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Moçambique. "Cabo Delgado não conhece um momento de segurança", lamenta bispo de Pemba

14 fev, 2024 - 06:00 • Henrique Cunha

Seis anos e meio depois do inicio dos ataques terroristas em Cabo Delgado, a população sente-se abandonada pela comunidade internacional e pelo próprio país. O lamento é deixado pelo bispo de Pemba, numa entrevista à Renascença em que D. António Juliasse fala também da reacção dos bispos africanos à questão da benção a casais em situação irregular. “A nossa posição é pedagógica."

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D António Juliasse: "O povo vive com medo." Foto: Lusa
D António Juliasse: "O povo vive com medo." Foto: Lusa
Foto: MSF
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O bispo de Pemba, D. António Juliasse, diz que a província de Cabo Delgado se sente abandonada e que esse sentimento de abandono é generalizado.

“O sentimento de abandono, aqui em Cabo Delgado, não é só pela comunidade internacional, mas também é um sentimento que a população sente em relação ao próprio país”, afirma o prelado, em entrevista à Renascença.

D. António Juliasse revela que vem chamando a atenção para o facto de “em muitas outras províncias, as pessoas olharem para a situação e dizerem que o terrorismo é um problema de Cabo Delgado”.

“Há necessidade de se mudar esta mentalidade para que se possam construir estratégias e politicas mais adequadas”, defende.

O bispo teme que a provável saída de Cabo Delgado das tropas da SADC - a troika da comunidade para o Desenvolvimento da África Austral - diminua ainda mais a pouca visibilidade da região.

“Agora, traçou-se a saída das forças da SADC que aqui tem a designação de SAMIM. Eu tenho dito sempre que a saída da SAMIM vai diminuir cada vez mais a possibilidade do interesse da comunidade internacional por este assunto da violência, da insurgência aqui em Cabo Delgado. É que a presença das tropas da SADC comprometia os países vizinhos e a sua retirada pode trazer consequências não muito boas para a visibilidade do que está a acontecer”, suspeita.

Por outro lado, D. António Juliasse não tem dúvidas de que a crise em Cabo Delgado, assim como a crise humanitária no Sudão, "ficaram marginalizadas" com o eclodir na guerra na Ucrânia.

Desde o início dos ataques terroristas na região, vai para seis anos e meio - os primeiros ataques datam de outubro de 2017 - as populações "não conheceram na província um momento de segurança".

“Há momentos de ataques intensos. Há outros momentos de uma certa acalmia, mas nunca isto significou uma cessação do problema. A partir de dezembro até este mês de fevereiro, os ataques conheceram uma certa intensidade. E, nos últimos dias, os insurgentes atingiram aldeias perto do rio Lúrio, já na fronteira com a província de Nampula. Isto significa que estão a alargar a sua área de intervenção”, adverte.

O número de deslocados já é superior a um milhão e o bispo de Pemba revela que as últimas movimentações terroristas no inicio do ano "já provocaram mais de cinco mil novos deslocados".

Por tudo isto, a apreensão e o medo também são vividos em Pemba, apesar de a cidade estar protegida. D. António Juliasse recorda, nesta entrevista à Renascença que “Pemba é uma grande cidade e tem uma certa proteção, com vários quartéis”, mas “o povo vive com medo porque, por exemplo, Metuge também está muito próximo da cidade de Pemba”.

O bispo aponta para a existência de limitações por parte das autoridades que “ao fim de seis anos, não conseguiram dominar ou limitar as ações terroristas na região” e admite que parte da insegurança registada se deve aos interesses económicos na região. Contudo, o prelado sublinha que aquilo que está provado é a ligação dos terroristas ao Estado Islâmico. “Os ataques que eles fazem e que têm sucesso são todos publicados também no site do Isis”, revela.

O bispo de Pemba garante que "as grandes ajudas" deixaram de chegar a Cabo Delgado, facto que diminui a capacidade do Programa Alimentar Mundial (PMA). D. António Juliasse não tem informação recente sobre como se está a processar a ajuda internacional, mas assegura que subsistem os problemas que levaram o PMA a "racionalizar apoios".

Bênção de casais homossexuais: demarcação de bispos africanos "é pedagógica"

Nesta entrevista à Renascença, o bispo de Pemba explica também porque é que as Conferências Episcopais de África se demarcaram da declaração "Fiducia supplicans", relativa a bênçãos para casais em situação irregular, particularmente quanto às uniões homossexuais.

O prelado lembra que em África existem muitas seitas que “têm uma compreensão muito profunda da bênção”

“Não é como nós, Igreja Católica. Para as seitas e igrejas protestantes e pessoas simples, a bênção, quer dizer que é possível abençoar ou que se deve abençoar sem essas peculiaridades teológicas e doutrinárias. Por exemplo: eles não conseguem distinguir entre bênção ritual e bênção não ritual."

"Só a palavra bênção já é uma permissão e, pedagogicamente, significa que isto é aceitável e que pode se tornar algo a ser cultivado por todos. Compreendem que boa parte das seitas e igrejas protestantes não têm sacramentos, eles têm apenas bênção. E isso gerou um mal-estar muito grande na sociedade, nas redes, nas paróquias, nas conversas, em todo lado, e pediram que os bispos se pronunciassem claramente”, explica.

O bispo de Pemba admite que o documento da “Fiducia Supplicans” é claro, é simples, mas, mesmo assim, aquela simplicidade, gerou um mal-estar muito grande”.

A nossa posição é uma posição pedagógica, não é uma posição discriminatória, mas é uma posição pedagógica da defesa da família. Por isso, dissemos claramente que não devemos estar distantes destas necessidades específicas”, prossegue.

Contudo, D. António Juliasse reforça a ideia de que a Igreja africana não discrimina ninguém: "Nas nossas pastorais, nas paróquias, nas comunidades, sabemos que essas bênçãos para os que estão em situação irregular ocorrem naturalmente."

A declaração “foi mais uma questão pedagógica em defesa dos valores da família, da promoção da família, que é a grande riqueza aqui em África”, remata.

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