Alargar luto parental "é razoável", mas apoio psicológico é fundamental

04 jan, 2022 - 07:00 • Hélio Carvalho

Ana Brazião e Pedro Bello, uma mãe e um pai que perderam os filhos, dão o seu testemunho e pedem mais apoio para os pais que ficam desamparados. O aumento do luto parental de cinco para 20 dias entra em vigor esta terça-feira.

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Na semana seguinte à morte do filho, Pedro, com dez anos, Ana Brazião regressou ao trabalho. O choque ainda estava a ser digerido e esta mãe admite que a memória ficou "um bocadinho turva relativamente a essa fase", mas recorda as dificuldades no trabalho, na vida pessoal, em toda a sua vida. Ana Brazião foi uma das muitas vozes que lutou e conseguiu a extensão do período do luto parental de cinco para 20 dias.

A petição, lançada pela associação Acreditar no início de setembro do ano passado para alargar esse período de licença, reuniu no espaço de uma semana mais de 50 mil assinaturas, mobilizou a sociedade civil e conseguiu chegar à Assembleia da República. Esta terça-feira, o aumento do luto parental para 20 dias entra em vigor.

Para Ana Brazião, que perdeu o filho para a leucemia em 2018, um dia antes do seu 11.º aniversário, o alargamento do prazo é uma questão demasiado óbvia.

"Eu presumo que 20 dias é melhor que cinco, porque cinco é absolutamente impensável, é desumano. Ninguém consegue ter a vida organizada cinco dias depois. Vinte dias já é um período razoável, obviamente que se fosse mais seria o ideal, mas conseguirmos os 20, nesta fase, eu penso que é muito bom", contou à Renascença.

"Não estava minimamente capaz de produzir"

Depois de quatro anos doente, Joana faleceu em 2005, com 16 anos. Pedro Bello conta que a morte da filha é "uma amputação para a vida toda": passaram 16 anos, mas "podem passar mais 50 anos e hei de continuar a chorar de vez em quando por ela".

Pedro conta a "facilidade" que teve em poder trabalhar remotamente, sem ir ao escritório, e em ter períodos prolongados de tempo fora para poder acompanhar a filha por hospitais, em Portugal e no estrangeiro. Uma facilidade, confessa, que está acessível a poucos.

"Eu sempre trabalhei na área técnica da banca, a nível das grandes aplicações dos bancos. Quando a Joana adoeceu estava há dois anos no BCP. Tive algo que, infelizmente, a grande maioria das pessoas não tem que foi ter uma grande disponibilidade da administração em poder acompanhar a Joana em tudo o que fosse preciso e, portanto, tive muito tempo fora do banco. Tive a sorte de ter muita disponibilidade e compreensão da entidade patronal. A mãe da Joana estava noutro banco também, no Finibanco (que por acaso já não existe), e até o dono do Finibanco, que já morreu, deu um grande apoio à mãe da Joana", revela.

Pedro Bello recorda uma altura em que trabalhava com o portátil nos corredores dos hospitais - algo que "hoje em dia não faria confusão nenhuma por causa do teletrabalho, mas naquela altura era uma curiosidade" - e, portanto, "não foi tão confuso quanto isso".

"Reconheço que a grande maioria das pessoas não teria a facilidade que nós tivemos de poder estar muito tempo fora do trabalho".

Já Ana Brazião, que fundou a cooperativa Pedrinhas, que procura ajudar com atividades lúdicas as crianças internadas por doença oncológica, trabalha como sócia-gerente numa empresa e, "nesse campo", admite que teve "mais facilidade".

"Qualquer empresário nesta situação tem de entender que as pessoas são humanas e é impossível pensar que uma pessoa consegue trabalhar cinco dias depois de uma situação destas", salienta.

Ana Brazião explica que teve "dificuldades de concentração, de raciocínio, dormia mal, e não estava minimamente capaz de produzir". Pelo que o alargamento do período de luto parental torna-se vital para os pais poderem organizar a sua vida antes da retoma ao trabalho.

"Há muitas questões que têm de ser organizadas. Primeiro há a questão do funeral, depois há questões bancárias, da logística da casa e dos espaços, gestão familiar. Há muita coisa que faz com que as pessoas não tenham disponibilidade para se dedicarem ao trabalho logo a seguir", realça a mãe de Pedro.

Quando o luto acaba em divórcio

Outra questão menos mencionada quando se fala no alargamento do prazo do luto parental é o "risco" de divórcio que muitos casais enfrentam depois da perda de um filho.

Pedro Bello, que também é voluntário na Associação Acreditar, conta que muitas famílias separam-se depois da morte de um filho e o aumento do prazo de cinco para 20 dias pode ajudar a reduzir esse problema.

"Eu diria que os 20 dias seriam bons para diminuir a taxa de divórcio. Nós, a maioria dos casais, estamos focados na tentativa de salvar um filho e não pensamos em mais nada, não pensamos em casamento, em família, no trabalho, estamos focados naquele ponto. De repente, isso desaparece e, quando voltamos para casa, temos ali um vazio, e a gente praticamente já nem sabe falar um com o outro, porque as conversas eram o dia seguinte do filho."

O bancário dá como exemplo a sua experiência pessoal: a sua filha, Joana, morreu em janeiro e, em maio, Pedro foi trabalhar para a Polónia, já divorciado.

Por isso, reitera, mudar a lei de cinco para 20 dias de luto parental será uma grande ajuda para os casais. "Alargar o prazo era bom para fazermos o luto juntos", sublinha.

Falta apoio psicológico

Pouco tempo depois de ter voltado a trabalhar, Ana Brazião ficou de baixa médica para se poder "restabelecer" da morte do filho. As dificuldades no trabalho eram demasiadas e Ana não pediu a baixa, mas recebeu ordem para fazer uma pausa.

"O meu médico achou que eu não devia trabalhar e ele disse que eu devia parar durante um período para tentar restabelecer-me", relata.

Pedro Bello diz que ele e a ex-mulher tiveram "sorte", porque tiveram oportunidade de "tentar minimizar o desgosto da perda de um filho" com projetos no trabalho que funcionavam como uma escapatória, uma distração.

"Ela pôde agarrar em projetos novos e grandes que implicavam trabalhar mais de dez horas por dia. E eu fui para o estrangeiro trabalhar. Nós temos a sorte de poder acalmar a dor e chorar às escondidas fora de horas, mas a grande parte do dia estávamos focados em projetos de trabalho", afirma.

Mas para outro tipo de trabalhos, "rotineiros ou menos exigentes em termos intelectuais", fazer o luto pode ser mais difícil e, aí, entra a questão do apoio psicológico a pais que perdem os seus filhos e ficam desamparados.

"Depois da Joana morrer ainda tive alguns grupos de ajuda a pessoas que perdem os filhos e aquilo era uma grande confusão de pessoas a falar de tudo e mais alguma coisa, de guerras familiares, em vez de estarem focados na resolução do problema que era a perda do filho e a vida normal a seguir", confessa. Daí que Pedro Bello defenda que incluir um programa de apoio psicológico aos pais seja também muito importante.

Já Ana Brazião realça que, se tivesse tido algum tipo de apoio estatal quando o filho morreu, a ajuda poderia ter sido muito benéfica.

"Há muitas pessoas que falecem todos os dias e há muitas pessoas que padecem da dor de perder um ente querido, mas para um pai é sempre uma situação mais difícil de gerir porque não está de acordo com a lei normal da vida. Obviamente que todas as atenções que forem dadas aos pais que passaram e ainda vão passar por um período muito difícil são muito importantes", conclui.

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