Três alunos, uma professora. Uma escola no interior em contagem decrescente

Se nada mudar até março de 2024, a escola básica da aldeia do Salgueiro, no Fundão, irá encerrar. Este ano tem apenas três alunos. “Se fossem agora para aquelas turmas de 25, 26 alunos, iam ficar como um peixinho fora de água”, diz a professora Susana Infante. Eis uma história de resistência do interior – que pode também ser um adeus antecipado.

21 dez, 2023 - 06:30 • Fábio Monteiro , Maria Costa Lopes (vídeo)



Uma escola, uma professora, três alunos. Uma história de resistência

O período da manhã está quase a terminar. No quadro, Susana Infante projeta exercícios de formação cívica e, a custo, tenta captar a atenção de Leandro e Micael, alunos do 2.º ano. David, que frequenta o 4.º, está a ter aula de inglês, noutra sala, com uma professora que vem à aldeia duas vezes por semana – de propósito. Lá fora, chove.

“Atravesso a estrada sempre na…?”, pergunta a professora. Ao que Leandro responde: “Passadeira.”

Micael recusa participar do exercício, mete o carapuço na cabeça e cobre o rosto.

“Caminho sempre do lado de dentro do…?”, continua Susana. “Passeio”, completa também Leandro.

“Porquê?” “Por causa dos carros.”

No ano letivo 2023/2024, a escola básica da aldeia do Salgueiro, freguesia dos Três Povos, no Fundão, conta apenas com três alunos. Na teoria, já não devia funcionar. E é muito provável que no próximo ano encerre.

Já há alguns anos que a meta de dezoito crianças - o número mínimo para um estabelecimento de ensino que agrega vários anos na mesma turma, de acordo com o Ministério da Educação - não é atingida. Mas num ato de resistência, impulsionado por Paulo Fernandes, presidente da câmara do Fundão, ainda mantém as portas abertas.

A fasquia é “desapropriada quando pensamos nas escolas rurais de territórios mais recônditos, dos territórios de menor densidade nos territórios de baixa densidade. O interior do interior, dito de outra maneira”, explica o autarca à Renascença.

Por determinação do município, as unidades escolares rurais devem continuar a funcionar sempre que houver pelo menos 10 alunos – somatório das crianças da creche, pré-escolar e primeiro ciclo. E mesmo quando esse número não é atingido, “decidimos aguardar um ciclo de dois, três anos, para ver se há alguma inversão”, conta Paulo Fernandes.

A sobrevivência da escola do Salgueiro está nesse limbo. Há dois anos, o serviço de pré-escolar fechou, os alunos mais novos foram recolocados na unidade da aldeia da Capinha – que também só tem seis crianças a frequentar o primeiro ciclo.

O edifício, colado à rua Estrada Principal 15, assemelha-se a tantos outros do interior, que nas últimas décadas foram sendo abandonados, reconvertidos em clubes recreativos, sedes de ranchos folclóricos, devido à falta de crianças. A única coisa que o distingue é estar pintado de amarelo, em vez do tradicional branco.

Nas traseiras, há um pequeno campo de futebol improvisado, com um retângulo de relva sintética, pouco maior que um court de ténis.

Susana Infante é professora primária há mais de 20 anos e é natural do Fundão. Este é, em todo o caso, o primeiro ano em que dá aulas a tempo inteiro no Salgueiro. No último ano letivo, foi colocada em Castelo Branco, teve uma turma de 2.º ano com 24 alunos.

Foi uma mudança “do oitenta para o oito”, admite.

Aliás, quando soube que tinha sido colocada no Salgueiro – onde já tinha estado em duas ou três ocasiões, em substituição de colegas, anos antes – Susana ficou “triste ao ponto de chorar”.

“[Lembro-me] de ir a conduzir e ir a chorar. Por ter poucos alunos”, diz.

A docente sabia que tinha um desafio pela frente, precisava de tempo para se mentalizar. No início dos anos 2000, conhecera uma professora, na localidade Lavacolhos, que dava aulas apenas a uma aluna.

“Temos de trabalhar, temos de ensinar. Não é por termos só um ou dois ou três alunos que nós não temos de cumprir a nossa vocação, e darmos os conteúdos. É avançar, temos de fazer tudo para que eles se sintam confortáveis, para que aprendam. E puxar o máximo por eles”, diz.


Susana dá aulas há mais de 20 anos. Quando soube que tinha sido colocada na escola do Salgueiro, chorou. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Susana dá aulas há mais de 20 anos. Quando soube que tinha sido colocada na escola do Salgueiro, chorou. Foto: Maria Costa Lopes/RR

Rotinas (relativamente) diárias

Perto do meio-dia, David regressa para junto dos colegas de turma. E, poucos minutos depois, tem início a hora de almoço, que, por norma, prolonga-se até às 14h30.

A mãe de Micael aparece à porta da sala para apanhar o filho. Mas não vai embora sem antes levar uma reprimenda da professora.

“O Micael tem faltado muito”, alerta Susana.

Leandro, David e Micael vêm de famílias com dificuldades. Os últimos dois são primos, faltam muitas vezes. Se tivessem de ir estudar para outra localidade fora da freguesia dos Três Povos “ainda iriam faltar mais”, admite a professora Susana.

Nalguns dias, não assim tão excecionais, acontece Leandro ser o único aluno na escola.

“Um dia ele falta, um dia venho eu. Um dia vêm os dois, um dia venho eu”, conta.

Não surpreende, pois, quando o menino de 7 anos - que, quando for grande, quer “ser polícia” - sinta falta de ter mais colegas para “brincar, jogar à bola”. “Às vezes, quando não está a chover, jogamos às raquetes. Gritamos. Fingimos andar à luta, mas não é mesmo”, explica.

Todos os alunos da escola do Salgueiro têm consciência que vivem uma situação excecional. Que é um privilégio terem uma professora para três alunos. E sabem também que, com a saída de David no próximo ano, um adeus pode estar para breve.

“Esta escola fecha comigo e com ele [Micael] só. Vamos embora desta escola”, conclui Leandro.

David tem 10 anos e gosta da disciplina de Português. É o mais velho do grupo e admite que já pediu aos pais para mudar para uma escola em Penamacor, município que faz fronteira com o Fundão, de modo a estar mais próximo de alguns familiares.

“Não tenho ninguém para fazer comigo trabalhos de grupo”, conta.

Os pais de David recusaram a ideia, o rapaz acabou por se mentalizar. “Ia ter de acordar mais cedo, para apanhar o autocarro. E eu já acordo às 7 horas.”


Salomé vigia os alunos durante o intervalo do almoço. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Salomé vigia os alunos durante o intervalo do almoço. Foto: Maria Costa Lopes/RR

Condições não faltam

A escola do Salgueiro não tem refeitório. Os alunos almoçam num espaço improvisado, em mesas iguais às de estudo, no que em tempos foi a segunda sala de aula do estabelecimento de ensino.

À espera de David e Leandro, há uma tijela de canja, um prato de frango assado, acompanhado com batatas no forno e salada. Nenhum torce o nariz à ementa.

“O meio sal faz alguma diferença para eles”, conta Salomé Moita, enquanto serve as refeições – que vêm de um centro de dia para idosos da freguesia. Leandro “nunca tinha provado peixe sem cabeça” - ou seja, filetes - antes de ter entrado na escola.

A mulher de 44 anos é a única (e multifacetada) assistente operacional do estabelecimento de ensino. É ela quem limpa, quem recebe as crianças pela manhã e, três tardes por semana, toma o leme das Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC).

Numa vida passada, que abandonou por cansaço, Salomé também já foi professora primária.

“Ser professor é das profissões mais duras, destabiliza tudo. A nível emocional, a nível familiar. Para mim, era quase impossível conciliar a profissão com a família. Aliás, com o casamento. Muitos professores que têm passado por aqui são divorciados, e isso explica-se pela ausência. Ser-se professor é estar sempre ausente”, diz.

A assistente operacional, cujo filho fez a primária na escola do Salgueiro, gostava que houvesse mais alunos. “Há condições, a aldeia tem mais crianças que estas”, garante.

E acrescenta: “É tão válido o ensino com duas ou três crianças como com vinte ou mais. Não é por ser uma aldeia, não é por ter crianças de etnia [cigana] que o professor se dedica menos. Tinha todo o valor, todo o sentido, deixar as crianças nestas escolas.”

A um canto, no refeitório improvisado, há um computador com ligação à internet – que é usado, mais do que de tudo, para ver vídeos no Youtube. No centro, está estendido um colchão de ginástica.

Depois de comerem, e porque está a chover na rua, David e Leandro brincam no refeitório. Se estivesse sol, poderiam andar a correr pelo recreio ou a pedalar numa bicicleta.

Enquanto David, o mais velho, se apodera do computador, Leandro – com a barriga cheia, e já descalço – dá cambalhotas e saltos no colchão.

Entre risos, Salomé diz: “Não gosto muito que eles andem aos pulos depois de comer, mas eles são rijos.”


Leandro e David brincam durante o intervalo da hora do almoço. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Leandro e David brincam durante o intervalo da hora do almoço. Foto: Maria Costa Lopes/RR

O contrário do problema

Em Portugal, em particular nas grandes cidades, como Lisboa e Porto, existem muitas escolas em que o excesso de alunos por turma é um problema. O drama da escola do Salgueiro é, em certa medida, o oposto.

No arranque do ano letivo, Susana tinha quatro alunos. Além de David, Leandro e Micael, havia Carolina. Contudo, os pais da rapariga – que se sentia sozinha na escola, por ser a única menina – transferiram-na para a Capinha.

A professora, que acredita que “as crianças deviam ocupar um lugar na aldeia”, ainda tentou demover os pais, mas sem sucesso. “Numa aldeia sem escola morre algo. Todas as aldeias precisam de uma escola e de um café, para funcionarem corretamente. Sem escola não há o burburinho das crianças, como sem café não há o social.”

“Não é por a escola ser na aldeia ou a escola ser na cidade que ensinam melhor. Tanto sou professora numa aldeia como numa cidade. Às vezes até se faz mais numa aldeia que numa cidade. Estamos mais à vontade. Conseguimos por as nossas ideias mais em prática e fazer coisas diferentes com eles”, defende.

No entender de Susana, a escola – com tão poucos alunos – permite um acompanhamento mais próximo.

“Nós podemos mudar a planificação a qualquer momento. Basta o David dizer qualquer coisa e posso acompanhar. Se o David estivesse numa turma de vinte alunos e não estivesse disposto a trabalhar, seria mais difícil. Aqui o ensino é mais individualizado. Eles conseguem aprender melhor, porque são poucos e eu estou para eles os três ao mesmo tempo”, diz.

A ideia, portanto, de transferir Leandro, David e Micael para outra instituição é, além de pouco prática, também dura ao nível emocional. “Se fossem agora para aquelas turmas de 25, 26 alunos, iam ficar um peixinho fora de água. Não iam saber como é que haviam de lidar”, acautela.

Apesar do choque inicial, Susana não tem medo de, no próximo ano letivo, ter de continuar a dar aulas na aldeia do Salgueiro. O único receio que tem, admite, é o de ser colocada longe de casa, conforme já aconteceu no início da sua carreira.

“O medo que tenho para o ano é de ir parar a Lisboa. Se me dissessem que ficava novamente no Salgueiro, ficava felicíssima da vida. A angústia de um professor é saber: ‘E agora, para o ano, para onde vais?’”


Susana desafiou os alunos a desenharem uma escola de sonho. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Susana desafiou os alunos a desenharem uma escola de sonho. Foto: Maria Costa Lopes/RR

A escola ideal? Igual, mas com mais alunos

Na sala de aula comandada por Susana Infante, há uma mesa com chupa-chupas disfarçados de fantasmas – despojos do Halloween. As paredes estão povoadas de trabalhos escolares, pequenas obras de arte amadoras, como é hábito.

Ora, um dos desafios lançados pela professora aos alunos, pouco tempo antes da visita da Renascença, foi o de desenharem a sua “escola de sonho”.

Dotes artísticos à parte, os desenhos denotam escolas muito semelhantes à do Salgueiro – mas com mais crianças no recreio. “Tem vários alunos, dá para brincar, podemos trazer o telemóvel. Há luta. Muitas, várias coisas. Há aula de música. Há karaté, acho eu. Podemos jogar futebol”, diz David.

Leandro ri-se e não perde a oportunidade de expor as suas preferências. “Podíamos andar de bicicleta cá dentro da escola. Ter um computador com música alta”, começa por dizer. Mas depois, em tom de brincadeira, acrescenta também: “E ficar de castigo.”

Porventura, alguns dos desejos de David, Leandro e Micael podem vir a concretizar-se no próximo ano letivo. Mas o custo será a inexistência da escola do Salgueiro.

No último conselho municipal da Educação do Fundão, que decorreu já em dezembro, ficou determinado que, se “as projeções” em fevereiro e março de 2024 para os alunos da freguesia dos Três Povos continuarem iguais, a escola não irá “reabrir no próximo ano letivo”.

O autarca Paulo Fernandes confessa a “tristeza” do momento. E diz: “O encerrar de uma escola é sempre um momento difícil, sobretudo para as comunidades locais. É verdade que temos tentado resistir. O Fundão tem setecentos quilómetros quadrados de área, vinte e três escolas que funcionam. Seremos provavelmente dos territórios rurais do país que tem mais escolas rurais a funcionar, o que é um sinal de que a nossa ruralidade ainda é muito viva. Mas, se quisermos, também significa que nos últimos 25, 30 anos, já se fecharam mais de metade das escolas que funcionaram neste conselho.”


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