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Constitucional tem de pronunciar-se sobre prazo de 10 anos para poder intentar uma ação de reconhecimento de paternidade

Em Nome da Lei

Reconhecimento da paternidade deixará de ter prazos, acreditam especialistas

09 dez, 2023 • Marina Pimentel


No programa Em Nome da Lei, três juristas especializados em direito da família debatem o prazo de 10 anos para poder intentar uma ação de reconhecimento de paternidade. Concordam que é preciso encontrar um equilíbrio, mas que terá que ser o Tribunal Constitucional a pronunciar-se, devido a decisões contraditórias entre tribunais.

A recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça de considerar que um filho de pai incógnito tem o direito a requerer em qualquer momento o reconhecimento da paternidade pode abrir caminho à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do Código Civil que impõe prazos legais. É o que pensa o professor da Faculdade de Direito de Coimbra, Rafael Vale Reis.

"Tem de haver três decisões de desaplicação da norma por inconstitucionalidade em três casos concretos. Nós estamos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. Ou seja, a decisão só se aplica aquele caso, aquelas pessoas em concreto. Mas havendo três decisões no mesmo sentido, o Tribunal Constitucional tem de reapreciar a questão, para eventualmente declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral", disse Rafael Vale Reis.

O Ministério Público terá agora de recorrer para o Constitucional da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que considerou “as normas que estipulam prazos de caducidade para as ações de investigação de paternidade uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação”

Em causa está o artigo do Código Civil que impõe o prazo máximo de 10 anos, depois do filho de pai incógnito ter atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, para poder intentar uma ação de reconhecimento de paternidade. A norma permite que a ação seja colocada posteriormente, mas apenas no prazo de três anos a contar da data em que o filho de pai incógnito teve conhecimento de que aquele homem era o seu pretenso pai. A partir daí, o direito está prescrito.

"Direitos pessoais não prescrevem"

O advogado e professor Rafael Vale Reis diz que a norma é no mínimo “exótica” face aos ordenamentos jurídicos de outros países com quem comparamos. E acredita por isso que que a abolição de prazos para se exercer o direito a intentar uma ação de reconhecimento da paternidade “não é uma questão de se, mas de quando”.

Também o advogado especializado em Direito da Família Rui Alves Pereira entende que “os direitos pessoais não prescrevem”. E sublinha que na maior parte dos países europeus não há limites de tempo para um filho demandar um pai para o reconhecimento da paternidade. "Grande parte dos países da Europa não têm esses prazos de caducidade. Falo da Itália, da Holanda, da Espanha, da Alemanha. Outros países que não fazem parte da Europa como Cabo Verde, Angola e Brasil, também não têm".

"Curiosamente, no caso francês, a lei prevê um prazo objetivo, um prazo de 10 anos após a maioridade e, no caso suíço, de apenas um ano. No caso português adotamos uma solução um bocadinho subjetiva porque temos o prazo dos 10 anos após a maioridade mas também os três anos após o conhecimento da pretensa paternidade”, declara Rui Alves Pereira.

Defensor da eliminação dos prazos, Rui Alves Pereira sugere para reflexão o exemplo de Macau, onde a legislação prevê que possa haver consequências patrimoniais, em matéria de direitos sucessórios, para o filho que intente tardiamente a ação de reconhecimento da paternidade.

Também Rafael Vale Reis fala na necessidade de ser encontrado um equilíbrio, para evitar que direitos legítimos possam ser exercidos abusivamente.

”O que é que a nós, professores, advogados, o que é que a experiência nos demonstra? Que há sempre alguns casos em que se utiliza a possibilidade de propor ou não uma ação para fazer uma certa chantagem relativamente à família do pretenso pai. Que pode até já não estar cá e portanto não sente essas dores. E muitas vezes não está. Mas quem sente essas dores são os pretensos irmãos. E essas situações de abusos de direito são tecnicamente difíceis de provar", aponta o advogado.

Pessoas não processam "para não desagradar"

Uma ideia que merece as maiores dúvidas à professora da Universidade Católica Ana Filipa Morais Antunes. Defende que é preciso ter em linha de conta que “aquele que não soube quem era o seu pai biológico durante um longo período, muitas vezes não intenta a ação por razões familiares, para não desagradar ou não defrontar a mãe, a família”.

Por outro lado, diz, “sendo o filho reconhecido como tal, independentemente de ter nascido na constância do casamento ou fora, tem exatamente o mesmo estatuto dos demais irmãos e entre eles o de ser herdeiro legitimário, no caso da morte do pai, ou herdeiro sucessível, estando em vida. Eu tenho alguma dificuldade em conseguir aceitar essa ablação da dimensão patrimonial.”

Os três juristas especializados em direito da família consideram que o facto de haver decisões contraditórias de vários tribunais, e mesmo de diferentes juízes no mesmo tribunal, sobre a mesma questão, é geradora de incerteza jurídica. E acreditam por isso que por força de uma declaração de inconstitucionalidade com carácter geral do Tribunal Constitucional ou por opção do legislador, Portugal deixará de impor prazos a quem quer ver reconhecida a sua paternidade. Cerca de duas mil ações de investigação e reconhecimento da paternidade chegam por ano aos tribunais portugueses.

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