17 nov, 2020 - 07:02 • João Carlos Malta
Os motoristas TVDE e parceiros da Uber acusam a plataforma de estar a fazer “dumping” e a esmagar as margens de lucro com a introdução de um multiplicador que reduz o preço das viagens − o que lhes torna impossível continuar com a atividade de forma rentável. Acusam ainda a multinacional de dar sempre primazia ao carro que tem a tarifa mais baixa, o que aumenta o tempo de espera para os clientes.
Em causa está o multiplicador usado pela plataforma e introduzido no final de outubro, que pode variar entre os 0.7 e os 2.0 de um valor base de 2.5 euros, ou seja, a tarifa pode ser 30% mais barata ou custar o dobro de uma viagem normal. A empresa diz que a inovação permite aos motoristas ajustar a atividade à procura, mas os profissionais TVDE argumentam que a iniciativa lhes está a estrangular o negócio e que estão a trabalhar abaixo do preço de custo.
O conflito já deu lugar a manifestações que juntaram uma enorme quantidade de motoristas TVDE, que circularam em marcha lenta para protestar contra a resolução, que dizem "ser unilateral".
A Uber defende-se e evidencia que os motoristas há muito “reclamam a possibilidade de definir os seus próprios preços e já o fizeram publicamente mais do que uma vez”.
Em causa estão pagamentos de várias semanas em atr(...)
E argumenta que introduziu esta opção “para os motoristas o fazerem com flexibilidade e autonomia”.
“Os motoristas podem escolher aumentar, reduzir ou manter os preços das suas próprias viagens”, afirma fonte oficial à Renascença.
“Todos os motoristas em Lisboa podem utilizar um multiplicador de tarifa, mas nenhum motorista é obrigado a fazê-lo”, defende-se a Uber.
Até hoje, mais de 90% dos motoristas já aplicaram um multiplicador para alterar as suas tarifas, e a grande maioria fá-lo de acordo com os níveis de procura, reduzindo-os quando há menos pedidos e aumentando-os quando há mais pedidos.
Para Ângela Reis, parceria da plataforma e proprietária de uma empresa que emprega agora dois motoristas (já teve quatro), essa capacidade de escolha não é assim tão linear. Se é verdade que não há uma obrigação de reduzir a tarifa, há pelo menos um forte condicionamento.
Segundo esta empresária, se até aqui o algoritmo da Uber selecionava a viatura para o cliente tendo em conta o critério da rapidez, neste momento esse mesmo algoritmo seleciona apenas com base no critério preço, ignorando a distância.
Ângela diz que a Uber está a chamar carros a 5,10 ou 15 quilómetros dentro da Área Metropolitana de Lisboa, ou a mais de 30 ou 40 minutos, apenas porque têm o multiplicador mais baixo (0.7 da tarifa base que é 2,5 euros).
“Temos clientes que estão eternidades à espera de veículos que não são atribuídos, porque não há ninguém nas redondezas a 0.7, mas existem dezenas de carros a 1.0 [2.5 euros], que era a tarifa normal a que todos trabalhávamos”, explica.
A Uber diz que não. Garante que existem muitos fatores para assegurar que “tanto utilizadores como motoristas esperam o mínimo possível por viagens”. Entre estes, enumera, estão a distância, tempo de chegada e também o preço.
“Há uma ponderação entre estes fatores para assegurar que, por um lado, só motoristas que estão nas imediações dos utilizadores recebem pedidos de viagem e que, por outro, nenhum utilizador é prejudicado se um dos motoristas disponíveis nas imediações decide oferecer um preço mais baixo”, afirma a empresa.
Ora, tanto Marcos Pais como Paulo Santos, ambos motoristas da Uber desde 2016, dizem o contrário. Revelam que quem mantém a tarifa no 1.0 correspondente a 2,5 euros, e não 0.7 que valem 1,75 euros, fica sem viagens. Nem que para isso a plataforma tenha de chamar motoristas que estão a dezenas de quilómetros.
Marcos dá o seu exemplo, ele que não baixou da tarifa de 2,5 euros. “Eu não o fiz, e por isso passei uma semana em que faturei um euro por hora, quando nós para termos viabilidade económica precisávamos de faturar 15 euros”.
Notícia Renascença
À Renascença, fonte oficial da plataforma diz que (...)
A Uber rebate, optando por enfatizar a capacidade de escolha para, “em momentos de baixa procura, ajustar o seu preço de forma a fazerem mais viagens e rentabilizar melhor os seus ativos ou aumentar os seus preços para assegurar que todas as viagens que fazem são compensadoras”.
Marcos vai mais longe, e diz que o momento em que a medida é introduzida não é inocente. Acusa a multinacional de se estar a aproveitar da vulnerabilidade dos motoristas.
“Estamos a falar do mês de novembro, que historicamente já é um mês muito fraco para serviço TVDE, ainda para mais num contexto de pandemia, de recolher obrigatório e de confinamentos”, começa por identificar este motorista que, entretanto, se juntou ao Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal.
O profissional TVDE diz que a multinacional sabe bem o contexto em que está, e que os “motoristas estão desesperados por conseguir faturar o mínimo”, e por isso, “vão escolher baixar a tarifa para 0.7 ou 0.8”.
Na prática, indica o motorista, isto significa que uma viagem que antes custava 10 euros ao passageiro passe a custar sete ou oito euros. “Para nós inviabiliza a operação e o trabalho porque é feito abaixo do preço de custo”. Uma "clara violação da lei", porque “as viagens não podem ser feitas abaixo do preço de custo”, mesmo que não esteja definido um valor.
Paulo Santos acrescenta: “Não é possível trabalhar nem com estas condições, nem com estes preços. Já em momentos anteriores era muito difícil. Com estas condições é o caminho para o suicídio completo e em massa”, afiança.
Para este trabalhador, não pode ser o motorista a definir o multiplicador, “nem uma plataforma pode permitir que se possa trabalhar abaixo de um preço mínimo”.
“Isso para mim é 'dumping'. Não é lei do mercado, isto não é nada”, declara.
Na ótica de Paulo, a consequência direta do que está a acontecer é que, com a grande maioria dos motoristas “não tendo alternativa senão começar a baixar o preço”, aqueles que quiserem trabalhar com um preço digno e justo não recebem uma única viagem. A isso soma-se a penalização de, para o cliente, “esse motorista deixar de existir por completo” na aplicação.
Os profissionais do setor denunciam que há motoristas a fazer 80 e 100 horas semanais, o que é ilegal, para poderem sobreviver.
Em relação a estas mudanças e à forma como elas influem nos ganhos e na viabilidade da operação para os parceiros, a Uber sustenta que a estrutura de custos da atividade varia de parceiro para parceiro, consoante a estrutura empresarial e o modelo de prestação do serviço.
Para o determinar, afirma, contam fatores como se é ou não cobrada uma renda fixa pela utilização das viaturas, ou se é paga uma comissão percentual aos motoristas, o modelo do carro, o tipo de combustível, as opções de financiamento, a localidade onde desempenha a atividade, o histórico de condução para efeitos de seguro, entre outros.
E é por estes fatores, argumenta, que é importante “dar mais controlo aos operadores e motoristas sobre o preço do serviço que prestam”. “Os custos não são iguais para todos, tal como os preços não têm de ser iguais para todos”, reivindica fonte oficial da Uber.
Por isso, e porque a Uber não tem como saber esta informação, “pensamos que faz todo o sentido que os parceiros, que são os únicos que a conhecem, possam adaptar-se à sua realidade individual e não a um valor médio que pode não fazer sentido no seu caso particular”.
Diretor-geral da plataforma em Portugal considera (...)
No entanto, esclarecem que a tarifa mínima se mantém nos 2.5 euros. “Sabemos que em algumas viagens os utilizadores pagaram menos do que a tarifa mínima e em todos esses casos a Uber assumiu a diferença, tendo o motorista recebido aquilo que receberia numa viagem normal”, garante a plataforma.
Os motoristas ouvidos pela Renascença desmentem que isso esteja a acontecer. Dizem que se assim fosse teriam de receber no mínimo 1,88 euros, porque aos 2,5 euros a Uber tira a sua percentagem. Enviaram várias imagens com “capturas de ecrã” em que se pode atestar um número considerável de viagens em que receberam abaixo desse valor.
Há ainda várias denúncias de que a Uber está a fazer aceitação automática das viagens, escondendo o multiplicador que está a usar.
A parceira da Uber Ângela Reis diz que as alterações na atividade “estão a estrangular” aqueles que prestam este serviço. Garante que não há por parte dos motoristas controlo de nada, porque é a Uber que decide quase tudo. E acusa a multinacional de coagir os motoristas a aplicar a tarifa mais baixa. A pressão é constante, descreve.
“Se estamos no carro e não mexemos no multiplicador, estamos a 1.0, estamos a levar com mensagens da plataforma. Não é uma ou duas, durante um turno de oito horas. São mensagens que recebemos no telemóvel de cinco em cinco minutos, a dizer acabou de perder uma viagem, desça a sua tarifa.”
Marcos descreve o mesmo: “Somos diariamente bombardeados com mensagens a dizer: ‘Perdeu uma viagem, porque não está a 0.9, baixe a sua tarifa’.”
A plataforma não nega as mensagens, mas enquadra-as de outra forma: “A aplicação partilha informações que têm como objetivo informar em tempo real os motoristas sobre a procura para que se possam ajustar e maximizar os seus rendimentos, partilhando as zonas onde há mais procura de forma transparente."
“Os motoristas são informados, por exemplo, quando um utilizador recusa viajar pelo preço proposto, mas também sobre quais as zonas que têm procura elevada para que possam aproveitar estas oportunidades, se assim o entenderem”, soma.
Ângela identifica a criação da categoria XS pela Bolt, outra operadora do setor, como o início do processo. “É a concorrência desleal e desregrada. São carros muito pequeninos, o Panda, a preços muito mais baratos. E a Uber arranjou o esquema do multiplicador para equiparar os preços”, identifica.
A situação está, segundo a mesma parceira da Uber, a ficar cada vez mais complicada e há quem já esteja a “pedir dinheiro emprestado para meter combustível”.
“Temos parceiros que têm uma reforma baixa e que empataram as suas economias para abrir uma empresa. Quase que pagamos para transportar pessoas”, refere.
O sentimento de insatisfação está a crescer, e há pessoas a entregar e a vender carros. “Eu tive de vender um veículo para me manter à tona. Assim como eu, outros colegas, os que tinham carros a 'leasing' tiveram de os entregar”, exemplifica.
A mesma empresária diz que o que permite à Uber aplicar este tipo de normas é a quantidade de empresas com grandes frotas que põem os trabalhadores a circular com as tarifas mais baixas, o que faz com que os outros estejam “a passar por dificuldades”.
Notícia Renascença
Empresários queixam-se que foram apanhados de surp(...)
Este momento está a pôr ainda em maior evidência um problema que tem crescido neste ramo de atividade: a oferta cresceu de forma desmesurada em relação à procura.
Segundo Ângela Reis, não são só os empresários que se queixam. Os clientes também o começam a fazer, expressando desconforto pelos tempos de espera, e pelas condições do serviço.
No portal da queixa, podem de facto ler-se várias avaliações negativas aos serviços da Uber. Num dos casos, um cliente critica duramente a empresa: “Baixaram o preço para 1.75, mas baixaram também a qualidade. Eu não quero pagar menos, quero é ser bem servido. Comecei a optar pelo Bolt que mantém os mesmos tempos de espera”.
Uma outra passageira escreve que “enquanto cliente da Uber verifico que o serviço de excelência pelo qual a Uber pretendia ser reconhecida, deu lugar a condições contratuais deploráveis, no que diz respeito, a redução de tarifas na ordem dos 30%, esta opcional, mas na prática obrigatória, pois os motoristas só conseguem efetuar viagem caso adiram a estas tarifas”.
“Os motoristas lutam para fazer face às crescentes despesas, menor faturação e falta de clientes devido à situação pandemia, a tempestade perfeita que irá culminar na perda de muitos postos de trabalho”, acrescenta.
No final diz que as empresas “são as pessoas”, e que “colaboradores insatisfeitos prestam serviços de baixa qualidade”.
“Uma empresa que foi do 8 para o 80, do luxo para o low-cost, falta um regulador que impeça estes atropelos à lei”, remata a cliente.