Bnei Sakhnin

Em Israel, há uma equipa em que árabes e judeus jogam lado a lado

20 out, 2023 - 07:00 • Eduardo Soares da Silva

​Só há um clube árabe que joga regularmente no principal campeonato israelita: o Bnei Sakhnin. A claque é composta por palestinianos e o plantel une jogadores árabes e judeus. Juntos dentro de campo, conquistaram a Taça em 2004 e representaram Israel na Taça UEFA. No balneário, a política e a religião não ficam à porta. Ali, o futebol não é só futebol.

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O telefone de Gabriel Lima tocou bem cedo no domingo, dia 8 de outubro. Por volta das sete da manhã. A chamada tinha indicativo israelita, +972. “Alguma coisa aconteceu”, pensou o antigo futebolista brasileiro, hoje com 45 anos.

Foi nessa manhã - horas depois do mundo saber do ataque do grupo Hamas em Israel - que Gabriel recebeu a notícia: o seu antigo colega de equipa, Lior Asulin, era uma das vítimas mortais num festival de música próximo da Faixa de Gaza.

Os dois conheceram-se há quase duas décadas. Em 2004, fizeram história no Bnei Sakhnin e provaram que era possível paz entre árabes e judeus.

Durante anos, o futebol em Israel esteve organizado de forma simples: judeus jogavam maioritariamente em equipas judaicas e os muçulmanos em equipas árabes. Até que surgiu o Sakhnin.

O sucesso do clube de uma pequena cidade árabe no norte de Israel ajudou a mudar o paradigma em 2004 ao vencer um troféu com jogadores de povos que, ao mesmo tempo, travavam sangrentas batalhas.

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"Abrimos caminho para outros clubes contratarem árabes", Gabriel Lima, ex-jogador do Bnei Sakhnin

“Foi dos primeiros clubes a misturar árabes e judeus. Lembro que o Maccabi Haifa tinha um central árabe, mas eram muito poucos”. Contavam-se pelos dedos das mãos, recorda Gabriel à Renascença.

Gabriel Lima foi um talentoso avançado brasileiro. Brilhou em Israel no início do século. Tornou-se conhecido por todos, de Haifa até Gaza, segundo o próprio. O avançado da fita na cabeça. Chegou a meio da temporada 2002/03 ao Shakhnin, na mesma altura altura em que o clube começou a crescer com ajuda de investimento vindo do Qatar.

O clube subiu à primeira divisão nesse mesmo verão e foi a temporada seguinte que trouxe notoriedade a Gabriel, ao clube e que deixou marca no país.

Com um plantel composto por 12 jogadores árabes, sete judeus e quatro estrangeiros - um deles Gabriel – o Bnei Sakhnin venceu a Taça de Israel, conquistada pela primeira e única vez na história por um clube de origem árabe.

Ao lado de Gabriel na frente de ataque, outro avançado se destacou nessa temporada: Asulin.

“Foi o meu melhor parceiro de ataque, um casamento à primeira vista. Chegou ao clube, fomos para o treino e foi amor à primeira vista. Nos 20 anos de futebol profissional, foi com quem encaixei melhor. De costas, sabia onde ele iria passar. E isso ficou eternizado com um título."

Hoje, a mistura é mais comum e até a seleção nacional de Israel junta árabes e judeus, o que se aproxima da realidade demográfica do país, onde cerca de 20% da população é árabe. Perto de dois milhões de pessoas. Outro clube árabe - o Maccabi Bnei Raina - tem também assumido destaque nas últimas duas épocas.

A maioria dos árabes-israelitas são palestinianos que ficaram no país após a criação do estado de Israel. Em 1948, o consequente conflito armado obrigou ao êxodo de mais de 700 mil palestinianos para a Faixa de Gaza, Cisjordânia, ou em busca de uma vida nova em países vizinhos: Nakba, "a catástrofe".

Embora sejam cidadãos israelitas, o povo árabe enfrenta mais desafios: vive em cidades mais pobres e tem menos acesso à educação.

Abbas Suan era o capitão do Sakhnin. Nasceu e cresceu na cidade. É muçulmano e com raízes na Palestina. Foi também uma referência na seleção de Israel com um importante golo que aproximou do Mundial 2006, mas nunca aceitou cantar o hino. Também por isso, nunca foi aceite por uma parte do país.

"Herói por um dia, inimigo nos seguintes", escreveu o "New York Times".

O caso do Bnei Sakhnin ajudou à normalização: “Abrimos o caminho para essa mescla”, considera Gabriel, que recorda, na altura, “que alguns judeus não quiseram ir para o Sakhnei”.

Em 2004, em plena Segunda Intifada - a revolta dos palestinianos, entre 2000 e 2005, contra a ocupação de Israel - a conquista do clube foi destaque nacional com uma forte mensagem: é possível a convivência entre os dois povos. E é possível trabalharem em conjunto.

Gabriel até marcou na final que recorda como “mágica”, mas nem o futebol foge à política, à religião e à disputa de décadas entre Palestina e Israel. Teve “briga”: “Eles eram judeus, não queriam perder para os árabes”, lembra.

relatos de jogadores com bandeiras da Palestina às costas, mas o avançado só se lembra de as ver nas bancadas. A claque continua a publicar regularmente mensagens políticas nas suas redes sociais.

Na época seguinte, em 2005, o Sakhnin representou Israel na Taça UEFA e chegou a defrontar Newcastle, de Alan Shearer e Patrick Kluivert. Mas nem todos no país viam com bons olhos a filosofia e sucesso do Bnei Sakhnin .

Para lá dos verdadeiros cenários de guerra, há uma frente de combate sempre que o Bnei Sakhnin defronta o rival Beitar Jerusalém.

O clube da capital tem assumidas ligações à extrema-direita e a sua claque orgulha-se de cânticos como “ morte aos árabes” e “somos o clube mais racista do país”. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é um dos seus mais famosos adeptos.

A filosofia opõe-se totalmente à do Sakhnin: árabes não são aceites.

Na única ocasião em que o Beitar contratou dois muçulmanos - oriundos da Chechénia -, os adeptos revoltaram-se e a dupla não fez mais do que dez jogos pelo clube.

Era um ambiente de guerra contra o Beitar ”, diz Gabriel. “Até fico arrepiado de lembrar. A escolta tinha de ser enorme, atiravam pedras”.


A filosofia dos dois clubes dava origem a situações caricatas dentro de campo: “Os judeus da nossa equipa iam para a 'guerra' contra o povo deles. E defendiam os árabes. É uma loucura. No campo diziam que me queriam matar, eu respondia que sou brasileiro. Mas a minha bandeira ali era a do Sakhnin, por isso até comigo havia esse clima de guerra.”

Num país em que a tensão é parte do dia-a-dia, o mais pequeno gesto pode ser considerado político.

Algures entre 2003 e 2004, Gabriel marcou um golo. Um de muitos que fez em Israel, onde reconhece que viveu o melhor período da carreira. Mas o festejo foi diferente do habitual.

Tinha uma camisola com metade da bandeira de Israel e metade do Brasil. Os judeus acusaram-me de fazer política”. O ex-avançado confessa a verdadeira intenção: foi um gesto para agradecer uma doação judaica a uma das comunidades árabes.

Manifestação em Sakhnin no ano de 2000 contra a descrimição contra árabes-israelitas. Foto: REUTERS/Ammar Awad
Manifestação em Sakhnin no ano de 2000 contra a descrimição contra árabes-israelitas. Foto: REUTERS/Ammar Awad
A bandeira da Palestina no estádio do Bnei Sakhnin. Foto: DR
A bandeira da Palestina no estádio do Bnei Sakhnin. Foto: DR

No Sakhnin, os jogadores não eram imunes às décadas de conflito, às diferenças ideológicas dos seus povos e aos conflitos armados que decorriam. Gabriel não era fluente em hebraico, mas tem a certeza que o tema era frequente. Em Sakhnin, o futebol não era só futebol.

Eles discordavam nas opiniões. Havia conversas entre eles, ficavam a discutir. Coisas de política e sobre os ataques que aconteciam”.

Mas Gabriel sorri quando recorda esses momentos. Não há sentimentos negativos nas memórias. “Acabava por ser engraçado porque estávamos sempre no mesmo lado”. No fim do dia, continuavam na mesma equipa, a lutar juntos pelo mesmo objetivo.

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  • Timbo Caspite
    20 out, 2023 Lisboa 10:26
    Hamas e Hezbollah não representam o povo palestino. A propósito, sabem quais são as premissas destes grupos "t3rr0r1st4s"?

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