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Entrevista

“Se não soubermos quais são as causas dos abusos, não estamos verdadeiramente a preveni-los”

16 ago, 2022 - 06:00 • Ana Catarina André

Sofia Marques, coordenadora do Projeto Cuidar, explica que a prevenção de maus-tratos e abusos de menores e pessoas vulneráveis, em contextos tão diferentes como escolas e paróquias, começa pela identificação dos riscos.

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Nenhuma criança deve ficar a sós com um adulto, sem que outro tenha conhecimento. As salas, com vidros ou acrílicos nas portas, são mais seguras e por isso mais indicadas para conversas individuais entre um adulto e uma criança. Estas são algumas das estratégias abordadas nas ações de formação dinamizadas pelo Projeto Cuidar, que pretendem proteger menores e pessoas vulneráveis de qualquer forma de maus-tratos ou abusos.

Em entrevista à Renascença, Sofia Marques, coordenadora desta iniciativa, criada em 2020, defende que “é fundamental estudarmos as causas dos abusos a partir de situações concretas” e perceber o contexto de vida de cada abusador.

Numa altura em que decorrem campos de férias, um pouco por todo o país, Sofia Marques, que é também coordenadora do Serviço de Proteção e Cuidado de menores e adultos vulneráveis da Companhia de Jesus, sublinha a importância de perceber o “impacto que temos no outro”. E conta que todos os animadores e sacerdotes envolvidos nestas atividades frequentam ações de formação.

O projeto Cuidar apoia organizações que trabalham com crianças, jovens e pessoas vulneráveis na promoção dos cuidados das mesmas e na prevenção da ocorrência de crimes como abusos sexuais e maus-tratos. Em que consiste este trabalho?

O projeto Cuidar está ligado a um centro de estudos, o CEPCEP [Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas] que está integrado na Universidade Católica Portuguesa, com um apoio financeiro específico, para esta missão. O intuito inicial era dar apoio às organizações católicas, mas depois foi estendido a outras. Este projeto teve e ainda tem, porque vai ter continuidade, várias áreas de ação. Uma delas ligada à formação, outra ligada mais à consultoria e outra à investigação. Estes foram os principais eixos de trabalho do Cuidar, nestes últimos dois anos.

Com que organizações estão a trabalhar?

Inicialmente começámos com as organizações católicas. Foi feita uma apresentação junto das dioceses, quando foram progressivamente abrindo as comissões diocesanas, mas também junto de congregações religiosas que têm crianças, jovens e outros públicos vulneráveis, nomeadamente em escolas, jardins de infância, casas de acolhimento. Algumas organizam também campos de férias, outras trabalham com pessoas doente, sem abrigo, pessoas em situação de toxicodependência, reclusos.

Estamos a falar de organizações de norte a sul?

Dois meses depois do início do projeto [em 2020], estávamos em plena pandemia. Isso permitiu perceber que, ao desenhar o projeto, tínhamos de fazer formações online. Participaram pessoas de todos os pontos do país, incluindo as ilhas. A determinada altura, acabámos por envolver escolas privadas, sejam elas católicas ou não, e escolas públicas. Apoiámos, no eixo da consultora, algumas escolas públicas e privadas na candidatura ao selo protetor, uma iniciativa da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção da Criança e Jovens. É isso que o projeto Cuidar faz: ajudar as organizações a criarem sistemas internos de proteção e cuidado, tendo, desde logo, uma equipa responsável pelo Safeguarding, ou seja, pela proteção e cuidado, e a promoção do bom trato.

Não se pretende acabar com momentos de um para um, atendimentos individuais. Aquilo que se pretende é que as relações existam, mas de forma segura.

Tendo em conta o universo de organizações que lidam com crianças, que parte terá já um sistema de proteção implementado?

Parece-me que claramente as escolas estão a fazer algum caminho. Ao longo dos últimos dois anos, fomos fazendo formações em muitos movimentos católicos de campos de férias, no CNE [Corpo Nacional de Escutas], e progressivamente nas paróquias. Vamos sentindo com as pessoas com quem vamos interagindo, seja através da consultoria, seja através da formação, que se vai semeando, para que se vá percebendo o que é que é cultivar o bom trato, e o que não é. Quer no projeto Cuidar, quer no serviço de proteção e cuidado da Companhia de Jesus, estamos focados na promoção da cultura do bom trato, na prevenção de maus-tratos e abusos em sentido lato. Os abusos sexuais são uma forma muito grave, uma expressão de abuso de poder que pode ocorrer em qualquer organização. A prevenção faz-se precisamente pela prevenção de qualquer forma de expressão de abuso de poder, cuidando, ensinando as crianças e os jovens a protegerem-se, a serem não só beneficiários da proteção, mas também agentes de cuidado dos seus pares, a sinalizarem e a ajudarem outro amigo que está a passar por alguma situação e que não consegue falar, por exemplo.

Referia há pouco que é preciso clarificar o que se entende por cultivar o bom trato. O que é?

Nesta área em que a missão é educativa, formativa, espiritual, temos tentado sensibilizar [as organizações] para que haja um olhar e uma identificação dos riscos nas interações, nas próprias atividades, em determinados espaços. Não se trata de olhar para estes riscos com o intuito de acabar com tudo aquilo que faz sentido. Não se pretende acabar com momentos de um para um, atendimentos individuais. Aquilo que se pretende é que as relações existam, mas de forma segura. Nas formações sensibilizamos muito para o seguinte: quando o adulto que está a cuidar das crianças e não está bem, isto pode afetar a forma como cuida do outro. A nossa preocupação é trazer um olhar para o impacto que a forma como agimos pode ter no outro. Será que aquela criança sente que com o meu gesto, a minha atitude, a minha palavra, está a ser cuidado? Ou sente-se de alguma forma discriminado ou ofendido, ignorado ou humilhado? Daí a importância do detalhe: não é preciso só ter em conta as coisas muito graves, mas a subtileza da interação.

Em que consiste a formação que é dada neste âmbito?

Quer no âmbito do Projeto Cuidar, quer no âmbito da Companhia de Jesus, foram feitas formações com dois níveis e dois objetivos diferentes. No caso da Companhia de Jesus, aquilo que foi feito com uma maior regularidade e, vem sendo feito desde 2018, quando o seu sistema de proteção e cuidado entrou em vigor, são formações de seis horas.

Seja numa escola, seja num campo de férias, seja numa paróquia, um momento de um contacto individual, de um para um, faz-se em espaços que sejam acessíveis.

Que tem que tipo de conteúdos?

Há uma primeira parte não só sobre o enquadramento espiritual do tema, mas também sobre o enquadramento conceptual. Do que estamos a falar quando falamos de maus-tratos e abusos? Quais os sinais? Há aqui também uma vertente informativa para que, na interação de adultos com crianças, se consiga perceber que determinados comportamentos podem ser sinal de que aquela criança não está bem. Um segundo conteúdo tem a ver com a identificação dos riscos. Há um instrumento, nesta primeira sessão, que se chama mapa de riscos. Cada organização, cada obra da Companhia de Jesus identifica quais são os riscos de qualquer forma de maltrato ou abuso, dentro da sala de aula, no recreio, em campo de férias, em atividades de grupo, em atividades mais individuais. No fundo, cada organização identifica quais são as atividades, os espaços, as interações de risco. Qual é o objetivo disto? É perceber quais são as causas destes riscos e identificar medidas preventivas. Por exemplo, se percebermos que os adultos estão a gritar muito, para manter a ordem, e não conseguem encontrar melhores estratégias para que este grupo se organize, se acalme, procuramos entender a causa. Será que precisamos de lhes dar estratégias de comunicação, por exemplo?

No caso dos abusos, a prevenção é feita de outra maneira?

Sim. Mas antes deixe-me só terminar o que estava a dizer sobre os conteúdos da formação. A primeira parte é mais sobre conceitos e identificação dos riscos. A segunda é muito focada na questão dos comportamentos, e está ligada ao código de conduta. A terceira tem a ver com a ação. Há um fluxograma de atuação. Quando há alguma situação como é que se age? Como é que se atua quando há alguma sinalização de maltrato ou abuso? O código de conduta do sistema de proteção e cuidado está tripartido entre condutas a promover, a evitar e a proibir. Nas situações dos maus-tratos e abusos, incluindo os abusos sexuais, há toda uma cultura a promover. Quais são as normas mais específicas para poder evitar alguma espécie de maltrato ou de abuso? Na verdade, encontramos no código de Conduta uma regra que diz, por exemplo, que não deve haver uma criança e um adulto sozinhos no mesmo espaço. Está claro para todos que não há um adulto e uma criança a dormir na mesma tenda. Seja numa escola, seja num campo de férias, seja numa paróquia, um momento de um contacto individual, de um para um, faz-se em espaços que sejam acessíveis.

Pode dar alguns exemplos?

As escolas têm portas com vidros ou acrílicos que garantem alguma privacidade [nas conversas de um para um], e ao mesmo tempo perceber o que se passa lá dentro. Esses momentos devem estar devidamente marcados, calendarizados. Deve haver alguém que sabe que está a acontecer e também se responsabiliza, sabe e vigia. Queremos garantir que a criança está bem, protegida. Se tem medo na primeira noite de um campo de férias, e quer dormir ao pé do adulto, o é que se faz? Põem-se várias crianças, com vários adultos, em espaços maiores, ou um adulto do lado de fora. Quantas vezes eu, que fiz campos de férias, muitos anos, fiquei à porta da tenda, como a mãozinha lá dentro, à espera que a criança adormecesse porque estava com medo? É preciso criatividade para levar segurança a estas interações que podem ser de risco. É preciso mostrar a adultos e animadores que são uma equipa. Não é pô-los com olhar de polícia uns para os outros. São todos agentes de cuidado, de proteção.

No caso específico do Serviço de Proteção e Cuidado de Menores e Adultos Vulneráveis da Companhia de Jesus, todos os animadores de campos de férias têm de fazer esta formação?

Sim. Esta formação, que começou em 2018, foi sendo dada não só aos animadores de campos de férias, mas também noutros contextos. Todos os professores, funcionários, colaboradores das obras da Companhia de Jesus têm esta formação. Para além da equipa provincial, cada obra tem uma equipa SPC [Serviço de Proteção e Cuidado], com um delegado, e em alguns casos subdelegado também. É a quem qualquer animador, pode telefonar e contactar, para além de mim.

Os padres que acompanham estes campos de férias também fazem esta formação?

Também. Tem sido progressivo.

Temos que verdadeiramente cuidar também das pessoas, dos suspeitos.

Este sistema contribui para minimizar receios que possam surgir por parte dos pais que podem temer pela segurança dos filhos, fruto da mediatização dos casos de abuso sexual?

Sim. Mais do que um sistema com determinadas regras, é importante que seja um serviço que é sentido por todos, incluindo pelos pais. Mais do que as regras, pretende-se passar normas de conduta, e que os pais se revejam nelas também, que falem com os filhos e estejam atentos. Além dos interlocutores que sempre tiveram (diretores, psicólogos, responsáveis de turmas), há uma equipa especializada do sistema de proteção e cuidado e uma equipa provincial de contacto fácil. Não é só dar-lhes segurança como beneficiários. É também envolvê-los como agentes de cuidado dos seus próprios filhos, como agentes de atenção.

Recebem denúncias?

A Companhia de Jesus criou o serviço de escuta, com o objetivo de acolher e acompanhar vítimas de abusos sexuais. [No projeto Cuidar], encaminhamos [as vítimas], mas não é a nossa missão receber denúncias.

Este sistema de proteção e cuidado já foi implementado noutras organizações da Igreja além da Companhia de Jesus?

Sabemos que algumas congregações religiosas, quer masculinas, quer femininas, têm os seus sistemas de proteção. Outras apoiaram-se no SPC da Companhia de Jesus, como base de trabalho a partir da qual desenvolveram os seus [sistemas].

Considerando que o Projeto Cuidar tem também uma vertente associada à investigação, quais são as áreas que, na sua opinião, carecem de mais estudo e aprofundamento no âmbito dos abusos sexuais de menores?

Aquilo que me parece absolutamente imprescindível aprofundar, relacionado com os abusos sexuais, tem a ver com as causas dos abusos. Enquanto não soubermos e não conseguirmos trabalhar as causas dos abusos, não sei se não estamos a dar tiros um bocadinho ao lado. Evidentemente que aquilo que são as responsabilidades que a lei nos traz, temos todos que acatar e cumprir. Agora, se não soubermos quais são as causas dos abusos, não estamos verdadeiramente a preveni-los. Não estamos a ajudar as crianças. Ensinar as crianças para saberem aquilo que no seu corpo pode ser tocado ou não, quais são os segredos bons e maus são estratégias para que se protejam, e protejam outras. É fundamental estudarmos as causas dos abusos a partir de situações concretas. O que é que se passava com esta pessoa em concreto, com este abusador? O que é que se passava na sua vida? Não estamos a falar de pedofilia. Pedofilia é uma perturbação, uma patologia clínica. Temos que verdadeiramente cuidar também das pessoas, dos suspeitos, das pessoas em geral, seja em contexto de igreja, seja em contexto familiar. Qual é a raiz, a causa destas manifestações de abuso de poder, seja o abuso de poder dos pais para com os filhos, seja o abuso de poder dos educadores para com as crianças que educam os professores, os treinadores, os padres, os abusos? Porque todas estas manifestações são manifestações de abusos de poder, que nas formas mais graves se podem manifestar em abuso sexual.
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  • Desabafo Assim
    21 ago, 2022 Porto 13:18
    Na verdade existem textos na nossa imprensa que respondem ao título. É cruel mas é assim.
  • José J C Cruz Pinto
    16 ago, 2022 ILHAVO 15:11
    Não venham com "teorias" muito "sofisticadas"! Elas poderão ser interessantes e, sobretudo, úteis para explicar e detectar a possibilidade de primeiros crimes e evitá-los, mas as causas principais das reincidências são (1) a existência de abusadores que escaparam a uma primeira detecção por incúria pura e simples de dirigentes e instituições, e (2) a persistência da mesma incúria ou encobrimento cúmplice. Independentemente e antes mesmo das "teorias", acabemos é com a incúria e os encobrimentos.

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