Covid-19. Os outros doentes que a pandemia empurrou para segundo plano

29 mar, 2021 - 07:00 • Joana Gonçalves

Durante um ano, o Sistema Nacional de Saúde teve a “porta parcialmente fechada à entrada de novos doentes”. Em 2020 mais de um milhão de consultas ficaram por fazer, nos hospitais do SNS, e o número de cirurgias caiu 18%, face ao ano anterior. Elisabete perdeu a mãe, que esperou demasiado tempo por uma cirurgia. Luiz esteve quase um ano sem acesso a uma consulta de especialidade e enfrenta agora uma batalha que acreditava ter vencido. “Há doentes que já não são recuperáveis”, lamenta o bastonário da Ordem dos Médicos.

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Os doentes não culpam os médicos nem sequer os hospitais, mas a falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o que descrevem como uma má gestão de recursos que deixou milhares de portugueses "desamparados", sem assistência ou acompanhamento clínico.

Elisabete perdeu a mãe e Luiz enfrenta uma doença que por várias noites lhe tirou o sono. Em nenhum dos casos a Covid-19 esteve presente. Mas ambos acreditam que a pandemia os atirou para segundo plano, num cenário com um desfecho terrível e, sobretudo, “evitável”.

“Ainda há pouco tempo, alguns hospitais do Norte foram chamados à atenção pela tutela por estarem a tratar doentes não-Covid. Temos aqui uma situação completamente anormal. Não pode haver estigma pelos doentes”, afirma Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.

Entre março de 2020 e março de 2021, morreram mais de 134 mil pessoas em Portugal. O valor mais elevado dos últimos 40 anos. Subtraídas as mortes provocadas pelo SARS-CoV-2, o número continua a superar o anterior máximo, em mais de quatro mil óbitos.

“Lamento imenso que só se fale na Covid-19. Há pessoas a morrer por falta de assistência”


“Ela tinha 65 anos”, começa por contar Elisabete, que interrompe a conversa num silêncio que se prolonga por 20 segundos. “Era reformada, viúva. Era muito alegre, ia comigo para todo o lado, estávamos sempre em festa. Gostava de se divertir, de passear”, retoma, com a voz trémula e um pedido de desculpas desnecessário.

Aos 39 anos, Elisabete faz um esforço por descrever a mãe, Deolinda, que partiu, sem nunca a deixar, no dia três de março. O primeiro sinal de que algo não estava bem chegou em outubro de 2020. Deolinda começou por apresentar pieira e recorreu à médica de família. Os exames não permitiram identificar a origem dos sintomas.

Dois meses mais tarde, a 2 de dezembro, Deolinda foi assaltada por uma enorme dificuldade em respirar e deu entrada nas urgências do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. Numa altura em que o país atravessava a segunda vaga de Covid-19, a mãe de Elisabete foi direcionada para a ala Covid, de forma a fazer despiste da doença, que também se manifesta por episódios de fortes dores no peito e falta de ar.

A infeção pelo novo coronavírus não se confirmou. A dificuldade em respirar tinha, afinal, origem numa descompensação cardíaca. Deolinda foi então a uma consulta de cardiologia não programada, no Hospital de Santa Cruz, que pertence ao mesmo Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. O médico requisitou um ecocardiograma. Tempo de espera? Cinco meses. Só em maio seria possível realizar o exame. Deolinda regressou a casa.

No mês seguinte, uma nova crise e, de novo, dá entrada nas urgências do Hospital São Francisco Xavier. É identificado o mesmo problema. Aumentam a dose da medicação, que iniciou em dezembro. A situação não melhora e Elisabete leva a mãe, novamente, a uma consulta de cardiologia não programada.

O cenário piorou nas últimas semanas. Alarmado, o médico que a atende não se conforma com a espera de cinco meses e o exame é feito no próprio dia. “Afinal era possível”, atira Elisabete. “O médico veio ter comigo e disse-me que o caso da minha mãe era grave, que ela precisava de ficar internada, mas não tinham vagas. Ela precisava de ser operada para substituir a válvula cardíaca, que não trabalhava”, acrescenta.

Na semana seguinte, Deolinda é submetida a um cateterismo cardíaco, um procedimento médico invasivo, e a espera pela operação segue. À falta de ar acresce, entretanto, a perda de apetite. Ainda em janeiro recebe uma carta com a marcação de uma ressonância magnética, fundamental para a realização da cirurgia. Dois dias antes do exame, chega uma nova carta. A ressonância foi adiada para o dia nove de fevereiro.

Neste ziguezague de avanços e retrocessos, marcações e adiamentos, a ansiedade aumenta. “Lamento imenso que só se fale na Covid-19. As pessoas acabam por morrer por falta de assistência e de acompanhamento. Eu sei que a Covid-19 é grave, mas há outras pessoas que acabam por ficar para trás”, desabafa Elisabete, um mês depois do desfecho trágico, que durante semanas foi vendo aproximar-se.

“O panorama geral é preocupante. Houve uma tentativa real, legislada em despacho ou em decreto, para que os profissionais dos hospitais ou dos centros de saúde se dedicassem prioritariamente à doença Covid-19. E isto tem um impacto brutal, também, naquilo que foram os atrasos [no atendimento]”, defende o bastonário da Ordem dos Médicos.

"Sinto que era evitável e que [a minha mãe] podia ainda estar viva"

Para Miguel Guimarães, o SNS, sobretudo através dos cuidados de saúde primários, teve “a porta parcialmente fechada à entrada de novos doentes”, porque os médicos foram “obrigados pela tutela a fazerem tarefas na área Covid que lhes ocuparam a maior parte do tempo”.

Deolinda conseguiu fazer o exame a 9 de fevereiro, mas a cirurgia não chegou a tempo. Nas três semanas que se seguiram, voltou a dar entrada nas urgências. Com a tensão baixa e os diabetes a disparar, enjoos e fraqueza, os sintomas agravaram-se. De cada vez que ouvia a palavra hospital, chorava. “Sempre que ela ia para as urgências com falta de ar, ia para a ala Covid. Ela tinha medo de ir e apanhar a doença. A minha mãe dizia, «se eu apanhar Covid, eu vou morrer»”, relembra a filha.

Deolinda tinha consulta marcada com o cardiologista a 5 de março. A cirurgia ainda sem data prevista. No primeiro dia do mesmo mês, sem que soubesse, principiou o início do fim. De madrugada, perto da uma da manhã, a filha encontra-a sentada na cama com dificuldade em respirar. O tom de pele começa a mudar e em segundos Deolinda cai inanimada. Elisabete chama o INEM, consegue reanimá-la antes da chegada dos enfermeiros, e a mãe segue para o hospital.

A mulher alegre, “sempre em festa”, natural de Viseu e residente na Ajuda, mãe de dois filhos, despediu-se da vida dois dias mais tarde, a 3 de março. O último relatório clínico dá conta de diversas paragens cardíacas.

Quase um mês depois, Elisabete não sabe ao certo de quem é a culpa desta morte precoce, mas nela persiste o sentimento de frustração, de quem acredita que o sofrimento podia ter sido evitado. “Eu sinceramente não sei se é justo dizer que o caso da minha mãe foi por falta de assistência, mas é isso que eu sinto. Sinto que era evitável e que podia ainda estar viva”, afirma.

De acordo com os dados disponível no portal da transparência, citados pelo Moviemtno Saúdem em Dia, em 2020 foram realizadas menos 126 mil cirurgias, face ao ano anterior. Só em janeiro de 2021, o pior mês da pandemia em número de óbitos, internamentos e novos casos de infeção, foram adiadas cerca de 21 mil cirurgias.


“Não culpo o hospital. Eu culpo a falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde”


Da entrada é possível ver a sala, iluminada em tons de laranja, que refletem a cor das cortinas. Em pé, junto à janela, Luiz procura uma carta, entre dezenas de outras que se acumulam em cima do sofá. “Encontrei. É esta”, anuncia, enquanto se aproxima de um candeeiro do outro lado da divisão e, com mais luz sobre o papel, com carimbo do Hospital Garcia de Orta, começa a lê-la em voz alta.


“Exmo. Sr. Luiz Carlos do Vale,

Por motivos imprevistos, a consulta de Urologia agendada para o dia 17/08/2020 das 17:00 horas foi alterada para o dia 30/11/2020 às 17:15 horas.”


Foi a segunda vez, em três meses, que recebeu uma notificação de adiamento da mesma consulta. Durante quase um ano, entre março de 2020 e fevereiro de 2021, Luiz viu as consultas de especialidade serem consecutivamente adiadas.

O brasileiro, residente em Almada há 20 anos, foi operado a um cancro na próstata a dois de janeiro de 2020. A operação foi feita no Brasil. Farto de esperar em Portugal, pediu ajuda ao irmão que assegurou os custos da cirurgia no país natal. Em fevereiro estava de volta a casa.

Nos meses que se seguiram procurou saber se a doença o deixara de vez ou se tinha ficado para trás alguma réstia que comprometesse a recuperação. Mas sem acesso à consulta de especialidade, sentiu-se “desamparado”.

A 16 de março de 2020 foi suspensa a actividade programada nos hospitais, para que o Serviço Nacional de Saúde conseguisse dar prioridade aos tratamentos à Covid-19. No mês seguinte, 1,4 milhões de consultas e 51 mil cirurgias foram adiadas. No total, no mesmo ano, foram mais de sete milhões as consultas presenciais e 25 milhões os meios complementares de diagnóstico e terapêutica que ficaram por realizar.

“Quando você sabe qual é problema, já pode lidar com ele. Quando eu soube que tinha um cancro na próstata eu fiquei muito triste e chorei, até. Mas não saber o que se passa comigo… Fiquei numa ansiedade danada”, desabafa.

Em resposta à Renascença, o Hospital Garcia de Orta, onde foi seguido Luiz do Vale, adianta que "teve de desmarcar 14.700 consultas, correspondentes a 32 especialidades", entre março de 2020 e 15 de março de 2021, "por motivo de contingência, associada à Pandemia".

No mesmo período foram ainda desmarcadas 325 cirurgias todas elas não oncológicas. Apesar da quebra no atendimento em diversas especialidades, na qual se incluiu urologia, o hospital acrescenta que o número de consultas em hematologia, dermatologia, psiquiatria, endocrinologia, dor, obstetrícia e pediatria aumentou.

Para obter a requisição para os exames de acompanhamento, Luiz teve de recorrer ao médico de família. Por não ser capaz de interpretar os números impressos nos relatórios clínicos, pediu ajuda ao médico que o operou no Brasil, com quem foi trocando mensagens através do WhatsApp. Até junho de 2020, os resultados do PSA, um exame que permite avaliar se o doente pode ser portador de um cancro, fixaram-se nos valores esperados. Um cenário animador.

Em agosto do mesmo ano, Luiz voltou a pedir a requisição do exame ao médico de família, ainda sem possibilidade de recorrer a uma consulta de especialidade. Os resultados que recebeu revelaram-se alarmantes. Incrédulo, pediu nova requisição e repetiu o exame. Os valores coincidiram. De um momento para o outro, Luiz percebeu que o cancro estava de volta.

“Obviamente que os doentes não Covid-19 são tão importantes como os doentes Covid. Um doente oncológico tem doença mais grave que a maior parte dos doentes que têm a doença Covid-19. Em 2020, foram quase 450 mil pessoas que não fizeram o rastreio do cancro da mama, ou do cancro do colo do útero ou colorretal. Muitos diagnósticos precoces ficaram para trás”, adianta Miguel Guimarães.

Assim que teve a confirmação do segundo resultado, ainda em Agosto, tentou marcar uma consulta de urologia. O médico só o recebeu a dois de fevereiro, seis meses mais tarde.

"Há doentes que já não são recuperáveis"

A revolta é visível. Durante meio ano sentiu-se desacompanhado, preso numa casa onde o cheiro a fumo é cada vez mais intenso mas ninguém chega para procurar o fogo e apagar as chamas. A analogia ao incêndio foi a forma mais simples que encontrou para expressar a angústia que sente. Para Luiz, cada dia que passa e o tratamento não avança é mais uma oportunidade perdida para conter os danos deste “novo problema que vive em mim”.

“Depois de ter feito a consulta no dia dois de fevereiro, o hospital demorou 30 dias para me chamar para eu fazer o exame. Há 30 dias que tenho um problema grave. O médico sabe que é grave, mas também não sabe onde é. Eu estou ansioso há muitos dias”, explica.

Na altura, Luiz ainda não sabia, mas o resultado chegou, nas semanas seguintes. Uma reincidência. Trata-se de um novo tumor na próstata. Passaram-se duas semanas desde a primeira entrevista, sete meses desde que soube que o cancro voltara. Com acesso retomado às consultas de especialidade, Luiz aguarda agora pelo agendamento da primeira sessão de radioterapia.

Um ano após o início da pandemia em Portugal, o bastonário da Ordem dos Médicos lamenta que não esteja ainda em curso um “plano excepcional de recuperação da lista de espera”. “Há doentes que já não são recuperáveis. Há doentes que não chegaram a entrar no sistema e nós, simplesmente, nem sequer sabemos quem são. Como é que é possível um plano de recuperação e resiliência não ter nada em matéria de recuperação concretamente de doentes que ficaram para trás?”, questiona.

Miguel Guimarães defende que, “da mesma forma que tivemos de utilizar todo o sistema para dar resposta à pandemia na fase mais crítica, mesmo contra muitas vozes, vamos precisar de todo o sistema também para recuperarmos tudo o que ficou para trás”.

No terraço, onde se entretém a cuidar dos canários que o acompanharam durante todo o confinamento, Luiz evoca receios alheios, sem notar que são seus, também. “Eu sou realista. Eu sei que tudo pode dar uma reviravolta. Estou preparado para isso. Talvez a minha esposa e os meus irmãos tenham mais medo que eu parta do que eu. Quando me deito faço as minhas preces e peço que se tiver de ir vá. Mas claro, se puder ficar mais um tempo, eu gostava”.


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  • Bruno
    29 mar, 2021 aqui 13:07
    Sempre a falar do mesmo... Qual era a solução? Fingir que a pandemia não existia? Os recursos são limitadas e não é possível responder eficazmente à actividade assistencial normal e à pandemia. Os factores externos de grande impacto funcionam assim mesmo. Se Marrocos decidisse invadir Portugal, a actividade do SNS iria ser perturbada para assistir os feridos e guerra; haveria estados de emergência sucessivos que a pessoas seriam mesmo obrigadas a cumprir e não haveria manifestação em Lisboa em defesa da liberdade individual.

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