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Crónica

Pandemia de 1956. "Aos meus porquês, a resposta era sempre a mesma: a pólio"

28 mar, 2020 - 19:16 • Cristina Norton*

Na primeira metade do século XX, surtos de poliomielite em várias zonas do mundo evoluíram para proporções de pandemia. A OMS estima que haja no mundo 10 a 20 milhões de sobreviventes de pólio. A escritora Cristina Norton recorda a sua experiência pessoal durante a pandemia.

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No ano 1956, algo terrível que não tinha nem cor nem forma, veio desestabilizar a minha infância. Tinha apenas 8 anos e sentia que me iam cortando pedaços de liberdade, como se os que me rodeavam me arrancassem uma a uma, e por vezes de três em três, as poucas penas das minhas asas.

Aos meus porquês, a resposta era sempre a mesma: a pólio. Aquela palavra não queria dizer nada, nunca a tinha ouvido, e pior, sussurravam-na, como se tivessem terror de “ela” a ouvir e acorrer ao chamado.

Em casa dos meus pais falava-se de tudo, não havia nada que ficasse por explicar e a curiosidade era considerada uma virtude e não um defeito.

Por isso o que o meu pediatra chamava poliomielite, continuou a ser uma incógnita para mim, até o dia em que a minha irmã entrou em casa quase gritando:

- Sabem quem apanhou a pólio? A filha da vizinha!

E foi assim, que soube como era aquela doença terrível. Quando não matava deixava as crianças com braços e pernas encolhidas, e era por isso que passavam camiões pelas ruas regando-as com creolina. Sendo a única criança, era obrigada a comer tudo fervido e o que usava era desinfectado.

Nas notícias de novos casos, via o temor nos olhos dos meus pais, e os ouvi dizer que o escapulário com cânfora e a imagem da Nossa Senhora que me penduraram ao pescoço não me podia proteger. Como também não era vida para uma menina da minha idade, ficar fechada num apartamento lendo ou brincando sozinha, a única solução era eu ausentar-me de Buenos Aires até o surto passar. Porque o vírus podia entrar pelas janelas, chegar na roupa dos que iam à rua, vir dentro de uma carta. E não havia cura.


* Cristina Norton nasceu em Buenos Aires, na Argentina e vive há mais de 30 em Portugal, tendo optado pela nacionalidade portuguesa.

Além de romance, é autora de contos e poesia. Entre os seus títulos estão livros como "O Afinador de Pianos", "O Lázaro do Porto" ou "Barco de Chocolate" - Prémio Adolfo Simões Müller

Trabalha desde 1998 em oficinas de escrita criativa em cursos organizados pela Fundação Gulbenkian e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas

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