Em Nome da Lei

"Sistema de saúde pode entrar em colapso sem acordo entre médicos e Governo"

04 nov, 2023 - 08:00 • Marina Pimentel

Quatro senadores da saúde debatem o estado a que chegou o Serviço Nacional da Saúde (SNS), o risco que poderá representar não haver acordo com os médicos e o erro de centrar todos os esforços no setor das urgências.

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"Sistema de saúde pode entrar em colapso sem acordo entre médicos e Governo"
"Sistema de saúde pode entrar em colapso sem acordo entre médicos e Governo"

O ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, avisa que, se não houver acordo entre os sindicatos e o Governo, haverá uma debandada do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

“É muito provável. O risco dos médicos, que dizem agora que não vão fazer 150 horas extra, saírem do SNS é muito maior. E se saírem, desaparecem as urgências normais que eles faziam, as 150 horas extra que também faziam. E todo o trabalho que tinham nos hospitais ou nos centros de saúde. Este é o primeiro aspeto que eu queria sublinhar, para ficar claro o que é que o Sr. Ministro da Saúde tem neste momento pela frente. Pode ficar para a história por aspetos positivos ou por aspetos negativos”, afirma Miguel Guimarães, em declarações no programa Em Nome da Lei, da Renascença.

O antigo dirigente sindical e ex-coordenador da reforma da saúde, Mário Jorge Neves, acredita que, nesta questão com os médicos, o Governo joga a sua própria sobrevivência política.

“Ou o Governo tem a sensibilidade humana e social para verificar que em grande medida a sua sobrevivência passa pela resolução deste diferendo ou nós vamos ter instabilidade política, porque o Governo não vai sobreviver, é a minha opinião. A tentativa que o Governo tem feito, até agora, é de agudizar as situações, na esperança de que a opinião pública se vire contra os médicos e os responsabilize pela rotura da situação. Mas as pessoas não vão embarcar nessa aventura. É a minha convicção, daquilo que eu conheço do setor”, defende Mário Jorge Neves.

"Tem de haver um acordo em que os médicos se revejam no essencial. Porque se os médicos não se encontrarem espelhados nesse acordo, os boicotes sucedem-se"

O médico de saúde pública diz que a situação crítica a que chegou o SNS resulta, sobretudo, da intransigência do primeiro-ministro, António Costa, e do ministro das Finanças, Fernando Medina. Mas acusa também os sindicatos de esticarem demasiado a corda.

“O problema é que nós temos uma situação que é crítica. De um lado a intransigência do Governo e, para mim, as culpas maiores estão no Ministério das Finanças e no próprio primeiro-ministro. Depois também do lado negocial médico algumas perspetivas de uma negociação do tudo ou nada. Ou há tudo agora ou não há acordo.”

Essa lógica de tudo ou nada dos sindicatos vai contra uma cultura humanista dos médicos portugueses, de compromisso entre a melhoria possível das suas carreiras e a boa saúde do SNS, diz o antigo dirigente sindical.

Sem acordo, haverá boicotes

Mário Jorge Neves admite o colapso de todo o sistema de saúde, inclusive o privado, se o Governo não chegar a acordo com os médicos.

“Tem de haver um acordo em que os médicos se revejam no essencial. Porque se os médicos não se encontrarem espelhados nesse acordo, os boicotes sucedem-se. Não são precisos pré-avisos de greve. Os boicotes práticos sucedem-se. E todo o Serviço Nacional de Saúde e, por arrasto, todo o sistema de saúde entra em colapso.”

Já o médico e professor universitário Fernando Regateiro, que em tempos foi autarca eleito pelo PS, diz que o Governo só pode queixar-se de si próprio, porque foi avisado por todos, mas nada fez para evitar a situação que estamos a viver.

”Todos avisaram em tempo útil. Mas os avisos caíram em saco roto. O tempo esgotou-se. E agora é o próprio diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde que vem dizer que novembro será catastrófico. Bom, mas ele também já está em funções há um ano!” Mas sem estatutos aprovados? ”Mas sem queixas por isso”, refere Fernando Regateiro.

A falta de acordo com os médicos é apenas uma parte dos problemas do SNS. Miguel Guimarães critica o Governo “por continuar a pôr a tónica da questão nas urgências”, culpabilizando os portugueses por recorrerem aqueles serviços em situações que não são de urgência. ”Os portugueses só o fazem porque não têm alternativa”, diz o ex-bastonário.

Na mesma linha, também o médico anatomopatologista Franklim Ramos, que preside à Unidade de Saúde Local do Alto Minho, diz que para resolver o problema das urgências é preciso atacar as causas pelas quais os portugueses continuam a recorrer aos serviços de urgência.

”Investindo no serviço de urgência cada vez mais, nós não resolvemos o problema, nós estamos a manter o problema. Nós temos de resolver a montante muitos dos problemas”, diz Franklim Ramos.

“Arranjar forma de os doentes poderem ter os atendimentos que precisam, dentro das suas expectativas. Ter médico de família, haver consultas abertas, quer nas áreas dos cuidados de saúde primários quer nas áreas hospitalares, haver um seguimento adequado das doenças crónicas, colocar os enfermeiros também na gestão da doença crónica com supervisão médica. Temos muita coisa para fazer. Porque estamos muito aquém daquilo que devíamos fazer”, sublinha.

"Os portugueses só recorrem às urgências porque não têm alternativa"

Fernando Regateiro, que foi presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e coordenador nacional para a Reforma Hospitalar (2016-2019), diz que os centros de saúde perderam capacidade de resolver problemas básicos.

“Os centros de saúde perderem resolutividade. Em muitos sítios não fazem uma pequena cirurgia. Não hidratam e não tratam uma cólica, com observação durante umas horas. Não acompanha situações que resolvidas ali não chegavam ao hospital.”

Nem têm meios básicos de diagnóstico? “Alguns têm e outros não têm. Mas é tão fácil ter um raio x simples. Ou no próprio centro de saúde. Ou num contrato com um prestador. É tão fácil ter hoje um eletrocardiograma”, responde Regateiro.

Continuando na análise dos erros de gestão, o médico de saúde pública Mário Jorge Neves sublinha que, embora a saúde seja um dos setores com maior incorporação tecnológica, mantém métodos de organização com mais de 60 anos.

“A saúde é o setor da nossa vida onde se processa maior incorporação tecnológica. E uma incorporação tecnológica que é contínua. Mas os métodos de organização dos serviços de saúde, a começar pelos hospitais, que são as unidades mais complexas, mantêm-se intactos na sua forma de organização desde há mais de 60 anos. Ainda são anteriores ao 25 de Abril. Vêm da última lei de gestão hospitalar, que é mesmo anterior ao regime democrático, foi promulgada em 1968”, indica Mário Jorge Neves.

Meio milhão consome a maioria dos recursos

Franklim Ramos, que lidera a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, modelo que o Governo quer generalizar a todo o país a partir de janeiro, sublinha a necessidade de haver uma melhor integração dos serviços.

"Os métodos de organização dos serviços de saúde, a começar pelos hospitais, mantêm-se intactos desde há mais de 60 anos. Ainda são anteriores ao 25 de Abril"

“Não haverá nunca uma integração adequada se não tivermos uma plataforma de registo de dados clínicos para os nossos doentes. E, portanto, esta plataforma deveria começar pelo SNS, alargar-se às IPSS e ao setor privado também. Portugal teria assim uma base de dados única dos seus cidadãos em matéria de saúde. Este é o primeiro passo para haver uma verdadeira integração.”

Conhecer bem a população para quem se trabalha é também fundamental para dar eficácia ao SNS, afirma Franklim Ramos.

No Alto Minho foi feito um estudo que concluiu que apenas 5% da população, grande maioria doentes crónicos, consome a maior parte dos recursos. Extrapolando para a totalidade do país, isso significaria que meio milhão de portugueses gastariam a maioria dos recursos do SNS.

”No Alto Minho, 12 mil doentes consomem grande parte dos recursos que nós temos, quer do ponto de vista financeiro, quer de recursos humanos. Vejam a importância disto.”

E qual é o perfil desses doentes? “A maior parte são doentes crónicos. O que é que isto significa? Que nesta situação, se eu transportasse isto para o conjunto da população do país, se calhar estamos a falar em meio milhão de habitantes. Meio milhão de habitantes consome a maioria dos recursos do país. Portanto vocês vejam, é de uma importância enorme nós conhecermos a população. Porque depois cabe a estas estruturas hospitalares, no âmbito regional, ter políticas dirigidas para estes doentes”, conclui Franklim Ramos, no programa Em Nome da Lei, da Renascença.

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