Estava escrito – e dito
Muito já foi escrito, desde 2015, sobre o nascimento da geringonça original. Na época, os partidos da coligação Portugal à Frente (PaF), que unia o PSD e o CDS-PP, queixaram-se de desonestidade. De que essa possibilidade nunca havia sido comunicada aos portugueses. No entanto, é justo dizer existiam sinais no ar.
A ideia de um acordo dos partidos de esquerda foi lançada para a praça pública por Rui Tavares, muito antes da ida às urnas, e António Costa nunca a rejeitou publicamente. (Há nove anos, o deputado e líder do Livre não conseguiu ser eleito – mas reteve os créditos da iniciativa).
Num debate televisivo, Catarina Martins foi direta: se o PS desistisse de três pontos do seu programa - congelamento de pensões, cortes na Taxa Social Única (TSU) e regime de despedimento conciliatório -, o Bloco veria nisso "um início de conversa" para viabilizar um Governo alternativo ao de Passos Coelho.
E já na noite eleitoral de 4 de outubro de 2015, depois de ser que claro que a coligação Portugal à Frente (PaF) vencera as eleições, mas sem maioria absoluta, Jerónimo de Sousa disse sem rodeios: “O PS só não forma Governo se não quiser.”
Ivan Gonçalves foi eleito deputado pelo PS, pela primeira vez, precisamente em 2015. E o socialista confessa à Renascença que, a princípio, pensou que a geringonça “não iria acontecer”, porque “a tradição” era de os partidos à esquerda do PS “darem sinal de que até podiam estar disponíveis para um entendimento, mas depois, na prática, seria sempre muito difícil, para não dizer impossível”.
O deputado do PS e antigo líder da Juventude Socialista, eleito por Setúbal, aponta como fator essencial da mudança a geometria política excecional de 2015, uma "coisa de que se fala muito pouco”. “Nunca tinha acontecido num passado recente que a área política do partido mais votado não tivesse uma maioria para governar.”
A geringonça original foi uma experiência “muito positiva”, “uma solução virtuosa”, e um período em que o Parlamento “teve uma centralidade acrescida”, defende.
“Não era possível a um partido, nem sequer a dois, fazer passar lei nenhuma, começando pela maior: o Orçamento do Estado. Isso exigia uma negociação permanente. Um aceitar de posições permanente. Mas é facto que também foi uma altura em que paradoxalmente se conseguiu muita estabilidade, foi a única legislatura destas últimas três que chegou até ao fim. E foi aquela em que se conseguiram grandes avanços sociais.”
À união ajudou, claro, que entre os partidos da esquerda parlamentar existisse um adversário comum: o Governo de Passos Coelho, “um Governo de muita austeridade”.
Algo que o dirigente do Bloco de Esquerda Jorge Costa (um dos negociadores da geringonça na época) também evidencia: “A geringonça foi a resposta dada para interromper um ciclo de devastação que era o da Troika, que era o do Governo de Passos Coelho e Paulo Portas, e repor níveis de dignidade na vida coletiva, no rendimento do trabalho, e terminar uma expolição das pessoas que estava a decorrer há demasiado tempo.”
Os protagonistas mudaram. E são mais
Uma afinidade pessoal não é, necessariamente, uma afinidade política. Mas por vezes ajuda.
Em 2015, António Costa (coadjuvado por Pedro Nuno Santos e Mariana Vieira da Silva) negociou a criação da geringonça com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa.
Ora, o primeiro-ministro demissionário, é conhecido dos portugueses, sempre teve uma boa relação com Jerónimo de Sousa (“o parceiro fiável”). O facto de o pai, Orlando Costa, ter sido militante comunista terá, pelo menos, terá facilitado a empatia.
Quando Jerónimo saiu de cena no final de 2022, Costa fez mesmo questão de recordar: “Foi ele [Jerónimo] que deu o primeiro corajoso e decisivo passo que, em novembro de 2015, abriu as portas a uma nova relação na esquerda portuguesa”.
Com Catarina Martins, por comparação, a relação nunca foi tão forte. Ao longo da última década no Parlamento não faltaram alguns momentos de picardia política. Mas isso não boicotou a geringonça original.
Os protagonistas políticos, entretanto, mudaram – assim como os laços que os unem. Agora é Pedro Nuno Santos (mais próximo do BE que do PCP) que está no leme do PS. É Mariana Mortágua nos comandos do BE. E é Paulo Raimundo na frente do PCP.
Mais: o PAN de Inês Sousa Real e o Livre de Rui Tavares também dão sinais de abertura a uma futura geringonça.
Um facto que muitas vezes é esquecido e fica de fora da discussão é que a geringonça original nunca foi um acordo tripartidário. A geringonça consistiu em três acordos bilaterais do PS – com o BE, com o PCP e com os Verdes.
Numa futura geringonça, nos mesmos moldes de 2015, podemos, pois, estar a falar de cinco acordos bilaterais.
Jorge Costa, dirigente do BE, não antecipa nenhuma mudança substancial no entendimento dos partidos da esquerda parlamentar devido à mudança de líderes. “Mal estaríamos se as decisões políticas e a consciência das necessidades variassem consoante a maior ou menor proximidade entre pessoas e as relações individuais.”
Em todo o caso, admite que o BE sempre teve “uma relação de trabalho muito positiva com Pedro Nuno Santos”, enquanto o agora secretário-geral do PS teve a responsabilidade de servir de elo de ligação com os partidos da geringonça. “Foi sempre possível ter uma relação de cordialidade, de trabalho e frontalidade com Pedro Nunos Santos que permanece até hoje.”
O bloquista entende que, depois das eleições, “quanto mais ampla e mais forte for essa convergência [dos partidos de esquerda], melhor”. “O ponto não está na aritmética partidária, o ponto está na consistência das suas soluções. E na sua capacidade de agregar as diversas vontades e as diversas opiniões.”
Ivan Gonçalves, do PS, também não exclui nenhum partido da equação. Mas João Oliveira, antigo deputado do PCP, lança dúvidas sobre algumas das “opções” políticas do PAN e do Livre.
O PAN “tão depressa é força de apoio a um Governo da direita na Madeira, como nas eleições nacionais já faz um discurso diferente”. E o Livre que tem feito “uma colagem às posições do PS. Ou seja, o Livre defender as propostas que o PS faz não acrescenta muito às opções que o PS defende”.