Entrevista Renascença

Eduardo Paz Ferreira vai jubilar-se, mas recusa "fechar a porta" à vida ativa

05 mai, 2023 - 23:45 • João Malheiro

O livro "Devo Fechar a Porta?" é uma crítica e desconstrução do idadismo - a discriminação em função da idade e também uma autobiografia que assinala pontos importantes como o fim da ditadura, em Portugal.

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Eduardo Paz Ferreira em entrevista sobre o novo livro "Devo fechar a porta?"
Ouça a entrevista na íntegra

Quando se chega à idade da reforma, deve-se mesmo "fechar a porta"?

É uma interrogação feita no novo livro do professor Eduardo Paz Ferreira, que esta segunda-feira dará a aula de jubilação na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Confrontado com uma saída do ensino, por força de ter atingido os 70 anos, o académico escreveu o livro "Devo Fechar a Porta?" para criticar e desconstruir o idadismo - a discriminação em função da idade. A obra será apresentada, oficialmente, no dia 24 de maio, na FNAC Colombo.

O livro de Paz Ferreira é também uma autobiografia, um registo da transição da ditadura para liberdade e uma reflexão sobre a advocacia, o Direito e a sociedade civil.

Uma abordagem a várias temáticas que também é feita em entrevista à Renascença.

O livro é a tentativa de chegar a uma resposta à pergunta “Devo fechar a porta?”

Quando atingimos uma idade que é, no fundo, a idade dos 70 anos, que é o limite para trabalhar para a função pública, começamos a pensar um pouco sobre o que vamos fazer. Passamos por várias hesitações. Vamos deixar de ter qualquer trabalho, vamos começar só a passear, a ir ao Cinema, a jogar cartas, a tratar dos netos e esse tipo de atividades.

Ou, pelo contrário, vamos continuar a tentar manter, seja uma atividade cívica de opinião, transmitir ideias e fazer textos escritos e uma atividade profissional liberal no escritório. E, portanto, foram estas dúvidas que passaram pela minha cabeça durante uns meses e que me levaram a dar esse título, que quando foi escrito já tinha uma resposta: Não vou fechar a porta, vou continuar a ver-me nessas áreas que assinalei.

Logo na nota introdutória do livro faz referência ao facto de ter essa limitação, limitação essa que não queria que existisse, ou, pelo menos, não queria que limitasse, na sua prática de professor. Acha que devíamos repensar os limites que impomos à idade na sociedade civil?

Penso que sim. Penso que é muito importante que haja uma idade a partir do qual seja possível as pessoas terem direito à reforma. Acho justo que as pessoas que trabalharam tenham reforma, agora desagrada-me a modalidade de serem obrigadas a ter reforma.

Se estas pessoas sentem que estão em condições físicas, psíquicas e outras para continuarem a desenvolver a sua atividade, então eu acho que devia ser permitida.

Claro que se pode dizer que podia permitir a pessoas que já não têm qualquer capacidade continuarem a arrastar-se e isso ia prejudicar os alunos. Bom, julgo que a solução é fácil. Há orgãos de avaliação e estes órgãos de avaliação devem, a certa altura, com toda a calma, discutir com professores. Agora esta em posição de sair, quer queira quer não, não me agrada muito.

Isto é uma coisa que varia consoante a cultura e consoante o tempo em que em que vivemos. Na atualidade, sente que há mais ou menos respeito por quem tem idade mais avançada?

Eu acho que realmente vivemos num período em que há muito pouco respeito pelas pessoas que têm idades mais avançadas, digamos. Também tem a ver com a própria estrutura da família. As pessoas mais idosas eram as pessoas mais referenciadas na família. Aliás, em África ainda acontece e muito chefes das famílias são os mais idosos.

No Ocidente e, em particular, em Portugal, à medida que se desenvolve a cultura individualista da afirmação de valores puramente isolados de abandono de ideias de grupo, passou a haver um certo desinteresse pela família, que se traduz num desinteresse geral pelos idosos que são considerados pouco competentes, são considerados como um peso que recai sobre os jovens que têm que pagar contribuições para a Segurança Social, para que estes idosos tenham condições de reforma.

Falava da família e, para lá da própria família, sente que é preciso haver uma maior ligação também com as gerações mais novas? Não só num sentido de passagem do conhecimento, mas também de uma relação que seja mais positiva para os dois lados.

Exatamente. É preciso encontrar uma solução que acabe com esta espécie de luta de classes e que consiga que ambas as partes possam dar o seu melhor uma a outra.

Mas a questão não é nova. Já no livro, num capítulo histórico, que revela como esta questão entre idosos e jovens, deu sempre origem a controvérsia e trouxe uma discussão em torno de qual era a melhor organização da sociedade e, portanto, não é propriamente novidade.

Como é que ultrapassa esta fase? Eu diria que é um aspeto de um problema mais geral, que é como é que conseguimos construir uma sociedade mais solidária, uma sociedade em que não haja divisão em grupos, em que não haja divisão por raças, sexo ou idade. Em que todos sejamos o grupo que se debate pelo bem comum que atinge todos esses grupos.

Não havendo essa solidariedade, numa sociedade de evolução tecnológica muito avançada, em que até as próprias gerações mais novas têm dificuldade em acompanhar, é fácil que as pessoas mais velhas fiquem para trás?

É um bom ponto, porque, de facto, o avanço tecnológico traz muitas vantagens, mas é complicado para os idosos. Muitos deles não têm facilidade em lidar com as tecnologias, que estão sempre a evoluir, estão sempre a mudar, e eles nem sempre conseguem acompanhar este movimento. Ficam um pouco fora do mainstream, um pouco afastados dos debates públicos.

Nas redes sociais que são massivamente frequentadas, em Portugal, estou convencido que o número de pessoas de idade que lá estão são muito poucas e, no entanto, talvez pudessem, com maior ou menor dúvida, auxiliar esse diálogo.

A questão da idade e do idadismo também nos últimos tempos, tem-se colocado, por exemplo, na política. O caso mais flagrante pode ser Joe Biden, que vai recandidatar-se e, se vencer, será o presidente mais velho da história dos Estados Unidos. O nosso próprio chefe de Estado vai fazer 75 anos e é mais uma prova de que a idade não exclui uma pessoa de, no caso de Joe Biden, ter um dos trabalhos mais exigentes do mundo.

Verdade e ao que tudo indica, no lado dos Democratas não há outro candidato alternativo com credibilidade e, ao que tudo indica, do lado Republicano, o candidato será Donald Trump, que também se aproxima dos 80 anos. É um pouco estranho que a potência mais forte do mundo, ainda tenha como candidatos pessoas com esta idade. E são pessoas que foram construindo carreiras muito diferentes.

Temos o Presidente da República que já tem idade adiantada, temos também o presidente Lula da Silva, em idade avançada e, portanto, isto mostra que estas pessoas conseguiram manter-se em cena na política.

Agora, há uma coisa curiosa que é: De alguma forma mantêm-se na cena política, mas não são representantes dos idosos. Uma das coisas que faz falta para resolver o problema do idadismo é que os idosos tivessem uma representação política.

Há coisas que é preciso fazer em prol dos idosos e, portanto, era bom que tivessem uma representação política específica para se preocupar com os problemas deles.

Olhando mais para o livro, tem uma componente autobiográfica. Perguntava se isso foi sempre a intenção, ou se acabou por surgir a propósito da reflexão que pretendia fazer?

Pois… Eu creio, que começamos a fazer um balanço da vida. E esse balanço acaba por nos empurrar também para o que ficou para trás. Como é que ocorreu a vida? Quais foram os episódios que nos marcaram? Determinados valores que tivemos, determinados combates.

Digamos que tudo isso surge como uma consequência dessa reflexão. E também surge com a ideia de que essa explicação possa construir uma melhor convivência com os pontos negativos do idadismo.

Fala da sua infância nos Açores, no livro. O que é que vê de semelhantes e o que é que vê de diferente entre os Açores da sua infância e os Açores da atualidade?

Bom, há claramente grandes diferenças. Saí dos Açores quando tinha 17 anos e acabei por ficar a viver em Lisboa. Significa que tenho um pouco menos 53 anos de vida em Lisboa. Já não conheço profundamente os Açores.

Percebo que há muitas coisas que se alteraram. Só para dar um exemplo: não havia televisão e a rádio local que havia era limitada, com poucos recursos. Os jornais do continente chegavam com grande atraso e praticamente não eram lidos por ninguém. Os jornais locais eram feitos com base nos noticiários da então Emissora Nacional.

Do ponto de vista do consumo, muitos produtos não chegavam lá. Por exemplo, refrigerantes, shampoos, coisas assim, não chegavam. E havia, portanto, uma vida escassa que não tem nada a ver com consumismo de hoje.

Há, digamos, uma muito maior abertura para o mundo também facilitada pela forma como se tornou muito mais simples viajar. Antigamente, a generalidade das pessoas para irem a Lisboa, tinham de ir por barco

A ilha maior, São Miguel, não tinha um aeroporto, onde pudessem aterrar aviões de longo alcance. Tinha apenas um aeroporto que era conhecido por “Aerovacas” num campo relvado em que se alternavam vacas e aviões (risos).

Outro fator muito importante era não havia uma Universidade nos Açores. Hoje há, apesar de não ter todos os recursos e muitos estudantes ainda irem para o continente estudar.

Agora, em que medida é que alterou a vida das pessoas? Não tenho a certeza. Tenho a sensação que são mais livres. Têm outra capacidade de viajar e de contactar pessoas. É mais fácil do que nos tempos muito fechados da minha infância.

E também fala precisamente do facto de ainda ter vivido durante a ditadura e depois a transição para a Liberdade. Para o ano são os 50 anos do 25 de Abril. Como é que vê a atualidade da preservação dos valores da Revolução de Abril? E estamos em piores ou melhores condições quando comparado com o início da democracia em Portugal?

É verdade, há uma evolução política mundial assustadora em vários sentidos, sobretudo no avanço fortíssimo da extrema-direita. Se pensarmos, por exemplo, na União Europeia, que é suposto ser uma união entre países democráticos liberais, com valores éticos muito sólidos, vemos que um número muito significativo desses países tem governos de extrema-direita, que não têm respeito pelos direitos humanos.

São governos extremamente conservadores e pouco motivadores, mas que conseguiram arrastar atrás deles muita gente. Em Portugal, tem havido também esta subida, embora ainda não tenha a expressão como em outros países.

É evidente que, para muitas pessoas, a leitura do 25 de Abril não foi idêntica. Algumas pessoas tiveram esperanças numa grande alteração, numa grande revolução, o que se traduziu designadamente no período do PREC, em que houve uma radicalização política, com nacionalizações. Mais tarde, estas ideias que tinham sido consubstanciadas na Constituição de 1976, vieram a entrar em desuso.

Isso tornou a sociedade portuguesa menos excitante de se viver, mas criou um quadro democrático e social que é preciso defender. E, portanto, não crescemos tanto como gostaríamos ter crescido, mas é abissal a diferença para 1974.

Nós chegamos a 1974 e não havia Segurança Social e não havia sindicatos, não havia direito à greve, o ensino era muito limitado, eram muito poucos os que chegavam às universidades. Tudo isto foi melhorando.

Por fim, na segunda-feira vai ser a aula da sua jubilação. Este livro também acaba por assinalar essa etapa, mas como o próprio livro acaba por indicar, podemos esperar que continue a andar por aí?

Foi algum político que pensouem continuar por aí. Não é, exatamente, a minha sensação, mas o que eu quero dizer com isto é que não tenciono deixar de intervir. Tenciono continuar a defender os valores por que sempre me bati, quer em ditadura, quer em Democracia.

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