Revolução em curso
Dizer que os telemóveis são um elemento tecnológico disruptor, em contexto escolar, não é novidade. Que podem ser usados indevidamente, criar vícios, gerar comportamentos problemáticos, idem aspas.
Em Portugal, há muito que o problema está sinalizado. E noticiado. Desde 2012, ou seja, há mais de uma década, o Estatuto do Aluno proíbe os alunos de filmarem ou fotografarem com o telemóvel na sala de aula.
O debate da interdição, contudo, apenas ganhou dimensão nacional já este ano, e foi bater à porta do Ministério da Educação, tutelado por João Costa. A primeira acha foi lançada a 8 de maio; em poucos dias, a petição “Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones!” arrecadou mais de 20 mil assinaturas e pôs o tema na agenda.
Em França, a proibição já vigora desde 2018. Nos Países Baixos, irá começar no próximo ano letivo. Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), publicado este ano, apela à proibição dos telemóveis em contexto escolar.
Porquê? A utilização excessiva de telemóveis está associada a uma diminuição do desempenho escolar, e níveis elevados de tempo de ecrã têm um efeito negativo na estabilidade emocional das crianças, indicam vários estudos.
No início de setembro, o ministro da Educação pediu um parecer ao Conselho das Escolas sobre o uso de telemóveis dentro dos estabelecimentos de ensino por se tratar de um “tema complexo” e para não decidir de “forma intempestiva”.
Ao que a Renascença conseguiu apurar, o parecer será votado e conhecido esta sexta-feira, 27 de outubro, à tarde.
No entretanto, o Bloco de Esquerda (BE) apresentou um projeto de lei para proibir o uso de telemóveis no recreio da escola para os alunos até ao 6.º ano, que acabou chumbado no passado dia 6 de outubro, na Assembleia da República, pelo PS e PSD. O PAN também apresentou um projeto-lei para combater o cyberbullying, onde se criariam "zonas livres de aparelhos tecnológicos", mas o destino foi o mesmo.
O único diploma aprovado nesse debate foi um projeto de lei do PS em que é recomendado ao Governo a elaboração de um estudo sobre a temática.
Proibir ou não proibir
João Lázaro é psicólogo clínico e tem uma opinião vincada sobre a proibição dos telemóveis nas escolas. “Estamos a morrer aos poucos na nossa relação humana, pelo uso abusivo dos telemóveis.” Mais que tudo, João Lázaro é pai de um rapaz de 14 anos. Por isso, tem acesso ao quotidiano escolar de um adolescente. “Tenho um filhote. Ele diz-me: Ó pai, há miúdos que estão ao lado um do outro e que estão a mandar mensagens um ao outro.”
Numa conversa a propósito de identidade de género, ainda no último verão, o filho de João Lázaro comentou: “Ó pai, se disser a um colega que vamos falar sobre isto ou faço uma pergunta, ele olha para mim com um ar mais ou menos atónito e diz: já viste este TikTok do gajo a comer um pacote de pimenta?”
O psicólogo clínico diz-se pouco otimista e alerta para uma perda “do contacto visual”, do “tom de voz” entre crianças e jovens e até adultos: “Aquilo que faz a comunicação é só a palavra e a ideia contida na palavra.”
Ao usarem o telemóvel como intermediário de muitos dos seus contactos e diálogos, tanto adultos como crianças estão a perder “a competência de se lerem uns aos outros”.
“Quando escrevemos uma mensagem, quem lê do outro lado não lê o tom de voz, lê a palavra. Então, interpreta-a consoante o seu estado de espírito, conforme o pré-conceito que tem acerca do outro”, explica o psicólogo.
Cético de posições absolutistas, João Lázaro defende que é necessária uma “atitude pedagógica de ensinar, de consciencializar as pessoas”. Proibir “é como se quiséssemos parar os relógios para parar o tempo”.
“Tenho é que educar as pessoas a saberem usar o telemóvel com alguma parcimónia e sobretudo terem consciência de quanto estão a perder, quantas oportunidades perdem, de: se posso falar diretamente, porque é que vou falar com uma máquina ou através de uma máquina?”
Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), partilha da opinião do psicólogo clínico. Defende que é preciso “entregar o sentido de responsabilidade aos alunos”. E mais: cada escola, tendo em conta a sua realidade, deve ter liberdade de tomar as medidas que julgue adequadas.
“Acho que cada escola deve tomar as decisões de acordo com a comunidade em que está inserida”, afirma.
No estabelecimento de ensino que dirige, em Cinfães, desde o arranque do ano letivo, Manuel impôs o que diz ser “uma proibição racional”. Os alunos podem trazer o telemóvel, "nós não ficamos com nenhum telemóvel, cada um tem o seu", mas não podem "é usá-lo nos espaços públicos da escola”.
Segundo o dirigente da ANDE, a interdição – tomada em conjunto com a comunidade escolar, “praticamente com a unanimidade” total dos pais – “tem corrido muitíssimo bem”, garante.
“Nós não fazemos caça às bruxas nas escolas, com certeza. Mas os próprios miúdos encarregam-se de resolver o assunto. Portanto, não deixam que os outros usem os telemóveis na escola. Tem corrido muitíssimo bem.”