"Shōgun". A série de grande escala em que portugueses são peça-chave (mas falam todos em inglês)

22 mar, 2024 - 13:40 • João Malheiro

A produção da Disney retrata o começo de um dos períodos históricos mais relevantes na História do Japão, em que Portugal teve um papel essencial.

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É uma produção norte-americana, a recriar cenário histórico japonês com jogos de bastidores em que os portugueses são uma peça-chave. "Shōgun" é uma grande produção da FX que adapta um romance histórico com o mesmo nome de 1975 sobre o começo do Xonugato Tokugawa e o fim da influência portuguesa em territórios nipónicos.

O elenco tem uma presença japonesa muito forte, com destaque para o protagonista e veterano Hiroyuki Sanada, estrela de Cinema quer Oriental quer Ocidental. O elenco de pendor internacional inclui, ainda o luso-canadiano Louis Ferreira e Joaquim de Almeida.

As personagens japonesas falam todas na sua língua nativa e as barreiras linguísticas e culturais são um elemento fulcral da narrativa. No entanto, a língua portuguesa é retratada... através do inglês.

A Renascença já viu a primeira metade da série, disponível na Disney+, e conta tudo que precisas de saber.

A realidade da ficção

O livro original de James Clavell é a ficcionalização de eventos históricos que aconteceram verdadeiramente. Para ter alguma liberdade criativa, o autor criou personagens com nomes fictícios e dramatizou certos aspetos. Mas a narrativa de "Shōgun" é inspirada em factos reais do início do período Edo - uma era que se prolongou por mais de três séculos e serve, ainda hoje, de inspiração para muitos trabalhos artísticos.

No final do século XVI, Portugal mantinha um monopólio de comércio entre o Japão e a Europa e a fé católica propagava-se através de padres jesuítas. Os japoneses convertidos mais crentes até aprendiam a falar em português e as duas línguas hoje refletem esta dinâmica cultural.

É neste contexto que Tokugawa Ieyasu consolida o poder e ascende como líder supremo no Japão, restaurando o Xogunato - um regime de ditadura militar em que o líder, Xógum, detém o poder real sobre o Japão e o seu exército, com a benção do Imperador, que serve apenas de figura religiosa.

Tal como o livro e a série retratam, um "anjin" - palavra japonesa para piloto - inglês deu à costa do Japão, com uma tripulação à beira da morte e depois de muitos naufrágios, em 1600. Foi a primeira vez que um inglês chegou ao Japão.

Ao contrário do que é ficcionalizado, não há provas de que o Japão não conhecia a existência de outros países, como Inglaterra ou Países Baixos, nem de que a rota marítima da Europa para o Japão fosse um segredo português. De facto, Portugal controlava aquela região marítima, contudo isso não implica que outros países não soubessem como a alcançar, apenas não o tinham feito até então.

Tudo mudou com a chegada de William Adams, que se tornou próximo do Xógum Tokugawa e acabou por o convencer a explorar relações comerciais com Inglaterra e Holanda. Ao longo do tempo, o inglês protestante sobreviveu a jogos políticos, tornando-se tradutor oficial e acabando com a influência católica no Japão. Em 1614, o Xogunato baniu mesmo o Catolicismo e perseguiu todos os japoneses crentes que não se reconvertessem.

Um retrato fidedigno do Japão feudal

Até chegarmos à estreia de "Shōgun" passaram seis anos. O anúncio original da FX foi feito em agosto de 2018, contudo, em março do ano seguinte, a produtora não estava satisfeita com o desenvolvimento e decidiu abrandar a criação da série.

O argumentista principal foi substituído por Justin Marks, em 2020 - guionista que foi nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Adaptado, pelo trabalho em "Top Gun: Maverick". Em conjunto com a sua mulher Rachel Kondo, de descendência japonesa, Marks desenvolveu um enredo focado em retratar de forma fiel o Japão Feudal do início do século XVII.

É uma história semelhante à criação de "Blue Eye Samurai", uma série de animação da Netflix, que se passa, igualmente, no período Edo e foi co-criada por Michael Green e a mulher com nacionalidade japonesa Amber Noizumi.

Apesar de ter sido filmado entre Canadá e a República da Irlanda, os argumentos foram traduzidos do inglês para o japonês, através da ajuda do dramaturgo Kyoko Moriwaki, e foram contratados atores e figurantes nipónicos para recriar da forma mais precisa as personagens da narrativa. Os figurantes foram pagos 50 mil ienes por dia (cerca de 305 euros), quase dez vezes mais do que o normal dentro da indústria japonesa.

O objetivo foi não ter medo de criar uma série que usasse mais do que uma língua e contivesse legendas durante vários minutos - um problema que aos portugueses não diz muito, porém no consumidor norte-americano, habituado a dobragens, é pouco habitual. "Shōgun" é apenas o exemplo mais recente de uma mudança de paradigma, despoletada em pleno pela vitória de "Parasita" nos Óscares de 2020, onde há uma maior disponibilidade para assistir a produções que retratem realidades internacionais, sem sacrifício de precisão cultural e racial em nome de facilitar o consumo.

A língua portuguesa que é falada em inglês

Se, de facto, a principal prioridade de uma série passada no Japão feudal será recriar a realidade desse tempo, infelizmente parte significativa ficou de fora. Os portugueses são peça fundamental do enredo, conspirando para não perder o poder, à medida que o futuro líder do Japão fica mais próximo do piloto inglês.

O retrato da fusão da cultura japonesa com a portuguesa católica é um dos aspetos mais curiosos e fascinantes de "Shōgun" e um dos principais focos é a barreira linguística. O protagonista inglês só consegue comunicar com as personagens nipónicas, porque é fluente em português que depois é traduzido para japonês.

Se este duelo entre três línguas podia ser interessante, a verdade é que a série opta por simplificar e quando alguém fala português, o que nós ouvimos é o inglês. Por muito que haja um Padre Martin Alvito (que na verdade é interpretado por um britânico) e que o próprio Joaquim de Almeida tenha uma participação como o Padre Domingo, todos os diálogos que, na própria série, dizem ser em português, são falados em língua anglo-saxónica.

Mesmo assim, "Shōgun" tem um bom enredo, contando com excelentes personagens e muita intriga política. A escala da caracterização de cenários e roupas e a direção artística da série está ao nível de "Guerra dos Tronos". É uma boa série que tem sido aclamada pela crítica internacional e das mais vistas deste primeiro trimestre de 2024.

Se é verdade que a nova série da FX permite-nos acompanhar um dos momentos mais decisivos na História do Japão e perceber o papel essencial que Portugal e o Catolicismo tiveram nesse desfecho, fica sempre a sensação que entre japonenes e ingleses, os portugueses são o parente pobre.

Os primeiros cinco episódios de "Shōgun" estão disponíveis na Disney+. Haverá mais cinco até ao final, a estrear a cada terça-feira.

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