Entrevista a Luísa Schmidt

"Crise ambiental não se compadece com promessas vagas, sem garantias e prazos no seu cumprimento"

28 fev, 2024 - 00:32 • José Pedro Frazão

A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa lamenta que as questões ambientais não estejam na agenda dos líderes partidários e insiste na necessidade de compromissos com metas concretas.

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Luísa Schmidt carrega sempre nos adjetivos na hora de criticar a ausência “gritante, incompreensível, extraordinária” de inclusão dos temas “importantíssimos, fundamentais, centrais” do ambiente nos debates e na campanha para as eleições legislativas de 10 de março.

Num olhar sobre os programas eleitorais, a socióloga especializada em assuntos ambientais reconhece que algumas encruzilhadas são abordadas. Em entrevista à Renascença, Luísa Schmidt encontra parágrafos sobre clima, transição energética, sobre água e animais de companhia. Mas não há muito “ou quase nada” sobre solos, conservação da natureza, construção no litoral ou florestas. E o problema, diz a investigadora coordenadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, é que as medidas que os partidos apresentam não vêm com “prazos e compromissos claros”.

O ambiente é um tema que tem motivado protestos e manifestações, numa mobilização de rua sobretudo dos mais jovens. Quando olha para os programas eleitorais, encontra satisfação nas propostas ou deceção na forma como olham para a questão do ambiente?

Antes de falar dos programas, deixo uma primeira nota que tem a ver com os debates onde a questão ambiental e as alterações climáticas estiveram completamente ausentes. É um tema fundamental para o nosso futuro em termos sociais, ambientais e económicos. Há uma ausência gritante desse ponto de vista.

Isso deve-se ao facto de as lideranças e os partidos não colocarem este tema nos debates, independentemente da agenda dos órgãos de comunicação social? Significa que há uma desconexão entre os líderes partidários e a sociedade?

Há uma desconexão com a sociedade e com o mundo, como se Portugal vivesse completamente à parte de problemas globais. A crise ambiental global é algo que nos atinge e atingirá cada vez mais. Não colocar esse problema na agenda significa que Portugal está num “mundinho” à parte, das pequenas coisas. É uma falta de visão geoestratégica e geopolítica, que é muito importante e que praticamente não é abordada nas questões ambientais.

Efetivamente é um tema secundarizado nos programas e na cabeça das lideranças. Mas também é verdade que podia haver uma agenda de quem gere os debates mediáticos que puxasse mais por esses temas, o que também não tem acontecido.

Estuda a agenda mediática ligada a esta matéria. Vê alterações nos últimos tempos que levem a esta situação? Há uma desatenção dos próprios media que explique esta ausência?

Há uma contradição, porque sentimos uma presença crescente das questões ambientais em geral nos noticiários e nos programas. Há uma maior atenção por parte dos media tradicionais, ou seja, das televisões, rádios e dos jornais, etc. Depois, quando se chega ao debate, tem falhado a introdução destes temas fundamentais e que são uma ausência incompreensível.

Não há nada sobre como a sociedade se está a organizar, como nos vamos adaptar aos impactos das audições climáticas num país que é um ‘hotspot’ da biodiversidade, com uma Zona Económica Exclusiva tremenda. Não há nada sobre isso. Desse ponto de vista, julgo que estamos muito aquém daquilo que seria desejável. Isto para não falar, por exemplo, do Pacto Ecológico Europeu, onde tem havido algumas regressões, mas que ainda é o programa fundamental pelo qual ainda se regem as grandes medidas das políticas europeias e dos financiamentos - digo ainda, porque não se sabe como vai ser nas próximas eleições europeias.

Os temas de transição energética, mobilidade, conservação da natureza e da infraestrutura verde e azul - que é tão importante - do aumento da proteção terrestre e marinha, das florestas, tudo isso são fundos que vêm da União Europeia. Se somos um país da União Europeia, devíamos estar a olhar para esses assuntos num futuro próximo. 40% dos investimentos do PRR serão para esta área e, portanto, a ausência deste problema é gritante nos debates.

Isso é compensado nos programas eleitorais?

Em todos os programas há capítulos sobre os principais problemas ambientais do país. Todos falam das questões do clima, menos um. Está-se mesmo a ver qual é o partido que cita uma vez o tema, apenas para relacioná-lo com as emissões, os transportes e a mobilidade. É um desses pequenos partidos, de quem prefiro nem falar para lhe dar menos existência, que nem refere as questões do clima e que é muito ‘pobrezinho’ em tudo o que diz respeito às questões ambientais. Pelo contrário, até apresenta propostas regressivas relativamente a essas questões.

Tirando esse partido, em todos os outros programas, há capítulos sobre os principais problemas e políticas ambientais do país. Mas em geral, com algumas exceções como sobretudo o LIVRE, mas também o Partido Socialista e outros como o PAN, os partidos não apresentam medidas concretas, com agenda e compromisso, para os objetivos que declaram.

Diria que se resumem a grandes princípios?

São ideias do que vão fazer nas áreas do clima e da transição energética. Todos estão a pensar continuar aquilo que tem sido a transição energética para as renováveis, com posições diferentes - se é hidrogénio ou não - mas todos falam desses temas. Na conservação da natureza, há muito pouco, praticamente nada. Quando se chega ao que é importante, que é assumir uma agenda com compromisso, então praticamente nada acontece.

Aprovámos uma Lei do Clima muito debatida por todos e aprovada na Assembleia da República, muito interessante, que aponta direções e claramente dirigida para a ação climática. Aí também há dois ou três partidos que falam disso. Os outros nem sequer referem esta lei.

Há uma discussão sobre a água, que é um assunto interessante. Há partidos que avançam uma proposta de transvases, assunto que está de novo a voltar ao debate muitos anos depois de ter sido muito mais discutido. A gestão de água está a regressar ao debate pelo efeito da alteração climática sentida por comunidades e também, de certa maneira, é uma agenda ‘arrastada’ pela agricultura. Como vê a introdução do tema da água nos programas eleitorais?

É um pouco variada, conforme os programas, mas evidentemente os transvases aparecem nos partidos mais à direita. Também aparece alguma coisa no programa do Partido Socialista relativamente a transvases, mas com mais cautelas.

São altamente polémicos, porque implicam desde logo que as regiões do Norte estejam de acordo relativamente a transvases para o Sul. As questões da água e da escassez hídrica que já estamos a viver - e que vamos viver cada vez mais - têm de ser muito mais detalhadas nos programas eleitorais.

Mas houve reivindicações, até um caderno de associações ambientalistas sobre rios e água.

Exatamente. Outra coisa extraordinária é que praticamente não se fala da questão fundamental dos rios ibéricos. Para podermos ter água em Portugal, temos que pôr a Convenção Luso-Espanhola a funcionar e ter um acordo com Espanha muito mais ativo e atual do que temos tido. Essa é uma questão central. Não vale a pena pensar nos rios ibéricos e nos transvases se depois não houver um diálogo direto com Espanha.

Na questão do domínio público hídrico, não se fala, por exemplo, da articulação das produções intensivas com o excesso de utilização da água. A agricultura gasta cerca de 75% da água em Portugal. É preciso repensar o modelo. Não digo que, em determinadas zonas, não faça todo o sentido existir regadio e funcionarem com produções Intensivas. Mas há um limite. A tendência está mais do que estudada e sabemos que o caminho é para a escassez hídrica. Não podemos esquecer este problema e temos de tratá-lo de uma forma muito mais aprofundada.

Nenhum programa fala, por exemplo, das águas subterrâneas serem declaradas de domínio público hídrico, como já acontece em alguns países. Também a gestão das bacias hidrográficas é fundamental para termos um recurso vital e uma governança mais próxima dos problemas das comunidades e das populações. Portugal foi parar ao Tribunal Europeu porque não conseguimos cumprir a gestão dos planos de bacia nem toda a parte ligada às questões das inundações.

Precisávamos de saber coisas muito concretas e não vagas logo no dia a seguir à tomada de posse.

Pode dar exemplos?

Quantos dias são precisos passar para que a emergência climática se instale nas zonas costeiras e não se deixe continuar a construir em zonas que já se sabe que são vulneráveis e que estão em risco?

Quantos dias depois das eleições é que se interditam as produções intensivas em zonas com escassez hídrica?

Quando é que é criada a infraestrutura verde e azul, que é uma diretriz do Pacto Ecológico Europeu?

Quando é que se repõem as figuras dos diretores da área protegida, sendo Portugal o único país no mundo que não tem um diretor de área protegida e dos parques naturais?

Em relação às florestas, por exemplo, quando é que o cadastro florestal está pronto? Ninguém fala nas Áreas de Intervenção de Gestão da Paisagem, as AIGP, importantíssimas para a prevenção dos incêndios, que começaram muito lentamente e demoram a ser instaladas, mas que não são faladas nos programas. São fundamentais para o ordenamento florestal do país, para reduzir os incêndios e, portanto, reduzir também o dinheiro brutal que se gasta no combate aos fogos.


Encontra preocupação ambiental transversal nos programas em relação à questão ambiental em áreas como a energia, como os transportes? Provavelmente não encontra as questões da mobilidade e da ferrovia no capítulo do ambiente, mas estão espalhadas noutras opções.

Essa preocupação em relação à mobilidade existe e alguns ligam-na à poluição do ar. A mobilidade está lá, a questão da transição energética também, embora alguns ‘peregrinos’ vão buscar a ideia da energia nuclear, quando já se sabe que nem sequer economicamente é viável instalar esse tipo de energia em Portugal. É evidente que neste momento praticamente todos falam da ferrovia, mas não concretizam o que é que devia ser um plano ferroviário a sério.

A ligação com Espanha, por exemplo, é fundamental. Estamos aqui neste canto da Europa e precisamos de uma ligação célere, rápida e organizada com Espanha. Isso também não é falado por todos.

Fala-se sobretudo do projeto de alta velocidade Lisboa-Porto.

Isso fala-se, com os que criticam e os que são a favor. Claro que a ferrovia é uma preocupação e isso é refletido nos programas.

E há um novo aeroporto.

Sabemos que não é também consensual. Fala-se da transição energética, mas muito poucos falam da descentralização da produção de energia, que é fundamental para descentralizar e para democratizar a produção da eletricidade. Também o restauro dos solos, que é importantíssimo não só para a agricultura como para a própria melhoria da condição da água, também não é praticamente falado.

Do ponto de vista dos princípios, comparando AD e PS, encontra muitos pontos de consenso? Há margem para um consenso maioritário em algumas destas questões?

Há margem para consenso nestas questões, embora eu tenha ficado um pouco desiludida com o programa da AD no que diz respeito às questões ambientais. Em eleições anteriores, o programa do PSD era muito mais rico em termos ambientais do que este. Não sei se é pela aliança com o CDS e com aqueles monárquicos, mas, na verdade, é um programa que, desse ponto de vista, se pode considerar mais pobre relativamente aos programas das eleições anteriores do PSD.

Isso pode resultar da influência desses outros partidos que atribuem menos importância. Ou então esta liderança atribui muito menos importância às questões ambientais quando, por exemplo, havia um outro candidato que concorreu às eleições para a liderança, Jorge Moreira da Silva, muito mais ligado a estas matérias. Se ele fosse o líder, o programa eleitoral não era este, com toda a certeza.

Quem acompanha esta área não pode deixar de anotar que quem a Aliança Democrática original, com o PPM de Ribeiro Telles, na altura tinha uma outra influência ambiental sobre a política. Também nesta matéria não se pode comparar a AD do passado com a atual?

Sim. É, aliás, deprimente comparar a AD anterior com esta. Quando pensamos em Gonçalo Ribeiro Telles, que foi uma das grandes figuras das questões ambientais, de natureza, de paisagem, de ordenamento do território em Portugal, quando olhamos para o que ele era, é impossível comparar com esta figura [presidente do PPM] desaparecida em combate. Nessa altura havia uma dinâmica muito interessante desse ponto de vista. A AD de então não tem nada a ver com esta, pelo contrário.

Há uma questão que tem contaminado algum debate na área ambiental nos últimos anos, que se reflete na subida de partidos como o PAN, mas não só. A questão dos direitos dos animais entrou bastante nesta área nos últimos anos e observamos muito essa preocupação em vários programas eleitorais. De certa maneira, parece haver um consenso em relação a esta matéria.

Há um certo consenso um pouco estranho relativamente a esta matéria dos animais. Tem muito a ver também socialmente com o peso que o animal doméstico, de casa, passou a ter. Há muita população de várias idades e setores sociais que atualmente tem um animal em casa, um cão, um gato, etc. E, portanto, desse ponto de vista, há aqui uma chamada desse eleitorado.

Defende-se o animal em casa, mas é mais difícil defender uma espécie protegida num estudo de impacto ambiental de uma estrada?

Exatamente. Todos os partidos têm essa parte do ‘animalário doméstico’. Inclusivamente esse outro partido de que não digo o nome tem essa parte. Mas depois, no que diz respeito ao restauro e à regeneração da biodiversidade, das espécies, dos ecossistemas, os programas são de uma pobreza franciscana.

A nova condição de crise ambiental global, em que nós todos vivemos, não se compadece nem com promessas vagas, nem com promessas concretas que depois são tornadas vagas pela falta de garantias e prazos no seu cumprimento. E isso é que se vê, não há nada de muito concreto. Não há nada com prazo, não há compromissos e não é com esse tipo de atitudes que se transmite ao eleitorado uma coisa simples, mas decisiva que são os compromissos, e não apenas promessas, com seriedade. E não pôr as pessoas a sonhar que talvez um dia se faça aquilo que alguns partidos escrevem lá no seu programa eleitoral.

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