O que é íntimo nunca se desvanece da consciência; mesmo com o passar do tempo, há raízes que sobrevivem. Telmo Guerra tinha 16 anos, quando, em 2007, foi obrigado, juntamente com a família, a abandonar o bairro social São Vicente de Paulo, no Porto, hoje renomeado pela câmara como Monte da Bela.
Há catorze anos que os seus documentos atestam uma morada diferente ~- Fernão Magalhães, Campo 24 de Agosto -, mas, volta e meia, a mente prega-lhe partidas. “Desde que saí de lá, se sonhar que estou em casa, eu não sonho que estou na minha casa [atual], mas sim que estou na minha casa do bairro. É muito esquisito, mas todos os sonhos que tenho, se estiver em casa, nunca é na minha casa. É lá, onde eu cresci. Mesmo com a minha idade, estou lá. É engraçado”, confessa.
Telmo recorda um bairro em que existia o “conceito de família”, um lugar onde “todos conheciam todos”; retém o “cheiro a terra molhada, quando os jardins levavam mangueiradas à noite”. “Era uma coisa simples, mas era muito bonito. Hoje em dia, não consigo encontrar isso em lado nenhum”, diz. Este tempo é hoje uma miragem para Telmo, mas também para Maria José, de 43 anos. Com um filho de nove meses nas mãos e uma mãe doente para cuidar, em 2003, Maria José saiu do bairro São Vicente de Paulo e foi morar para Contumil, numa urbanização perto do Estádio do Dragão. A jovem mãe tinha pedido à câmara para fazerem obras, “mas eles disseram que não, que não tinha direito, que o bairro ia a baixo e que tinha de sair”.
“Muita gente saiu revoltada”, mas saiu. As famílias que moravam no bairro não tinham outra opção, se queriam continuar a ter um teto. Ainda tentaram “travar as máquinas”, mas sem sucesso. Quando os mais idosos começaram a sair, “aí é que o bairro começou a ficar inseguro, porque depois começaram a meter-se pessoas dentro das casas já abandonadas. Começou a insegurança e as pessoas a quererem sair de lá o mais depressa possível”, recorda Telmo.
Entre 2004 e 2013, com Rui Rio (o atual líder do PSD) no comando do município do Porto, foram muitos os bairros sociais demolidos na maior cidade do norte do país. “Tudo começou com o Rui Rio. Foi ele que mandou abaixo duas torres do Aleixo e também o bairro S. João de Deus”, lembra Telmo. Na época, os moradores foram “ameaçados indiretamente”: “disseram que as pessoas tinham que sair do bairro, porque, se não saíssem, mais tarde ou não teriam as casas da câmara ou então iam ser recolocadas em qualquer sítio que calhasse. E claro as pessoas mais idosas acabaram por aceitar e sair.”