode estar preocupado com o seu pensamento pessoal. O Santo Padre está preocupado com o bem da Igreja e o bem da humanidade. E, muitas vezes, o problema destas fações um bocadinho mais fechadas, ou mais tradicionais, é porque às vezes são sensibilidades, estão mais fechadas sobre si próprias e têm dificuldade de ver para além daquilo que é a sua realidade, para além daquilo que é a sua sensibilidade.

Ora, eu nunca serei acolhedor. Eu nunca conseguirei estar atento à necessidade dos outros se olhar só para mim. Só quando eu olho para os outros estou atento a eles. E acho que às vezes o problema é as pessoas estarem a olhar mais para si, para os seus interesses, para os seus pensamentos do que propriamente para um bem maior.

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