Brasil

“Defender o Estado brasileiro não é defender um partido político”, diz Isabella Teixeira

03 jan, 2020 - 15:48 • José Pedro Frazão

A ex-ministra do Ambiente do Brasil deposita esperanças na renovação da classe política brasileira e mostra surpresa com a dimensão da corrupção denunciada nos últimos anos. A ex-ministra de Lula da Silva e Dilma, hoje consultora internacional na área da sustentabilidade, diz ter deixado uma estrutura pública altamente eficiente na área ambiental que teme ser alvo de esvaziamento no Governo atual.

A+ / A-

Foi a cara da política climática brasileira durante a primeira metade da última década, defendendo a posição do Brasil na Conferência de Paris em 2015, de onde saiu o Acordo que as lideranças políticas não conseguem ainda implementar na totalidade.

Isabella Teixeira, ex-ministra do Ambiente de Lula da Silva e Dilma Rousseff, passou pela COP25 em Madrid como consultora na área ambiental e em entrevista à Renascença apela ao desenho de uma nova estratégia ambiental para o país, pede mais inovação na política e sugere que Bolsonaro foi apenas alguém que veio ocupar um lugar deixado vago pelo envelhecimento do “modelo vigente na democracia pós-Nova República”.

Marina Silva defendeu na COP25 que depois do Petrolão é preciso fazer um Florestão. O que pensa disso?

Foi uma boa frase. Ela reporta-se à questão do desmatamento da Amazónia. Ela começou a enfrentar isso durante a sua gestão, depois de um primeiro ciclo em 1988/89 que se foi sucedendo e chegou até à minha gestão. As pessoas que lidam com o desmatamento da Amazónia sabem que é predominantemente ilegal e figura como crime ambiental na lei brasileira. Muitas investigações sugerem a presença do crime organizado no financiamento. Marina diz que se nós enfrentamos a corrupção com o Petrolão temos que enfrentar o crime organizado com um Florestão. Ela denuncia que o crime continua lá, com a morte de lideranças ambientalistas indígenas.

Alguns parlamentares mostraram na COP25 que existe uma ameaça às populações tradicionais e aos indígenas. A postura do atual Governo é a de gerar conflitos, por exemplo através da ação da FUNAI [Fundação do Índio, pertencente ao Estado] em relação às populações tradicionais e em declarações políticas que que podem ser entendidas como estímulos à violência no campo. Há um número impressionante de mortos no Brasil e isso está a crescer na área rural.

Marina sugere que o Governo, ao não lidar com isso, estará na direção de um Florestão onde a corrupção existe, o crime organizado atua, onde o crime ambiental é praticado, onde os direitos humanos estão a ser violados, onde a democracia e a liberdade dos movimentos sociais estão a ser colocados em xeque. Essa declaração vai na direção de se assegurar os nossos direitos democráticos como sociedade e daqueles que lutam pela defesa da vida e dos seus direitos constitucionais como o da terra para as populações tradicionais.

Tudo isso mudou num ano? Bastou a chegada a Brasília de um novo Presidente?

Muitas pessoas perguntam-me isso. A democracia brasileira acolhe as posições do Presidente porque ele foi eleito. Ele não foi eleito pela maioria dos votos da sociedade brasileira, mas pela maioria dos votos válidos. Se somar os votos do segundo classificado e os que não foram votar, é maior que os votos recebidos por ele. Quem votou nele recebeu teses que ele apresentava.

Acho que há coisas que estão a ser agora colocadas que não estavam nada claras durante a campanha. É o caso do Ambiente que não foi um assunto tratado na campanha, que foi muito direcionada para o combate à corrupção e a segurança no país. Foi uma campanha fortemente influenciada por questões religiosas pela linha dos evangélicos com valores muito conservadores. Eu não sei se isso mudou num ano. Na verdade isso entrou na agenda de uma forma que antes não estava.

Mesmo que o Presidente fale e determine coisas, não quer dizer que o Congresso as acolha. Isso é importante, significa que a democracia está funcionando. Mesmo que ele decrete medidas provisórias, o Ministério Público está a atuar. O que aconteceu com Saúde & Alegria [ONG na Amazónia alvo de buscas, apreensão de documentos e detenções de bombeiros voluntários acusados de atear fogos de forma deliberada] atingiu o limite da democracia brasileira e imediatamente foi rechaçado pelo Ministério Público Federal.

Existem contrapesos na democracia brasileira?

Existem forças da democracia no Brasil como a imprensa. A tentativa de proibição de inclusão da Folha de São Paulo na licitação para ser distribuído pelos órgãos públicos federais sugerindo uma perseguição desse jornal caiu e ele teve de revogar a medida. Isso significa que não só a sociedade está a mobilizar-se como também as instituições estão a funcionar como o Congresso, o poder judiciário ou a imprensa.

O que me surpreende é que isto parece algo sem limites. Todos os dias há quatro, cinco ou seis notícias que deixam todo o mundo estarrecido. Há um ministro da ciência e tecnologia que diz que a Terra é redonda e há pessoas no Governo que dizem que a Terra é plana. Existe um ministro do Ambiente a dizer que acredita na mudança do clima e outros ministros do Governo dizem que a mudança do clima é uma falácia. Essas contradições colocam o Brasil numa situação que ninguém consegue entender.

Bolsonaro foi também eleito devido a contradições na política do poder.

Há também uma questão importante que temos que aprender com a nossa democracia. O modelo vigente na democracia pós-Nova República envelheceu. A sociedade brasileira disse que não queria mais esse modelo calcado em partidos políticos capturados pela denuncia do combate à corrupção em lideres e estruturas políticas. Como nada de novo foi colocado no lugar, apareceu na transição esse "novo" e era ele.

Esteve dentro da estrutura do poder. Como viu isso como ministra?

Em primeiro lugar, fiquei muito surpreendida porque isso não passa absolutamente pela área ambiental. Nunca convivi com nada disso, nem como brasileira. Em segundo lugar, foi uma surpresa pela dimensão das coisas. E em terceiro lugar foi uma surpresa positiva, pela capacidade das instituições brasileiras reagirem a isso. O mais interessante é que parte do aparato legal para esse enfrentamento do combate à corrupção foi feito pelos governos que estavam acusados de corrupção.

Surpreendi-me como brasileira, mas havendo democracia o mais importante é que o Brasil lutou com isso. O que me incomoda é o uso político. Pessoas que agiram supostamente de maneira isenta hoje estão em linhas politico-partidárias. Isso para mim não é sadio. Não se pode fazer uso polÍtico do que se está defender que é o Estado. Defender o Estado brasileiro não é defender um partido político. Isso é para mim um sinal de imaturidade e de necessidade de evolução das chamadas instituições políticas no Brasil. A mesma coisa sucede com o empresariado, porque não houve só pessoas do poder público. O setor privado esteve fortemente engajado.

Diz que isto foi uma surpresa. Esteve em Brasília como ministra e existem sempre interesses que pretendem pressionar o poder público a tomar determinadas decisões. Não existiu sempre pressão na área do Ambiente ?

Uma coisa é estar num governo democrático em que os interesses aparecem de diferentes formas, inclusive de pressão. Algumas coisas foram negadas por não terem viabilidade ambiental. Nunca recebi nenhuma instrução do Governo para não assumir as minhas funções. Pelo contrário, eu fui a ministra que mais combateu o crime ambiental na Amazónia. Tive total autonomia dos Presidentes para o combater. Tive que demitir gente por corrupção na área ambiental. Mandei prender desmatadores trabalhando com a Polícia Federal, com o Judiciário, com o Ministério Público Federal. A pressão é normal.

Se mandou prender é porque já existia essa corrupção.

Claro. Existe corrupção. Agora, o que apareceu no Brasil foi uma dimensão na corrupção que toda a gente se assustou. Se tenho crime na Amazónia de desmatamento ilegal, tenho corrupção. Acha que não tenho funcionários que libertam o desmatador ilegal? Eu prendi, o sistema prendeu essas pessoas. Estamos a falar de um sistema que ia lá, com Policia Federal, com IBAMA, dentro do sistema brasileiro de Inteligência, com a Interpol no exterior. A rede de tráfico de animais internacional é absurda. Acha que não tem gente corrupta nisso? Prendemos as pessoas. Outra coisa é deparar-se com corrupção que envolveu essa dimensão. Dentro da democracia é legítimo que um individuo ou um empresário vá lá...

... e tente convencer a ministra?

Não, para a convencer a ministra não. Ele vai fazer um requerimento. Nunca ninguém me abordou. Tenho 35 anos de funcionária pública no Governo Federal, sou funcionária do Estado e nunca fui filiada em nenhum partido político. Nunca ninguém me abordou para fazer qualquer oferta em que eu dissesse "saia daqui". Sabiam que não chega e eu atendia todo o mundo. Sabiam que não me podiam fazer essa proposta. Porque todo o modelo de gestão era completamente transparente. Se quer uma licença, entra no IBAMA e faz o pedido. Os órgãos técnicos tinham total autonomia para dar o seu parecer, rejeitando ou aprovando. Nunca me reuni com técnicos com IBAMA para dizer para não se fazer. A minha função não era essa.

Essa "doença" nunca chegou aos institutos que hoje estão muito pressionados por esta situação?

Nós reorganizámos todos os institutos. Fizemos concursos, demos uma carreira e melhorámos a carreira dos funcionários, com instrumentos, metodologia, qualificação e eles tinham autonomia. Quantas vezes não saiam licenças ambientais para o petróleo e eu nunca disse para ter. Nunca fui questionada por tomar essas decisões porque eu estava a defender os interesses da lei brasileira.

E a qualidade da máquina administrativa ambiental brasileira?

Melhorou. Na minha gestão, comecei o sétimo ano [da Presidência Lula] como ministra e estive antes dois anos como vice-ministra. Ganhámos o grau máximo de eficiência e gestão pública pelos órgãos do sistema de controlo do Governo Federal, como Controladoria Geral da União,Tribunal de Contas da União, Ministério do Planeamento. Conferiram ao Ministério do Ambiente a excelência em gestão pública. Quando se diz que não há gestão, é errado. Nós preenchemos todos os requisitos que a lei brasileira determina sobre gestão pública. Isso foi dado durante o Governo da Presidente Dilma.

A máquina funcionava, eu trabalhava obviamente para discutir políticas como no clima, para ter ambição no Brasil. Acha que não existia gente que dizia que não era preciso fazer nada? Fizemos a mais ambiciosa politica climática, construindo. Acha que a disputa do Código Florestal foi a mais normal? Não foi, tinha interesses por todo o lado. No entanto, saiu um documento que procurou equilibrar todas as partes.

Como é que essa máquina vive hoje neste clima?

Pelo que me dizem, porque já não vivo em Brasília, houve uma redefinição das competências e um esvaziamento das competências na área ambiental nessa revisão institucional. Mais de 40 a 50% dos cargos do Ministério estão vazios, não foram nomeados responsáveis. A equipa técnica não tem agenda.

Que delegação esteve então na COP25?

O ministro e não tenho ideia de quem esteve.

Diplomatas que já trabalham na área?

O negociador-chefe do Brasil para a diplomacia no Clima era um Embaixador. Hoje é um Primeiro Secretário. Como Embaixador você fala com Embaixadores. Com um Primeiro Secretário, perde a capacidade de interlocução com um Ministro de Estado.

Se tudo mudasse amanhã e fosse possível chegar a uma ordem diferente do ponto de vista político, qual seria a prioridade de um Ministro do Ambiente?

A prioridade seria pensar um novo agendamento ambiental do país. O mundo mudou. O Brasil tem um sistema ambiental desde 1981 e o mundo está mudando muito. Teria que se redesenhar competências, modelos de gestão. Não adianta querer viver do passado. Temos que contar as novas histórias do futuro. O Brasil tem uma responsabilidade enorme do ponto de vista do sistema do meio ambiente. A própria descentralização com este esforço sub-nacional implica saber quais os modelos de governança para você lidar com isso, de forma a que estejam mais alinhados com os interesses internacionais do Brasil. Não adianta discutir a Amazónia só pela razão da floresta se não discutir a conexão digital da Amazónia, que tem mais de 50% do território desligado do mundo. Se quer fazer gestão de áreas estratégicas do Ambiente tem que usar activos da chamada economia digital e ter satélites, não apenas fiscalizando desmatamento mas viabilizando a conexão e a comunicação com o Mundo. Isso é um desafio.

A Amazónia tem uma importância continental, global. E o argumento daqueles que dizem que antes de mais a Amazónia é apenas do Brasil?

75% do bioma amazónico está no Brasil e em 54% do território brasileiro. Portanto, o Brasil tem a competência sobre esse activo. É um território nosso e temos responsabilidade de cuidar disso. Outra coisa tem a ver se o Brasil não cuida bem, não é a floresta que impacta, mas a atmosfera é que é impactada. A atmosfera é o bem comum, não a floresta amazónica.

Um desiquilíbrio na floresta vai provocar crises no Brasil e no Mundo, impactando a atmosfera que mantém a vida no planeta. As pessoas devem evoluir nos seus conceitos em relação à segurança, defesa. O Mundo está a mudar. Os argumentos são outros. Não vou discutir só a floresta. Vou discutir novas actividades económicas na floresta mas também lidar com migrações no futuro, como o que está a acontecer com a Venezuela. Prevê-se migração de 5 milhões de pessoas até 2020 pela floresta. Como lidar com esses impactos? Estamos a falar do bem estar humano. Você não precisa de desmatar a floresta. Vamos estar mais vulneráveis pelas alterações climáticas, pelas questões de saúde.

A floresta é um ativo de qualidade de vida, de desenvolvimento, de bem estar e de identidade da sociedade brasileira. O Brasil pertence ao Mundo e tem também uma responsabilidade de preservar o mundo. Não é por quererem tirar a soberania ao Brasil, é cuidar disso para preservar os ativos do mundo.

Hoje existe um movimento de jovens em todo o mundo a defender "ação pelo clima". Tem esperança nesse movimento ou prefere encará-lo com algum distanciamento?

As pessoas estão a interpretar muito mal as lideranças jovens. O Presidente do Brasil referiu-se a Greta como uma pirralha. Não entendem o papel político. Estamos a discutir assuntos para daqui a 20 anos, quando se defende a neutralidade carbónica para 2050. São eles que vão estar aqui em 2050. Os jovens estão a defender aquilo que é a sua vida daqui a 10 anos. Não é para quem tem 70 anos e daqui a 10 anos estará aqui com 80.

Eles estão zangados.

E devem estar. Falta inovação na política em todo o mundo. Há inovação tecnológica mas precisamos de ter coragem para ter inovação na política. Os jovens estão a denunciar isto com muita coragem.

E no Brasil entram na classe politica?

Entram. Há uma renovação do Congresso Nacional. Tem jovens lideranças parlamentares e as pessoas querem disputar o espaço político. Em 2013, o movimento era especialmente de reação contra a política. Agora na eleição de 2018 estava tudo na política e obviamente temos contradições dentro da democracia. Independentemente disso vejo com muita esperança a existência de jovens, mesmo com contradições, ideologias e fragmentação, lutando por fazerem parte do mundo.

A alternativa deve ser fragmentada para o próximo combate político?

A alternativa à fragmentação é algo quase sem caminho devido a este mundo digital e à forma como nos conectamos. Temos que ter, sim, uma unidade das ideias e das soluções. E vão mobilizando cada vez mais as pessoas por quinze minutos. Há uma inconstância. Na minha geração, permanecíamos no mesmo lugar. Fiquei 35 anos trabalhando no mesmo lugar e o meu sobrinho pergunta-me como isso foi possível. Hoje eles querem ficar cinco anos para fazer um trabalho e depois ficam outros dois anos para outro. E vão construindo. Temos que entender os novos conceitos de construção política e não achar que isso não cabe. Cabe e muito.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+