Catorze anos depois de ter sido obrigado a sair, Telmo ainda sonha que mora no bairro de São Vicente Paulo

Em março, a Câmara do Porto lançou um concurso para a construção de 232 fogos no Monte da Bela, onde, até 2007, existia o bairro social São Vicente de Paulo. Antigos moradores, então obrigados a sair, querem voltar, mas, apesar de metade dos fogos ir ficar na posse do município, os valores do Programa de Arrendamento Acessível tornam o regresso impossível. Movimento Habitação Hoje! critica moldes do negócio e diz que, no final, o município ficará a perder.

18 jun, 2021 - 07:00 • Fábio Monteiro



Encontro de antigos moradores do bairro S. Vicente de Paulo. Foto: DR
Encontro de antigos moradores do bairro S. Vicente de Paulo. Foto: DR

O que é íntimo nunca se desvanece da consciência; mesmo com o passar do tempo, há raízes que sobrevivem. Telmo Guerra tinha 16 anos, quando, em 2007, foi obrigado, juntamente com a família, a abandonar o bairro social São Vicente de Paulo, no Porto, hoje renomeado pela câmara como Monte da Bela.

Há catorze anos que os seus documentos atestam uma morada diferente ~- Fernão Magalhães, Campo 24 de Agosto -, mas, volta e meia, a mente prega-lhe partidas. “Desde que saí de lá, se sonhar que estou em casa, eu não sonho que estou na minha casa [atual], mas sim que estou na minha casa do bairro. É muito esquisito, mas todos os sonhos que tenho, se estiver em casa, nunca é na minha casa. É lá, onde eu cresci. Mesmo com a minha idade, estou lá. É engraçado”, confessa.

Telmo recorda um bairro em que existia o “conceito de família”, um lugar onde “todos conheciam todos”; retém o “cheiro a terra molhada, quando os jardins levavam mangueiradas à noite”. “Era uma coisa simples, mas era muito bonito. Hoje em dia, não consigo encontrar isso em lado nenhum”, diz. Este tempo é hoje uma miragem para Telmo, mas também para Maria José, de 43 anos. Com um filho de nove meses nas mãos e uma mãe doente para cuidar, em 2003, Maria José saiu do bairro São Vicente de Paulo e foi morar para Contumil, numa urbanização perto do Estádio do Dragão. A jovem mãe tinha pedido à câmara para fazerem obras, “mas eles disseram que não, que não tinha direito, que o bairro ia a baixo e que tinha de sair”.

“Muita gente saiu revoltada”, mas saiu. As famílias que moravam no bairro não tinham outra opção, se queriam continuar a ter um teto. Ainda tentaram “travar as máquinas”, mas sem sucesso. Quando os mais idosos começaram a sair, “aí é que o bairro começou a ficar inseguro, porque depois começaram a meter-se pessoas dentro das casas já abandonadas. Começou a insegurança e as pessoas a quererem sair de lá o mais depressa possível”, recorda Telmo.

Entre 2004 e 2013, com Rui Rio (o atual líder do PSD) no comando do município do Porto, foram muitos os bairros sociais demolidos na maior cidade do norte do país. “Tudo começou com o Rui Rio. Foi ele que mandou abaixo duas torres do Aleixo e também o bairro S. João de Deus”, lembra Telmo. Na época, os moradores foram “ameaçados indiretamente”: “disseram que as pessoas tinham que sair do bairro, porque, se não saíssem, mais tarde ou não teriam as casas da câmara ou então iam ser recolocadas em qualquer sítio que calhasse. E claro as pessoas mais idosas acabaram por aceitar e sair.”


Foto: DR
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Novas encarnações, novos problemas

Mais de uma década depois de terem saído de São Vicente de Paulo, muitos dos antigos moradores ainda regressam regularmente ao bairro; têm um grupo no Facebook onde trocam memórias e fotografias. No passado dia 10 de junho, alguns encontraram-se no bairro para conviver e manifestarem-se. Isto porque, em março deste ano, a Câmara do Porto lançou um concurso para a construção de 232 fogos no agora Monte da Bela.

Tirando inspiração em medidas que já existem em alguns países europeus, com maior parque habitacional público do que Portugal, a obra será suportada por privados, que em troca receberão parte dos terrenos e parcelas que integram o Plano de Pormenor das Antas; por sua vez, a autarquia ficará com “pelo menos metade dos fogos” para colocar no mercado através do Programa de Arrendamento Acessível (PAA).

A notícia foi recebida por Telmo e Maria José com surpresa e indignação. “Senti-me um pouco mal, desamparado. Acho que deveriam ao menos construir algo para os antigos moradores, para aqueles que quisessem voltar”, conta Telmo. Quando Maria José soube, foi à câmara conversar com a deputada municipal Ilda Figueiredo, da CDU. Ficou assim a saber que o projeto havia sido aprovado com votos a favor do PSD e do movimento independente liderado por Rui Moreira, e que, na prática, “não havia nada a fazer”.

Regressar ao antigo bairro é praticamente impossível. As rendas praticadas pelo PAA – 20% abaixo da média do valor de mercado no setor privado - não são, de todo, comportáveis para os rendimentos que auferem. “Pretendem construir casas com rendas acessíveis em que as rendas acessíveis são 500, 600 euros, e as outras casas ainda mais caras”, diz Telmo. Acessível, só de nome. É assim que os antigos moradores do bairro de São Vicente de Paulo veem as rendas que vão ser praticadas. “Se nós tivéssemos o ordenado do Rui Moreira, para nós seria uma renda acessível”, atira.

Maria José também ataca na mesma linha de pensamento: “Quem morou lá é que devia ter prioridade. Mas ele não quer fazer isso. E pelo aquilo que sei, ele quer pôr um T1 por 600 euros. É uma renda acessível isso? Só se for para o dinheiro dele? Ele deve ganhar milhões.”.

Maria José tem dois filhos e um ordenado de 717 euros, o marido ganha 800 euros. O PAA implica que a taxa de esforço de uma família seja no máximo de 35%. Dito por outras palavras: podem pagar no máximo uma renda de 530 euros, valor que, tendo em conta os preços atuais do mercado no Porto, não chega para um T1.


Rui Moreira na cerimónia de assinatura do auto de consignação da obra de reconversão do Antigo Matadouro Industrial de Campanhã. Foto: Estela Silva/RR
Rui Moreira na cerimónia de assinatura do auto de consignação da obra de reconversão do Antigo Matadouro Industrial de Campanhã. Foto: Estela Silva/RR

Um mau negócio?

Para o Movimento Habitação Hoje! o PAA tem muitos defeitos. Mas esse nem é o maior problema no que toca ao concurso lançado pelo município do Porto para o Monte da Bela. Apesar de a autarquia ficar com pelo menos 50% dos fogos construídos, é um mau negócio, diz Bernardo Alves à Renascença. O Plano de Pormenor das Antas – de onde a câmara irá ceder terrenos e parcelas ao promotor que ganhar o concurso– é um sítio onde só existe habitação de luxo. Ou seja, são terrenos “supervaliosos” em “troca de construção”.

“Se nós somarmos a capacidade construtiva do Plano de Pormenor das Antas, que são 170 fogos, a câmara na verdade fica apenas com 30% dos fogos que poderia ter em terrenos públicos. Eu pelo menos quando faço parcerias com alguém normalmente faço um esforço de 50/50 e se sou eu que tenho o bolo e a faca, se calhar ainda exigia um 70/30 ou um 60/40. Agora eu tenho o bolo e a faca e exijo 30 para mim”, diz o arquiteto de 25 anos.

Mais: os terrenos estão situados perto de Campanhã, onde há vários investimentos em infraestruturas a decorrer neste momento. “A câmara está a vender um terreno com os valores de hoje aos privados que daqui a um ano, quando estas obras estiverem prontas, vai valer cinco, seis vezes mais do que está a valer agora”, afirma.

Segundo contas do movimento, aos preços de hoje, um promotor que invista perto de 120 milhões de euros na construção de casas de luxo – tanto no Monte da Bela como nos terrenos das Antas – conseguiria um lucro na venda de perto de 246%. Mas como se for considerada a taxa de crescimento média da Freguesia de Campanhã dos últimos 4 anos (17%) e for aplicada aos próximos 4 anos (tempo de construção previsto na proposta) o lucro atinge os 266 milhões de euros, 548% do investimento.

Somadas a estas contas, há ainda o fator Plano de Recuperação e Resiliência. “O que a câmara está a abdicar de terrenos num momento em que o Estado está a dizer que nós temos dinheiro para construir habitação pública a fundo perdido, é uma coisa completamente descabida. A única conclusão que se pode tirar daqui é estas pessoas não querem resolver o problema da habitação”, atira Bernardo.


Bairro São Vicente de Paulo, Porto, 1950. Foto: Arquivo Municipal
Bairro São Vicente de Paulo, Porto, 1950. Foto: Arquivo Municipal

Ferreirinha e direitos

Entre antigos moradores do bairro São Vicente de Paulo, sobrevivem várias histórias sobre a origem do bairro. O sentimento de injustiça é omnipresente. Até porque consta – mas ninguém sabe dizer a origem da história – que a propriedade onde foi construído o bairro foi doada ao município pela “Dona Ferreirinha”, a grande empresária do Douro do século XIX, sob condição de que ali fossem feitas casas para famílias pobres. “Desde criança que sempre ouvimos isso, que havia uma senhora do Douro, a Ferreirinha, que doou o terreno à câmara, para fazer casas para os pobres e que as casas eram nossas” ao fim de 25 anos, conta Telmo. Maria José corrobora a história.

A Renascença contactou os descendentes da empresária, mas estes disseram “não ter conhecimento sobre essa eventual dádiva”. E a narrativa que traçam os registos camarários também vai contra essa possibilidade.

Os terrenos para a construção do Bairro da Corujeira (que depois foi rebatizado de São Vicente de Paulo), cuja primeira fase foi inaugurada em 1949, foram adquiridos pela câmara por 5.200.000$00 (Civitas. Revista da Câmara Municipal do Porto, 1950), “um valor muito elevado para a época”, de acordo com o historiador Gaspar Martins Pereira. Foram construídas 148 moradias, pagas apenas pelo município.

Relativamente à parte da história que sobrevive sobre as casas ficarem para os moradores ao fim de 25 anos, está relacionada com os bairros económicos construídos durante o período do Estado Novo. Na época, o Governo tentou aplicar uma medida intitulada “rendas resolúveis”, cujo princípio era que as rendas pagas pelas famílias servissem para pagar diretamente o custo da construção da casa ao fim de 20 ou 25 anos.

Todavia, esta medida nunca foi um sucesso e, logo depois da construção do bairro de São Vicente de Paulo, acabou por ser extinguida, já que as famílias realojadas nos bairros económicos não tinham capacidade financeira para fazer face aos valores cobrados.


Fotografias dos antigos moradores do bairro S. Vicente de Paulo. Foto: DR
Fotografias dos antigos moradores do bairro S. Vicente de Paulo. Foto: DR

Um adeus português

Maria José gostava que Rui Moreira lhe explicasse o porquê de não poder voltar para o bairro onde cresceu, o porquê de uma percentagem dos novos fogos a construir não ser para arrendamento social, de forma acolher alguns antigos moradores. “Já mandei mail para ele e tudo. Queria é que respondesse.” As esperanças são poucas, o desgosto é grande.

Há 14 anos, algumas das pessoas mais idosas que moravam no bairro e foram forçadas a sair adoeceram. “Muitas faleceram devido à saudade”, garante Telmo. A mãe de Maria José lutou por não sair. “Dizia que não saía de lá, só se deitassem a casa por cima dela.” Mas, no final, cedeu.

A mãe “durou pouco” depois, conta Maria José, que gostava de um dia voltar ao bairro da infância. Telmo tem a mesma ambição – nem que seja noutra vida. “Quando morrer, quero que as cinzas sejam lá postas”, diz.


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