"Nações unidas" em Rio de Loba. "As pessoas aqui têm bom coração"

Nesta freguesia do concelho de Viseu, o ofício de calceteiro faz parte da história dos habitantes. Mas, com o tempo, o interesse na profissão foi diminuindo e hoje as empresas dedicadas à calçada portuguesa veem nas comunidades imigrantes a esperança da subsistência. São sobretudo indianos e nepaleses numa freguesia onde 5% é comunidade estrangeira.

25 mar, 2024 - 07:50 • Liliana Carona



"Nações Unidas" em Rio de Loba. "As pessoas aqui têm bom coração"
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"Nações unidas" em Rio de Loba. "As pessoas aqui têm bom coração"

Só se ouve a música do café Cruzeiro e o chilrear dos pássaros, numa quinta-feira de trabalho, pelo menos até ao cair da noite, quando começam a chegar as carrinhas cheias de trabalhadores, com os rostos cansados e as roupas pintadas de pó branco das pedras calcárias.

Em Travassós de Cima, uma povoação da freguesia de Rio de Loba, no concelho de Viseu, são dezenas de trabalhadores do Nepal e da Índia. António Nery, de 76 anos, sentado à entrada do café, vê-os chegar, todos os dias.

“A comunidade imigrante aqui penso que é bem recebida. A Calçabel, empresa daqui, tem muitos trabalhadores imigrantes e não se sou ouve falar mal deles. O meu sobrinho também tem muito pessoal de fora a trabalhar para ele. Deve haver aí uns 50. É muita gente. Porque eles é que vêm fazer esse trabalho duro”, observa o morador.

António Nery recorda a tradição do ofício naquela localidade. “Aqui há muitos calceteiros, mas antigamente era mesmo quase tudo calceteiro, mas agora... Os imigrantes ajudam muito, de outra forma... há poucos portugueses interessados neste trabalho”, conclui, apontado para as casas de onde os vê sair todos os dias.

“Há cá mais pessoas de fora da terra, do que de dentro. Eles não têm incomodado, não têm perturbado, estão aqui a trabalhar. Até a chover vão trabalhar, isto não há aqui... É um povo que… nota-se que estas pessoas vieram para trabalhar e são bons trabalhadores”, enaltece António Nery.


 António Nery não ouve falar mal da comunidade imigrante. Foto: Liliana Carona/RR
António Nery não ouve falar mal da comunidade imigrante. Foto: Liliana Carona/RR

"Imigrantes ajudam bastante porque o ofício está em risco"

“São vários os toques para partir a pedra e depois é picar o terreno”. A tarefa parece simples, assim explicada por Nuno Monteiro, de 45 anos, mas não é, até porque escasseiam os trabalhadores. “Não há muitos interessados nisto. Eles, imigrantes, vieram ajudar, e desenrascam-se, trabalham bastante, ajudam bastante porque o ofício está em risco”, nota o calceteiro.

Mas, o trabalho descrito como “duro” pelos calceteiros portugueses, encontra outros adjetivos na comunidade imigrante. “Não é duro, para nós é fácil, muito fácil”, salienta Ankit Sharma, de 25 anos, que já trabalhou nas calçadas e agora está a trabalhar na limpeza de terrenos e matas.

O irmão, Rohit, de 24 anos, continua nas calçadas. Os trabalhadores das comunidades imigrantes passaram o dia fora do concelho de Viseu - em Oliveira do Hospital, a uma hora de distância, a fazer a calçada portuguesa. Ankit insiste, na Língua de Camões: “Portugal muito bom, casa muito bom, patrão muito bom, amigos muito bom. Não é difícil. Gosto muito daqui 'people', coração de 'people' aqui muito bom, não há mal”, sorri o indiano que chegou com o irmão a Viseu, há um ano e meio.

Rohit Sharma vê as diferenças que o fizeram deixar o país natal. “A Índia não é igual. A Índia agora é muita guerra, é muito problema. Há guerra por religião”, lamenta o calceteiro, sem conseguir descrever o que fazia na Índia.

A empresa Calçabel para a qual trabalham não quis falar com a Renascença, mas deu luz verde ao contacto os trabalhadores, apesar de a maioria sentir muita dificuldade no português e no inglês, o que dificultou, por exemplo, a perceção do que faziam nos países de origem. Soubemos apenas que “eram outros trabalhos”.

Guerra, religião e desemprego levaram a procurar Portugal: “Tudo está bem aqui”

Acabados de chegar do trabalho, dois amigos nepaleses, visivelmente cansados, apressam-se a descalçar e a despir ainda fora de casa, para não sujar o interior da moradia que ocupam.

A Junta de Freguesia de Rio de Loba informa a Renascença que a habitação também é proporcionada pelas empresas que os recebem e quando chegam, já vêm com contrato de trabalho.

Bishal Kunwar, de 27 anos, deixou o Nepal há oito meses. Não quis falar e apontou o colega Lok Raj, de 37 anos, há três anos a viver em Rio de Loba, como o mais indicado para a entrevista. Lok deixou a mulher e duas crianças no Nepal. “Quero trazer a mulher e os filhos. Tive de vir para Portugal. Queríamos dinheiro, não havia emprego. Os portugueses são simpáticos, sentimo-nos bem. Tudo está bem aqui. O salário também satisfaz. Somos pagos ao dia, 55 euros”, descreve sobre a situação que encontra na terra de Viriato.


Rohit Sharma trabalha como calceteiro em Portugal. Foto: Liliana Carona/RR
Rohit Sharma trabalha como calceteiro em Portugal. Foto: Liliana Carona/RR
Retrata Índia natal como um país em guerra por causa da religião. Foto: Liliana Carona/RR
Retrata Índia natal como um país em guerra por causa da religião. Foto: Liliana Carona/RR


Às 5h00 da manhã já os calceteiros da freguesia de Rio de Loba estão acordados para mais um dia de trabalho. Luís Ferreira, de 42 anos, tenta apoiar a comunidade imigrante como sabe, ensinando o ofício, uma vez que é calceteiro há seis anos.

“É um trabalho muito difícil, às 5h00 e pouco acordamos. Nunca há horários certos para se sair, vamos para longe, para perto, depende onde houver trabalho. Hoje não há quem queira isto, é um trabalho duro. É uma profissão em vias de extinção, se acabarem estas pessoas mais velhas, os mais novos não querem isto. Damo-nos bem com os imigrantes. Eles vieram para cá, querem ser bem respeitados. Como nós quando vamos lá para fora”, considera Luís.

Aponta a dificuldade dos trabalhadores migrantes em aprender o Português. “Vêm para um país onde não sabem nada. Há aí uns que têm nomes esquisitos, mas outros não. Aprendem connosco. Têm de aprender com a gente. Eles não trabalhavam nisto nos países deles”, garante o calceteiro.

“Eu não quero os meus filhos a fazer este trabalho”

Manuel, de 56 anos, também ganha a vida a construir e reparar calçadas. Vê esperança nas comunidades imigrantes. De outra forma, a calçada portuguesa estava em risco.

Calceteiro há 40 anos, diz que “é preciso paciência para ensiná-los. É ensinando. A gente sabe como é que se faz e ensinamos como têm que fazer. Mais nada. Porque eles aprendem fácil, empenham-se nas coisas”. E se não fossem estas comunidades a darem uma ajuda na calçada portuguesa? “Não sei como seria, nem sei como será. Porque eu também não quero os meus filhos a fazerem o este trabalho, sabes? Isto é duro. E para quem é mole, Deus me livre. Porque os nossos jovens chegam aqui dois dias e três e vão-se embora. Não é fácil. Porque é muito esforço físico. As costas, é duro. É duro, é duro”, descreve, sem rodeios, Manuel.

Só as barreiras linguísticas atrapalham. O Português está longe de estar na ponta da língua e o Inglês não é fluente. Apenas os mais novos aprendem com facilidade. Jasmine, de nove anos, é nepalesa, veio com os pais e os irmãos, de 13 e quatro anos à procura de melhor vida em Portugal.

A mãe Sangam Tiwari, de 33 anos, vai todos os dias buscá-la à escola, com esperança num futuro. Chegaram a Rio de Loba em dezembro passado. “Gosto muito de viver aqui, é calmo, o meu marido trabalha aqui. Gosto do tempo, da comida. Vejo muitas oportunidades aqui para as minhas filhas”, salienta Sangam, na companhia do filho mais novo, Hitesh, que já sabe contar até 10 em Português e a irmã, Jasmine, frequenta, com sucesso, a escola de Travassós de Cima.

“Aprendi o Português, já fiz amigos, gosto de todas as coisas, das professoras que me ensinam, dos amigos, do lugar onde vivo”, destaca Jasmine, admitindo ter saudades da família, no Nepal, da avó, dos tios e dos primos. “Quando crescer quero ser engenheira ou doutora”, remata.


Sangam Tiwari com um dos filhos. Foto: Liliana Carona/RR
Sangam Tiwari com um dos filhos. Foto: Liliana Carona/RR

Presidente da junta enaltece papel da comunidade imigrante

Rio de Loba tem agora 5% da população estrangeira num total de 13 mil habitantes. Há mais calceteiros e pedreiros e é apenas isso, de resto os dias correm iguais.

A segurança é sentida por quem chega e por quem recebe. O presidente da Junta da Freguesia, Berito Esteves, de 49 anos, eleito pelo Partido Socialista, nota que a população estrangeira trouxe ganhos à comunidade, às empresas e nunca registou qualquer conflito.

“E depois também dos próprios. É bom quando a gente os recebe aqui e ajuda nas burocracias, para a papelada, e eles sentem que de facto aqui há alguma agilidade e eles ficam contentes e gostam de cá estar. Mas é de registar que, enquanto presidente de Junta, nunca tive aqui registo de nenhuma confusão, nenhum atrito, entre a comunidade local e a comunidade imigrante”, destaca Berito Esteves.

Para o presidente da Junta de Freguesia de Rio de Loba, “está a ser uma experiência enriquecedora”, pois são “outras vivências, novos conhecimentos, naquela que é a segunda maior freguesia do concelho de Viseu”.

Mesmo em frente à sede da junta, Berito Esteves aponta: “Temos aqui uns moradores brasileiros. Mas também temos outras comunidades, da Índia, do Senegal e do Nepal. E a trabalhar em várias atividades que, hoje em dia, dentro da nossa comunidade portuguesa é difícil encontrar esse tipo de mão-de-obra, e eles vêm cá prestar um serviço que, de certa forma, é necessário e pouca gente o quer fazer hoje e tem sido de extrema e vital importância para muitas empresas aqui da freguesia”.

A ponte entre a junta de freguesia e a comunidade imigrante é essencial à chegada. “Quando eles precisam de alguma coisa mais burocrática ou documentação, porque eles quando vêm para as empresas normalmente já vêm com o contrato de trabalho e o que vêm fazer aqui, muitas vezes, é pedir o atestado de residência e a gente articula com a empresa, com a documentação necessária que é precisa para a gente passar os atestados, tentamos sempre facilitar este processo para que eles também sintam que as coisas aqui não são tão burocráticas”, defende o presidente da Junta de Freguesia de Rio de Loba.


Luís Ferreira, de 42 anos, tenta apoiar a comunidade imigrante, ensinando a calcetar Foto: Liliana Carona/RR
Luís Ferreira, de 42 anos, tenta apoiar a comunidade imigrante, ensinando a calcetar Foto: Liliana Carona/RR

“No Brasil vivíamos num bunker”

À procura de segurança e paz, chegou também a Rio de Loba Marcelo, de 56 anos, consultor imobiliário, e Mónica Verzignassi, de 49 anos, dentista. Vieram do Brasil há sete meses com a filha Cecília, de 10 anos.

Com um cachorrinho no colo, o Logan, Cecília traça o cenário do acolhimento em Portugal. “Foi bem diferente no começo, mas agora eu já me adapto. A língua é um pouquinho diferente, por isso que eu tive muita dificuldade no começo. Mas agora eu já estou melhor. Às vezes, eu falo até português de Portugal escondido, para eu treinar e entender um pouquinho mais. No começo eu não tinha muitos amigos, mas agora eu já tenho vários. E a escola está sendo muito legal, principalmente agora, porque aqui no começo nem me adaptei. Acho que nas amizades, no convívio e na língua foi o mais difícil”, recorda.

A adaptação a Portugal foi mais difícil para Cecília, do que para o pai e a mãe, Marcelo e Mónica. Do interior de S. Paulo, para o interior de Portugal, a decisão começou a ser amadurecida em 2018. A segurança e a qualidade de vida foram os critérios que mais pesaram na escolha de Portugal.


Cecília trouxe o melhor amigo do Brasil para Portugal. Foto: Liliana Carona/RR
Cecília trouxe o melhor amigo do Brasil para Portugal. Foto: Liliana Carona/RR
Marcelo e Mónica não poupam nos elogios a Portugal. Foto: Liliana Carona/RR
Marcelo e Mónica não poupam nos elogios a Portugal. Foto: Liliana Carona/RR


“Lá no Brasil, o contexto político também é bem conturbado e a insegurança, por exemplo, a casa que nós temos em São Paulo, quantos metros tem o muro? Um bunker e além de um muro muito alto, tem uma cerca elétrica muito mais alta. E daí quando nós chegamos aqui, nos deparamos com esse muro pequeno que qualquer um pode pular”, sorri Mónica, que aguarda ansiosa pela validação do seu diploma.

Para Marcelo, o principal motivo da mudança foi o futuro da filha. “O que nós queremos para ela é uma educação de primeiro mundo, viver em um país de primeiro mundo. E ter um futuro a partir da Europa. E estando aqui, tenho certeza disso tudo. Não podemos comparar ao que nós tínhamos no Brasil. Aqui as coisas são muito bem organizadas e funcionam. Um pouco burocráticas, é verdade. Mas tivemos uma experiência agora bem recente, um tratamento que a Cecília está fazendo. Fomos direcionados para o Hospital Infantil de Coimbra. E todo o procedimento foi feito em duas horas, com dia agendado, exames, medicamento. Isso tudo é formidável”, elogia o consultor imobiliário.

“Não notei preconceito”

“Oh, não tenha dúvida. Fomos muito muito muito bem acolhidas. De verdade. Não notei, nenhum preconceito”, diz Mónica, apesar de estar a par de algum discurso xenófobo nas redes sociais.

“As pessoas com quem nós nos relacionamos, os portugueses, todos muito simpáticos. Não tivemos problemas. Eu acho que a maior prova disso tudo foi no Natal. Os quatro vizinhos vieram tocar à nossa campainha e nos dar presentes. Foi muito comovente. E já fizemos jantar com eles aqui em casa. A vizinha aqui de trás tem uma escada para ela descer e subir. Esse muro eu não corro nenhum risco”, graceja.

Marcelo só lamenta ainda aguardar o agendamento do reagrupamento familiar, pelo facto de a mulher ser cidadã italiana. “A burocracia está presa no SEF- Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e no AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo. Eles não têm data, não sei se não têm uma estrutura necessária para atender os imigrantes. Eu liguei hoje e eles me disseram: Marcelo, não tem vaga aberta para esse agendamento e não tem previsão”, conta, entristecido.

“Mãe, o que vai ter para o jantar?”, grita Cecília. “Pastel que é uma massa tenra com carne moída. Coisas que sentimos falta do Brasil, como o Nescau, que não encontramos aqui”, responde a mãe Mónica.


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