14 out, 2022 - 16:42 • Maria João Cunha
A proposta de Orçamento para o próximo ano (OE 2023) é boa, mas não apresenta grandes reformas que ajudem a relançar a economia. "Talvez não seja de esperar deste Governo que haja um pensamento maior de fundo em termos do que é preciso para relançar a nossa economia", diz Ricardo Reis, professor na London School of Economics (LSE).
Em entrevista à Renascença, o premiado especialista em macroeconomia e finanças, um dos mais credenciados economistas portugueses, ressalta não só que "seria difícil apoiar mais" do que o proposto neste OE 2023, como "o Governo talvez devesse ter feito menos" e apoiado "ainda menos, porque neste momento é um risco muito grande".
Acredita que uma recessão é certa, mas que não será tão grave como outras. E Portugal "até pode crescer mais do que o previsto, não por causa das políticas do Governo ou pela força da economia, mas porque não depende do gás russo" ao mesmo nível que outros países europeus.
Seria difícil apoiar mais, porque "temos de evitar uma nova crise da dívida nos próximos 12 meses".
E aumentos salariais no privado, são possíveis? A inflação alta implica "dispersão salarial", responde Ricardo Reis, o que significa que uns ganham acima, outros ganham em linha e outros ficam abaixo da inflação. É por isso que as negociações salariais serão muito importantes nesta fase, destaca.
Contas feitas ao ganho no IRS e ao menor aumento salarial, alguns trabalhadores podem descobrir que ficaram na mesma.
Nas vésperas da apresentação do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), há pouco menos de um mês, alertava para a falta de crescimento económico que se verifica em Portugal e para a necessidade de se aproveitar esta conjuntura para implementar reformas. Este Orçamento do Estado desilude-o de algum modo ou responde àquilo que acredita que deve ser o caminho para o país neste momento de grande incerteza?
É um orçamento responsável, no sentido em que continua a apostar na estabilização das contas públicas e na diminuição da dívida pública, o que me parece muito importante, tendo em conta a turbulência que temos visto nas últimas semanas nos mercados de dívida pública e que vai muito provavelmente continuar no próximo ano.
É um orçamento que continua empenhado, como tem sido padrão nos governos encabeçados por António Costa, em tentar evitar uma nova crise da dívida pública, como tivemos em 2011.
E embora estas crises possam sempre acontecer, pelo menos está no caminho certo. Portanto, em primeiro lugar, continua a responsabilidade fiscal, podem chamar-lhe austeridade encapotada, mas seja como for continua a tentar evitar que tenhamos uma nova crise da dívida pública.
Em segundo lugar, é um orçamento que reage de forma até bastante aguerrida, com uma série de inovações fiscais, quer na fiscalidade, quer na energia, quer em investimentos aqui e ali, reagindo à crise energética pela qual estamos a passar neste momento e que vamos passar no próximo ano.
Ou seja, tendo em conta o impacto difícil que terá o enorme aumento nos preços do gás natural na nossa economia, tenta responder de uma forma que é, pelo menos, adequada.
Podemos discutir o quão mais ou menos eficaz é, mas que reage de uma forma inteligente, na linha do que tem sido feito em outros países europeus, reage e, nalgumas formas, até melhor.
Em terceiro lugar, no que respeita a reformas estruturais de fundo que tenham a ver com o crescimento económico a médio e longo prazo, e não só em tentar atenuar o choque da energia nos próximos doze meses.
Aí continua a ser também um orçamento muito na linha do que têm sido os orçamentos apresentados pelos governos encabeçados por António Costa, em que não há nenhuma grande reforma, não há nenhuma grande visão, não há nada onde se estimule o crescimento económico por si.
E isso vê-se também nas previsões: Portugal cresceu talvez um bocadinho acima da Europa, porque afinal está tão abaixo da Europa que se esperaria que crescesse um bocadinho mais, mas não fechando quase nenhuma da distância que nos separa dos outros países, porque não há aqui nenhuma mudança estrutural relevante em si.
Com a Alemanha e outros países europeus a preverem uma recessão, e sabendo nós que Portugal não tem a economia mais resiliente da Zona Euro, é seguro prever uma situação de crescimento no próximo ano e sustentar o OE 2023 nestas previsões? Há no Orçamento de Estado alguma almofada que possa ajudar a garantir isso?
Uma recessão na Europa no próximo ano é quase inevitável, pelo menos nalgumas regiões da Zona Euro e mesmo na sua globalidade. Isto porque o aumento do preço do gás natural é verdadeiramente extraordinário, na ordem dos 600 a 800%, dependendo da medida que utilizarmos.
Quando os preços aumentam tanto, seria muito difícil que não houvesse um abrandamento da atividade económica. Essa recessão é de certa forma inevitável tendo em conta este choque. Já agora, não é uma recessão muito profunda, porque o gás natural, embora pese, não pesa assim tanto na economia.
Tendo em conta que, desde o início deste século, nos últimos 22 anos, as recessões que tivemos foram recessões brutais associadas à crise financeira, Covid e crise das dívidas públicas, esta, causada pelos preços da energia, não será assim tão extraordinária.
Agora, Portugal, estando muito menos dependente do gás natural russo, ou melhor, não estando dependente de todo do gás natural russo, tem um choque bastante menor do que a maioria dos países da Zona Euro e, como tal, a nossa recessão será sempre mais pequena. Podemos mesmo escapar inteiramente, mesmo que a Zona Euro como um todo entre em recessão.
Nesse sentido, é assim que se explica as previsões dos dados oficiais, como por exemplo do FMI ou da Comissão Europeia, que dizem que Portugal vai crescer ligeiramente acima da média da Zona Euro. É porque teve um choque menor. Tem pouco a ver com as políticas do Governo, tem pouco a ver com a resiliência ou força da economia.
Neste orçamento nunca se refere a possibilidade de estagflação que o Ricardo Reis assinalava que podia vir a acontecer. Qual é o fator-chave na estagflação, é o desemprego?
No que diz respeito à estagflação, ou seja, uma combinação de inflação alta e de uma recessão, em primeiro lugar, em 2023, da mesma forma que a tal recessão é quase inevitável por causa do choque dos preços da energia, e porque estamos a chegar ao fim do ano com a inflação muito alta, é muito difícil imaginar que a inflação desça para 2% nos próximos 12 meses, senão mesmo quase impossível.
Logo, no próximo ano teremos sempre uma estagflação no sentido de ter uma recessão e inflação acima do alvo.
No entanto, quando falamos de estagflação, normalmente referimos não a um ano, mas antes a uma persistência do cenário em que a inflação está bem acima do alvo e que a recessão se estende.
Se o Banco Central Europeu (BCE) tiver boas opções políticas nos próximos meses e também alguma sorte, espera-se que consiga trazer a inflação para baixo num espaço de 18 a 24 meses. Sendo assim, a inflação diminuirá e já em 2024 estaremos com a inflação perto do alvo.
E para além disso, este choque energético, mesmo que os preços da energia se mantenham elevados, levará talvez a um pouco menos de atividade económica, mas não a uma contração, como é possível em 2023, e, como tal, seria uma recessão não muito comprida, não muito longa, que não se estenderia a 2024.
Nesse sentido, olhando para 2024, teríamos uma inflação já de volta ao controlo e uma economia já a crescer a um ritmo habitual ou pelo menos não recessivo. E daí não haver uma estagflação no sentido em que ela se estende.
O que é crucial para este cenário? Em primeiro lugar, a capacidade de as empresas e famílias se habituarem, de ajustarem os seus processos de produção e a sua vida a custos de energia mais caros, sobretudo no que respeita ao gás natural. Ou seja, até que ponto, do lado produtivo nos próximos 12 a 18 meses vamos conseguir usar mais petróleo, carvão, renováveis e não gás como forma de energia.
E aqui há com certeza limites, mas também há muita capacidade de criatividade e muito estímulo, porque quem conseguir fazer isto mais depressa, e de forma mais eficiente, vai ter grandes lucros para o recompensar.
E, do lado da inflação, que o Banco Central Europeu tome as políticas certas, que faça o seu trabalho adequadamente e traga para baixo a inflação.
Marcelo Rebelo de Sousa apressou-se a assinalar que este Orçamento tem a marca “otimista” (que sabemos que “irrita” o Presidente) de Costa. Existe um risco em criar um orçamento com base nestas estimativas e nestas expectativas tão positivas?
Há um risco, porque de facto há bastante incerteza, quer em relação à política monetária do BCE, que está exposta a muitas pressões neste momento, quer em relação ao que vai acontecer ao mercado de energia nos próximos meses. Não só relacionado com desenvolvimentos geopolíticos, mas também com a capacidade de flexibilidade dos países em encontrarem diferentes fontes de energia.
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Neste plano, os fatores políticos têm contado muito, sobretudo o rejeitar do nuclear, mas também do lado da indústria energética e a sua capacidade de conseguir substituir o gás por outras fontes, já para não falar da indústria transformadora. Há de facto muita incerteza.
Tendo em conta o grande intervalo de incerteza, as previsões do Governo neste orçamento são ligeiramente otimistas, mas eu não usaria a expressão 'irritantemente otimista'.
Mas com esta grande incerteza, talvez haja uma probabilidade de mais de 50% de a economia ter um desempenho pior do que o Governo prevê, mas também há uma probabilidade bastante grande de que tenha um desempenho melhor.
Ligeiramente otimista, sim, isso vê-se comparando as previsões do Orçamento com as previsões de outros organismos internacionais, que estão ligeiramente abaixo das do Governo, mas não muito. E todos enfatizam haver um grande intervalo de possibilidades neste momento.
Quanto às medidas concretas e utilizando de novo uma expressão de Marcelo Rebelo de Sousa, estas “intervenções sociais seletivas” que assinala que são possíveis, porque trazemos um bom resultado de 2022, são as medidas certas? Afinal, beneficiam mais os cidadãos ou mais as empresas? E fazem o suficiente por ambos?
O Governo faz legitimamente escolhas de beneficiar mais uns e menos outros. No fundo, é isso que é política orçamental.
Este Governo, e sobretudo este e o anterior, caracterizam-se por tentarem proteger bastante os pensionistas ou beneficiá-los, mesmo em relação aos outros grupos. E dentro dos outros grupos, há uma gestão política ou simplesmente ideológica, se quiser, de favorecer mais alguns grupos e um pouco menos outros.
Vê-se isso neste orçamento claramente, que é um orçamento que faz essas escolhas. Se é demasiado? Enfim, até que ponto acha que o Governo deve estar a tirar à Maria João e a dar ao Ricardo ou vice-versa, é uma discussão que poderia ser mais prolongada.
Agora, se deveria apoiar mais? Eu penso que seria difícil fazê-lo tendo em conta aquele ponto importante que é: nós temos de evitar uma nova crise da dívida nos próximos 12 meses.
Há muita instabilidade nos mercados de dívida, que se viu nas últimas duas ou três semanas, no seguimento do que foi o fracasso, o fiasco do orçamento inglês. Está a afetar todos os países, incluindo Portugal, com o aumento de juros da dívida pública e algum receio por parte dos credores em relação a todos os países, não só Inglaterra, mas neste momento Portugal.
Como tal, nesta altura, Portugal não podia dar-se ao luxo de ter um défice público maior do que aquilo que estava projetado.
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Argumentaria que o Governo talvez devesse ter feito menos, ou seja, ter um défice ainda menor e apoiar ainda menos, porque neste momento é um risco muito grande e nós, em Portugal, não nos podemos esquecer do que aconteceu em 2010 e 2011. Neste momento, estamos a passar precisamente por um teste – e vai ser um teste para os próximos 12 meses – e, embora esteja bastante otimista, não falaria agora de dar mais apoio por causa disso.
Em relação às medidas nos escalões de IRS, todos os escalões beneficiam. Mas quem beneficia menos é a classe média. Estas mexidas no IRS fazem sentido? Estão bem feitas?
No fundo, a resposta a essa questão é a mesma da questão anterior. O Governo decidiu privilegiar uns e castigar outros, em termos relativos. Em termos políticos é legítimo fazê-lo. E não o faz de uma forma muito ineficiente ou muito distorcionária e que cause mesmo muito dano à economia, mas antes tira a uns e dá aos outros, legitimamente, apoiado na maioria absoluta que tem e que lhe permite escolher quem privilegiar e quem castigar.
Mas quando as famílias fazem as contas a estas medidas, quer as mexidas no IRS quer nas medidas de apoio para fazer face ao aumento dos preços da energia, estamos sempre a par de pequenos valores. No caso da conta da eletricidade, por exemplo, estamos a falar de pouco mais de 1€ por mês. No caso do segundo filho no IRS, 8€ por mês. E fica-se com a perceção de que possivelmente os apoios não terão impacto suficiente para mitigar estes aumentos que já estão a acontecer e que se estão a prever para mais tarde. É assim?
Quando a economia atravessa um choque recessivo, como é, neste caso, o que acontece por causa do aumento dos preços da energia motivados pelos sururus geopolíticos e pela invasão de Putin à Ucrânia, o rendimento, a riqueza de todos vai cair. A ideia de que o governo ou o Orçamento de Estado pode prevenir isto não é uma ideia correta, é errada.
As pessoas estão a ficar pior não por causa do Governo, não por causa do orçamento, mas porque a economia vai estar um pouco pior no próximo ano. Não exageradamente pior, mas um pouco pior, à conta da invasão do senhor Putin.
O Governo pode aliviar algum desse fardo, mas, tendo em conta o enorme apoio que os governos deram em 2020 e a forma como o fazem, que é pedindo emprestado às gerações futuras, no seguimento do enorme apoio que já tinham dado na crise financeira e noutros... A dívida pública é tão grande, nós já pusemos tanto fardo nas gerações futuras para nos aliviar agora, temporariamente, que é difícil de facto ter um alívio ainda maior, que nessa medida não é nada mais do que deslocar o fardo para nós daqui a uns anos, para os nossos filhos, para os nossos netos.
Logo, as famílias que olham e dizem: “Ah, eu não queria estar a sofrer nada, apesar do que acontece com o senhor Putin”, o que estão a pedir é ao Governo que diga: “Não, vai ser antes quem vier daqui a cinco que vai sofrer, porque vou carregar para eles a dívida para te ajudar a ti hoje”.
Tendo em conta o nível da dívida e toda a dificuldade que nós temos já em refinanciar a nossa dívida, que tivemos aqui há 10 anos, não me parece completamente legítimo estarmos a dizer que a geração atual de 2023 deve ser totalmente poupada, pedindo emprestado ao futuro, do que é esta recessão do senhor Putin. Mas, claro, com certeza sofrerá alguns efeitos motivados pelo ditador de Moscovo.
Estas mexidas seletivas no IRC não são aplicáveis a todas as empresas. Pode haver aqui a possibilidade de não haver sequer ajustes salariais no privado que permitam às famílias não ter uma perda muito significativa?
Sim, uma das principais variáveis à qual vamos ter de prestar muita atenção é o que vai acontecer aos aumentos salariais nos próximos meses para diferentes pessoas. Quando a inflação está muito baixa, e porque normalmente não há grandes cortes salariais, há bastante compressão salarial, no sentido em que todos têm mais ou menos o mesmo aumento sem grandes alterações.
Quando a inflação está muito alta, como acontece hoje, o que tens é que algumas pessoas têm um aumento salarial muito pequeno ou mesmo salários que pouco aumentam; outros têm aumentos ao nível da inflação e outros ainda a um nível muito acima da inflação, levando a uma maior dispersão salarial. O que isso implica é que, quer do lado das empresas, quer do lado dos trabalhadores, nas relações salariais há muito mais espaço para uns ganharem e outros perderem, incluindo tomando em conta aquilo que são as mudanças de política fiscal.
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Portanto, de facto os trabalhadores e as empresas vão ter de prestar muita atenção e vão ter de pôr bastante esforço, mais esforço do que às tantas desejariam, nas relações salariais nos próximos meses.
Esta política orçamental com certeza que vai afetá-las e, de uma certa forma, até, como parte dessas negociações, pode acontecer a muitos trabalhadores que o ganho que têm em poupança de IRS é completamente compensado por terem menos aumento salarial e no fim descobrem que ficaram na mesma.
Isso não pode ter efeitos depois, nas perspetivas económicas, o facto de não haver essa compensação salarial?
Com certeza que tem. A negociação e fixação dos salários tem sempre consequências económicas. Mas é precisamente ao fixar impostos que o Estado está a tentar afetar a economia, incluindo a forma como os salários são negociados, tendo em conta a forma que isso acontece e, por vezes, com essas negociações salariais e ainda amplificando a política orçamental ou fiscal e, por vezes, atenuando os seus efeitos.
Há algumas medidas que não estejam neste Orçamento do Estado que considera que seria importante incluir neste momento?
Continuo a achar que seria muito importante, mas, enfim, talvez não seja de esperar deste Governo, que houvesse algum pensamento maior de fundo em termos do que é preciso para relançar a nossa economia, para as mudanças estruturais, para reagir ou mesmo adaptar-se ao que é um mundo que está em grande mudança e tentar tomar a oportunidade, aproveitar as oportunidades criadas para essas mudanças.
A um nível mais geral, continua a não haver uma reforma de fundo neste orçamento. Há uma reação ao choque e aos desafios do próximo ano, mas não uma reforma de fundo e eu gostaria que aqui houvesse.
Em segundo lugar, a um nível muitíssimo mais pequeno, houve alguma mudança na fiscalidade da cripto-economia, ou criptomoedas, mas, na minha opinião muito modesta. Portugal continua basicamente a ser, nalguns sentidos, um paraíso fiscal para o que são atividades, na sua maior parte, improdutivas ou mesmo ilícitas.
Fernando Medina repetiu por diversas vezes as expressões estabilidade, confiança, compromisso na apresentação deste Orçamento do Estado. Que três expressões seriam mais realistas para classificar este Orçamento de Estado ou concorda com estas utilizadas pelo ministro?
Concordo com elas. Eu acho que falar de confiança no sentido de os credores terem confiança na estabilidade das nossas contas públicas, na fiabilidade delas, de que vamos continuar a conseguir pagar o que devemos e não entrar em crise. Há uma ênfase na estabilidade e no sentido de tentar criar uma almofada e tentar atenuar um pouco dos efeitos do que do aumento do preço de energia. Parecem-me palavras perfeitamente adequadas.