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Eutanásia. “Todos perdemos quando estes documentos não passam pelo Conselho Nacional de Ética”

04 nov, 2021 • Eunice Lourenço (Renascença) , Ana Maia (Público)


Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), lamenta que o organismo não conheça o diploma que o Parlamento discute esta quinta-feira. E defende que este tema deveria ser referendado.

Eutanásia. “Todos perdemos quando estes documentos não passam pelo Conselho Nacional de Ética”
Imagem e edição: Joana Bourgard/RR; Foto: Paulo Pimenta/Público

Na sua primeira entrevista como presidente do Conselho Nacional de ética para as Ciências da Vida (CNECV), Maria do Céu Patrão Neves diz que o organismo ficou à margem do processo de legalização da eutanásia nesta reta final. “Como compreender que esta questão seja votada pelo Parlamento sem que o que o CNECV seja ouvido?”, questiona a professora catedrática de ética da Universidade dos Açores em entrevista à Renascença e ao jornal 'Público'.

Em funções desde setembro, a antiga deputada pelo PSD ao Parlamento Europeu (2009-2014) adianta que também em relação ao processo legislativo da inseminação post mortem, o Conselho “tem sido colocado à margem”.

O Parlamento debate esta quinta-feira a lei da eutanásia, que sofreu várias alterações em função dos reparos do Tribunal Constitucional. Como vê esta versão final?

É importante que a sociedade civil conheça aquilo que são as competências do conselho. E que os nossos deputados confiem no conselho para poder receber aquilo que são as perspetivas de análise, as posições tomadas por um órgão independente, plural, multidisciplinar.

E que pode apresentar perspetivas de análise sobre questões que dizem respeito aos valores e fundamentar essas perspetivas de análise. A pergunta que me faz obriga-me a esta introdução, porque o conselho não tem conhecimento do documento que irá ser discutido quinta-feira.

Esta versão não vos foi enviada?

Nem o CNECV tem esta versão, nem está pública. Procurei-a no site da Assembleia e não estava disponível, o que significa que o cidadão comum não sabe o que vai ser debatido.

Todos nós temos consciência que esta versão responderá às objeções formuladas, particularmente pelo Tribunal Constitucional e também pelo Presidente da República, mas o CNECV não conhece e, sobretudo, não foi ouvido.

Anteriormente, num artigo de opinião, teceu a mesma crítica por o Parlamento não ter tido em conta o parecer do CNECV na versão votada em janeiro.

A crítica que fiz no passado foi enquanto cidadã empenhada nestas matérias. Neste momento, falo enquanto presidente do CNECV. Este organismo é uma vantagem para o nosso país no sentido em que está vocacionado para fazer análise e para emitir recomendações sobre matérias que importam à sociedade e que têm uma dimensão ética fortíssima.

Como acontece no caso da designada morte medicamente assistida. Como compreender que esta questão seja então votada pelo Parlamento sem que o que o CNECV seja ouvido? Penso que ficamos todos a perder quando estes documentos não passam pelo CNECV.

Sente que há um desprezo pelo papel que o conselho pode ter e a importância que deve ter?

Em termos gerais, precisamos de fazer um estudo sobre o impacto que as deliberações do conselho têm tido na vida sócio-política nacional. Receio que o impacto não seja tão forte quanto seria nosso desejo, o que significa que há trabalho a fazer por parte do conselho de uma proximidade maior aos decisores políticos e também junto da população.

Por outro lado, esta matéria da morte medicamente assistida tem estado muitíssimo fechada no Parlamento. Sobre estas matérias, penso que não será o recomendável.

Tenho ouvido o argumento que os nossos deputados exercerão a sua decisão nestas matérias como representantes dos cidadãos. O que é curioso é que verificamos depois que alguns partidos dão liberdade de voto aos seus deputados. Ao dar liberdade de voto significa afinal que os deputados vão votar de acordo com a sua consciência um direito que o próprio cidadão não tem porque não houve consulta direta ao cidadão.

Este é um assunto que deveria ser referendado?

Todos temos consciência que precisamos de qualificar a nossa democracia. E alguns atos de democracia direta podem ser uma forma de qualificação desta mesma democracia. Este poderia ser um caso em que abrir o debate mais amplamente ao cidadão e deixá-lo tomar uma decisão garantiria que a decisão final seria também mais consentânea com o sentimento geral do povo português em relação.

Considera que esta nova formulação também deve ser enviada ao Tribunal Constitucional?

Essa decisão competirá ao Presidente da República se considerar existir dúvidas acerca da sua constitucionalidade. As observações anteriores do Presidente da República diziam respeito à terminologia que era utilizada no diploma. Uma linguagem muito vaga deixa os critérios da tomada de decisão também muito vagos, com uma responsabilidade diluída, que mais uma vez constitui um prejuízo para o próprio processo.

Os deputados fazem uma espécie de definição do que é lesão definitiva de gravidade extrema, considerando que é lesão grave, definitiva, amplamente incapacitante, que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada que tais limitações venham a persistir no tempo, sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa. Parece-lhe que estes termos serão definições suficientes?

As definições têm de ser analisadas com todo o rigor, não o posso fazer precipitadamente aqui.

Muito menos em nome do CNECV que não debateu essa questão. Poderei apenas acrescentar que definições que sejam demasiado amplas cobrirão também um mais amplo sector da sociedade e, pelo que ouvi muito rapidamente, diria que muitos idosos em situação de dependência cabem nessa definição.

Obviamente que não é esta a ideia que estará na intenção do legislador. Mais uma vez, o que posso dizer é que foi pena que o Conselho não tenha tido possibilidade de se pronunciar sobre esta matéria, nomeadamente sobre esta definição tão ampla, no sentido de identificar com rigor até que ponto é que ela não é demasiado ampla, o que me pareceu ser.

Eutanásia. "O cidadão comum não sabe o que vai ser debatido"
Eutanásia. "O cidadão comum não sabe o que vai ser debatido"

Em 2016, numa entrevista dizia que a legislação que temos em termos de testamento vital e de diretivas antecipadas de vontade é das mais avançadas do mundo sobre a suspensão de tratamento. Continua a achar que essa legislação seria suficiente e poderíamos dispensar a lei da eutanásia?

As palavras que acabou de repetir dizem respeito à minha posição pessoal.

Eu continuarei a dizer que a lei que temos sobre diretivas antecipadas de vontade é o que podíamos dizer das mais progressistas, porque tem uma amplitude enorme para o exercício da autonomia da pessoa em fim de vida.

É interessante verificar que o governo quando avançou com esta lei esperava alcançar à volta dos 20 mil subscritores das diretivas antecipadas de vontade nos primeiros seis meses, se não estou errada.

Creio que esse número só foi alcançado em 2018/2019. O que é indicativo, em primeiro lugar, da falta de conhecimento do cidadão das diretivas antecipadas de vontade e, em segundo lugar, talvez também - não temos estudos que garantam a objetividade da minha apreciação - de algum desinteresse em relação a esta matéria.

Então pergunto eu, em termos pessoais, porquê avançar imediatamente para uma lei da eutanásia quando ainda não temos as diretivas antecipadas de vontade plenamente conhecidas por parte do cidadão e exercidas por ele mesmo? Penso que queimamos aqui etapas e talvez mais por uma agenda política do que por um interesse do cidadão.

Outra questão que também não está fechada e tem sido um processo legislativo moroso é a inseminação post mortem. O Presidente devolveu a lei ao Parlamento levantando questões relacionadas com as heranças. O CNECV tem acompanhado este assunto? Têm dúvidas sobre esta questão?

De novo o CNECV tem sido colocado à margem desta temática que é específica das competências do Conselho. Não tendo sido enviado qualquer tipo de documento para uma tomada de posição por parte do CNECV, este mandato, que tomou posse em julho e começou a funcionar em setembro, ponderou analisar este processo, mas o processo está de tal forma adiantado que não há margem para pronunciamento do Conselho em relação a esta matéria.

A comunicação social e o cidadão comum devem interrogar-se sobre a necessidade de ter um mecanismo que está vocacionado para assessorar o legislador nestas matérias e que continua a ser mantido à margem do que são os problemas mais complexos e mais controversos na sociedade portuguesa.

E depois assistimos à produção de legislação sem que quem de direito tenha tido sequer possibilidade de se pronunciar. Isto não é saudável para a nossa democracia e não é benéfico para a bondade legislativa dos processos.

Durante este mandato, que iniciou há pouco tempo, que questões é que gostaria que o CNECV mais debatesse para ajudar a sociedade?

Uma primeira via é responder às solicitações que nos são dirigidas e podem ser dirigidas pelo Parlamento, o Governo, o Presidente da República e estamos absolutamente comprometidos em tornar os nossos processos de reflexão e recomendação mais céleres para tornarmos as nossas posições mais pertinentes no debate público.

Por outro lado, estamos também comprometidos com uma proatividade maior realizada a partir da análise das questões que são mais importantes na sociedade em determinado momento.

Estamos motivados para ter uma reflexão mais alargada no que diz respeito às ciências biológicas, isto é tomar em consideração não apenas a saúde humana, mas sua interação com a vida animal e a vida ambiental, procurando uma posição mais holística em relação às ciências biológicas.

Pretendemos ter em consideração vários aspetos que consideramos relevantes na sociedade portuguesa como todo o pós-Covid - infelizmente ainda não é verdadeiramente pós-Covid porque ainda estamos em pandemia -, mas perceber como é que a pandemia afetou alguns setores que têm de recuperar e de que forma, com que valores orientadores para essa recuperação; setores muito específicos que não têm tido a atenção que consideramos necessária, como a saúde mental.

Temos em Portugal um aumento de perturbações, algumas causadas pelo rescaldo da Covid, outras causadas pela ansiedade climática.

O mundo está a discutir as alterações climáticas na COP26. Como vê esta cimeira: com esperança ou com receio de que, como disse António Guterres, continuemos a cavar a nossa sepultura como espécie?

Sobre esta matéria, o Conselho ainda não se pronunciou e, por isso, falarei do ponto de vista pessoal. Temos de manter a esperança, porque aquilo que está em jogo é demasiado importante para não termos esperança e para não estarmos mobilizados. Estas questões da proteção ambiental e animal são fortemente consensuais, ao contrário do que acontece com os outros assuntos de que falámos.

Sendo tão consensuais como é os governantes, e a humanidade em geral, não conseguem chegar a um consenso sobre as medidas a tomar?

Porque sendo consensuais e até reconhecidamente urgentes, as estratégias dividem os vários países e os cidadãos. É necessário trabalhar ao nível político, tentando criar estímulos a atividades não poluidoras, taxar de tal forma importações de países que estejam longe da neutralidade carbónica que se desincentive esta economia que nos tem trazido a este ponto de quase não retorno.

A nível económico, precisamos de mudar os sistemas de produção, transformação, distribuição e consumo e aí todos nós estamos implicados. Já não basta uma política de reciclagem, mas precisamos de avançar para uma economia circular, que tem muito menos resíduos.

Também temos de trabalhar bastante as formas de comunicação. Como comunicar com os vários sectores produtivos e com os vários segmentos da população? Estamos a assistir a discursos inflamados, emotivos e, por vezes, também inflamatórios.

Será melhor uma hermenêutica do medo, que nos faça mudar de atitudes ou, por outro lado, poderá conduzir a atitudes mais violentas ou a situações de ansiedade e angústia que se estão a multiplicar entre os nossos jovens?

Será suficiente um discurso mais factual, baseado nos dados da ciência e, sobretudo, baseado no exemplo, mostrando o que está a acontecer no nosso planeta, como é que vidas de pessoas iguais a nós estão a ser afetadas?

Se calhar, conseguimos prescindir do discurso mais inflamado e ter uma ação mais eficaz. A ética do exemplo é a mais eficaz desde o princípio da humanidade.

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