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D. Américo Aguiar, bispo de Setúbal: "Parece que Deus até me preparou para esta missão"

21 set, 2023 - 11:01 • Aura Miguel

"Vou tentar saber rir com quem está feliz, tentar chorar com quem está triste e fazer caminho com todos", diz o futuro cardeal em entrevista à Renascença.

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D. Américo Aguiar, bispo de Setúbal: "Parece que Deus até me preparou para esta missão"

O futuro cardeal D. Américo Aguiar, novo bispo de Setúbal, reage com "muita alegria" à notícia da sua nomeação pelo Papa. mostrando-se confiante face ao futuro.

"Parece que Deus até me preparou para esta missão", diz o futuro cardeal à Renascença, apontando, em seu favor, a "experiência" que tem "da polis, da cidade, toda essa vivência".

Neste quadro, D. Américo encara "as dificuldades e problemas" que Setúbal representa como um desafio a que tem "obrigação de, com a maior urgência, poder corresponder".

O novo bispo promete "pôr os dons de Deus a render em favor dos irmãos e das irmãs" da dicese.

"Vou tentar saber rir com quem está feliz, tentar chorar com quem está triste e fazer caminho com todos."

Antes desta entrevista, na mensagem de saudação à população de Setúbal, D. Américo Aguiar, de 49 anos, diz ser uma honra ter sido escolhido pelo Papa Francisco para comandar os destinos da diocese sadina.

O também presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude (JMJ2023) e do conselho de gerência do Grupo Renascença Multimédia afirma que vai para Setúbal de “coração aberto” e com esperança.


Como encara a nomeação para bispo de Setúbal?

É uma nova missão que a Igreja me pede, a que o Papa me envia. É urgente anunciarmos Cristo vivo e agora é com muita alegria que, depois do desafio maior da minha vida, que foi, com milhares de jovens voluntários e profissionais de Lisboa, do país e do mundo, termos organizado a mais bem preparada Jornada Mundial da Juventude, é não deixar agora arrefecer ou apagar a chama e levar o anúncio de Cristo vivo para aqui pertinho. É só atravessar o Tejo e estar com os irmãos e irmãs da Península de Setúbal, da diocese de Setúbal. É ir dar continuidade ao trabalho que foi semeado, primeiro, dentro da diocese do Patriarcado de Lisboa e, depois desde 1975, com o muito querido e saudoso D. Manuel Martins, com o senhor D. Gilberto que ainda vive e com o senhor D. José Ornelas que está em Fátima. E agora vão ter a penitência de fazer caminho comigo e eu com eles.

Sabemos que vai entrar na diocese a 26 de Outubro para coincidir com a data de D. Manuel Martins, que também entrou nesse dia, em Setúbal...

É verdade. Quando o Santo Padre falou comigo sobre esta circunstância, o que me veio à memória foi uma rápida viagem à minha infância e à minha vida que parece, quando lemos e rezamos a Sagrada Escritura, principalmente o Antigo Testamento, uma história daquelas figuras e personagens em que vemos que tudo bate certo, não é? Então, lembrei-me imediatamente que, no Verão de 1975, o jovem de 48 anos Manuel Martins é nomeado bispo de Setúbal e eu tenho 49; e que somos da mesma terra, batizados na mesma pia batismal. Depois, na diocese do Porto, aquele jovem era o vigário geral, tal como eu fui; em seguida, aquele jovem sacerdote foi o responsável pela Irmandade dos Clérigos e eu também; depois era o "bispo vermelho", ora, não há bispo mais vermelho do que um cardeal (risos).

Também agora se considera como "bispo vermelho", ao entrar em Setúbal?

Com certeza, pois não há bispo mais vermelho, nem ninguém que tenha umas vestes mais vermelhas do que o próprio cardeal. E também ajudou o facto de ter tido oportunidade, enquanto seminarista, de vir algumas vezes a Setúbal passar uns dias com ele [D. Manuel Martins]. Lembro-me de irmos à inauguração de uma igreja e de visitar pessoas. Lembro-me de ir com ele aos Açores, onde ia muitas vezes para fazer uns crismas e celebrações. E lembro-me também do carinho e do cuidado que tinha em descobrir e decidir a nova Casa Episcopal, pois considerava que os seus sucessores deveriam ter uma casa diferente daquela onde morava.

Quando ele chegou à diocese, nem sequer havia paço episcopal...

Acompanhei tudo isso, mas nunca na vida pensei que este jovem de Leça do Balio viria a ser bispo e muito menos cardeal ou bispo de Setúbal. Por isso, esta viagem rápida na vida é como o trabalho do oleiro. Eu acredito que Deus tem as suas mãos como as do oleiro que vai moldando a peça e, de vez em quando, a gente sente a sua mão. E agora esta decisão é como sentir a mão de Deus nesse oleiro.

Considera-se herdeiro de D. Manuel Martins, que até lhe deixou em herança o cálice da sua missa nova...

É verdade. É o cálice da missa nova dele, exatamente.

Foi, de certo modo, profético...

Pois... Lembro-me, quando ele me disse, de ter ficado alegre e triste. Alegre, porque era o cálice dele; e depois fiquei triste porque, quando cheguei ao seminário, todos estavam a mandar fazer os cálices. Fiquei assim um bocadinho apreensivo, naqueles primeiros momentos, mas depois pensei: "Não, o meu cálice é o dele e temos um acordo porque, na base do cálice, está uma inscrição que diz 'padre Manuel Martins’, com a data da missa nova da sua ordenação, e tem 'padre Américo Aguiar' que ele próprio mandou gravar. Ele em 1951 e eu em 2001, exatamente 50 anos depois, em Leça do Balio. E fiquei com o encargo de entregar o cálice ao próximo sacerdote que venha a ser ordenado em Leça do Balio. Esperemos.

Setúbal é uma diocese multifacetada e tem de tudo um pouco. Com dois pólos universitários, áreas rurais e operárias, algumas com grande peso, como é o caso da Auto Europa, tem grandes cidades, como Barreiro, Almada e Setúbal, com os seus problemas urbanos e também bairros de lata, com situações gravíssimas e grandes contrastes. Como é que olha para estes desafios?

Lá está, eu, olhando para trás, parece que Deus até me preparou para esta missão, porque aquilo que às vezes é currículo e outras vezes é cadastro, no meu caso, com a minha experiência político-partidária, autárquica, do mundo, das coisas da "polis", da cidade, toda essa minha vivência, agora, é a minha cara. Portanto, essa circunstância, esse tecido, essas dificuldades e problemas são um ganho e tenho mais obrigação de, com a maior urgência, poder corresponder.

No fundo, é pôr a render também sua experiência anterior...

É pôr os dons de Deus a render em favor dos irmãos e das irmãs. Não tenham dúvida de que isso acontecerá, apesar da minha pequenez, das minhas limitações. Aliás, eu estou a falar de uma realidade que conheço, intermediada pelos media, pelo que leio e pelo que vejo. É muito interessante. Ainda há dias, antes da nomeação, tinha andado a acompanhar as notícias da Auto Europa e desses problemas todos. Com a nomeação, passei a sentir o problema. Uma coisa era saber o problema; agora, é senti-lo. Quando eu fui à Ucrânia, uma coisa foi ver na televisão e outra o viver, lá. Ora, as notícias e o assunto da Auto Europa, desde há dias, que os sinto como preocupação minha - aliás, alegra-me muito que, a partir de 2 de Outubro, retomem a laboração ultrapassados, em parte, os problemas de fornecimento das peças. Por isso, é com muito carinho e com muita disponibilidade que vou tentar saber rir com quem está feliz, tentar chorar com quem está triste e fazer caminho com todos.

A nível da igreja, o que mais o preocupa? Já pensou por onde é que vai começar?

Chegando lá, vou fazer caminho com eles. Aliás, temos que agradecer muito ao padre Lobato, aos sacerdotes Setúbal. Os sacerdotes são uns grandes benfeitores da humanidade, apesar dos problemas e dificuldades que temos vivido. Na generalidade, os sacerdotes são benfeitores da humanidade. Depois, também temos religiosos, religiosas, homens e mulheres que consagram sua vida em favor dos outros, do anúncio de Cristo vivo, para nos acompanhar nas alegrias, nas tristezas, nos sonhos, nos projetos, nos desaires e em tudo isso. E eu tenho, obrigatoriamente, uma palavra de muita gratidão, para o padre Lobato e para os sacerdotes de Setúbal que, nestes quase dois anos sem bispo, fizeram o que foi possível, talvez de maneira diferente daquela que poderia ser, se lá tivesse um bispo, mas, certamente, cada um, com a sua oração, com as suas preocupações em presbitério, fez o que foi possível para viver, daquela maneira especial e nova para aquela diocese. Desde que foi criada, a diocese de Setúbal nunca tinha ficado nesta circunstância. Portanto, foi uma experiência nova e, pelo que fui lendo, dolorosa… Acho que rezaram muito para vir o bispo… Mas a partir de agora, vão passar 30 anos a rezar para ele ir embora!

Trabalho não lhe falta. Neste sentido, aproveito para perguntar porque que tem como referência, além de D. Manuel Martins, também o D. António Francisco dos Santos? São como dois protetores para o ajudar na pastoral?

Sim, acredito que eles, lá no Céu, devem ter andado a fazer das deles para que isto tudo acontecesse (risos). Se o Senhor D. Manuel me dá a sensibilidade e a atenção, o ser a voz dos que não têm voz, a preocupação com os últimos, aquilo que o Papa Francisco nos trouxe agora, de novo, e que foi sempre a vivência dele (aliás, o D. Manuel falava com muito carinho do D. Hélder Câmara, não é?), o D. António Francisco dá-me o afeto e o carinho do pastor. São dois mestres que me marcam profundamente.

O que aprendeu com eles também vai certamente ajudar a enfrentar a questão dos abusos em Setúbal, da qual não se conhece grande coisa. Já conhece o dossier?

Eu acompanhei aquilo que foi realidade em Lisboa, desde 2019 até ao início deste ano, em que, por recomendação da Comissão independente e decisão ou recomendação também da Conferência Episcopal, os eclesiásticos saíram das comissões e, portanto, eu também saí da Comissão de Lisboa. Em relação a Setúbal, será certamente um dos dossiers que vou tratar com os responsáveis para saber o ponto de situação, conhecer a situação que se viveu, o que se está a fazer e o que se pode melhorar. É prioritária a prevenção, independentemente do dossier. Em relação ao que porventura aconteceu, seja muito ou pouco, estamos a falar de uma diocese que existe há 48 anos, em que, porventura, as situações anteriores ainda estavam ligadas a Lisboa. Mas, quando lá chegar, será um assunto prioritário e cabe-me “enfarinhar as mãos" para, com propriedade, poder continuar a fazer o trabalho. Também tenho feito um esforço, quer a nível diocesano, quer a nível nacional a favor da tolerância zero e da transparência total. Esta também deve ser uma marca de continuidade na diocese de Setúbal.

Esta sua nomeação para Setúbal foi decidida após a última audiência com o Papa. Ele deixou-lhe algum conselho?

Ah, não vou dizer. Nunca disse nada das audiências com o Papa, nunca disse e também agora não vou dizer. O que eu posso dizer é que deste encontro, mais uma vez, a proximidade do Papa, o conhecimento da realidade, os seus conselhos, com a sua visão do imediato e do futuro, tudo isso revela o grande carinho, amor, atenção e cuidado que ele tem pela Igreja portuguesa e, de um modo especial, pela Igreja Setúbal, da qual não falou de cor, falou com propriedade e com conhecimento de causa.

Entretanto, dentro de poucos dias, também a 30 de setembro, vamos saudá-lo como cardeal. D. Américo Aguiar é um dos mais jovens membros do Colégio Cardinalício. Já se habitou a essa ideia?

Não, não, não. Aliás, eu brinco sempre dizendo que sou cardeal desde o seminário, porque era a minha alcunha. Portanto, não há problema. Eu tenho dito, não é para me armar em humilde nem ter esse tipo de narrativa, mas, pessoalmente, na minha mente, quando penso num cardeal - e olho para o senhor D. Manuel Clemente para o senhor cardeal Marto, para o cardeal Tolentino e para outras figuras - não me revejo, naquilo que é, ou que era para mim e que será para muita gente, um perfil, um peso ou uma referência. Aliás, a imagem que usei, no dia do choque, foi a do 'Danoninho', do pequenino, do frágil.

O que eu sei é que, tal como noutras coisas, Deus coloca-me este desafio e Ele vai dar as forças para que eu possa corresponder. E o que eu posso fazer, como em tudo o que tenho feito e que a Igreja me tem pedido, é estar disponível para aprender e a dar-me sem medida, para corresponder às expectativas. É o que eu vou fazer. Aliás, eu dizia a brincar que, no Conclave é preciso que alguém sirva cafés e tire fotocópias e, como sou muito operacional, portanto, é uma ajuda também fundamental.

A partir de agora, as suas responsabilidades, além de bispo Setúbal, vão ficar acrescidas porque o senhor passa a integrar um colégio de elite ao serviço do Santo Padre. Por isso, podemos saber o que vai no seu coração e o que pede a Deus quando reza?

Há dias, houve um autor, que não sei o nome, peço desculpa, mas que gostei da sua interpretação sobre o que seria o meu futuro. E dizia assim: se este novo cardeal for para a Cúria, significa que ainda continuamos numa interpretação dos cardeais príncipes da Igreja. Se ele for para uma diocese, continuamos um caminho novo, em que os cardeais são príncipes do Papa. Acho interessante que, nestas variadas escolhas, cada vez mais entendamos que os que trabalham numa diocese, na Cúria ou numa outra missão, nenhum deles é melhor do que outro. São todos trabalhos e missões que o Papa delega. O ser cardeal não acrescenta nem tira nada em relação àquilo que são outros homens e mulheres que servem a Igreja. A catequista, o acólito, o coro, o cardeal, o bispo, o padre, o diácono, cada um presta um serviço à Igreja. Aquilo que eu entendi e entendo da escolha em relação a mim e das nomeações que o Santo Padre fez e vai fazer, vai no sentido de nos provocar e fazer caminhar para retirar o peso institucional dos príncipes da Igreja para uma leitura pastoral de homens que são chamados a uma colaboração mais próxima, a um aconselhamento naquilo que é o Governo da Igreja.

Vamos ter um cardeal todo-o-terreno...

(risos) Isso agrada-me. Um cardeal todo terreno, agrada-me, de facto. É isso mesmo.

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