12 fev, 2024 • Rute Agulhas *
Há um ano, sentada em frente à televisão enquanto bebia um chá quente, assisti à apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Escutei cada palavra, em total silêncio, embora nada surpreendida com os dados apresentados.
Depois de mais de duas décadas a trabalhar com situações de abuso sexual, sei que é uma problemática transversal a todos os quadrantes da sociedade, pelo que a Igreja não é exceção.
Recordo-me ainda de retirar o som ao telemóvel, recusando atender as chamadas dos jornalistas que me contatavam. Nada poderia comentar sem, antes, ler o relatório com calma e digerir o seu conteúdo. Receei também poder tirar conclusões apressadas e, por isso, durante algum tempo, remeti-me ao silêncio.
Cerca de um mês depois fui surpreendida com o convite por parte da Conferência Episcopal Portuguesa para coordenar um grupo executivo que tivesse como missão principal a escuta e o acompanhamento das vítimas.
E foi assim que tanto mudou em apenas um ano.
Mudou a visão que muitos têm da Igreja, um mundo sagrado e, por esse motivo, totalmente imune a quaisquer comportamentos abusivos.
Mudou o silêncio em que tantas vítimas viviam mergulhadas, encontrando, então, uma janela de oportunidade para ganharem coragem e revelarem a situação abusiva que vivenciaram.
Mudou a visão que a própria Igreja tinha de si mesma e dos seus membros, iniciando-se um caminho de reconhecimento da realidade e de desocultação, procurando criar uma cultura de tolerância zero à violência.
Mas muito falta ainda mudar. Diz-se com frequência que a Igreja está a fazer um caminho. E está. E, como em todos os caminhos, foram dados os primeiros passos, que se desejam ponderados e seguros.
O Grupo VITA orgulha-se de fazer parte deste processo de mudança, focado na escuta e no acolhimento, procurando reparar o passado, agir no presente e prevenir no futuro. Muito temos aprendido com todas as pessoas que nos pedem ajuda e, também, com as diversas estruturas eclesiásticas, onde sentimos a existência de uma genuína vontade em reparar os erros passados e em construir juntos uma Igreja diferente, onde se aposte num cuidado efetivo pautado pela proteção de todos.
E porque o denominador comum desde o momento em que a Comissão Independente foi criada até aos dias de hoje é a necessidade de escutar, recordo D. Tolentino Mendonça que nos alerta para a importância em saber “escutar com o coração, que mais não é que uma escuta profunda, onde todos os sentidos nos são úteis”.
*Rute Agulhas, psicóloga, perita forense e Coordenadora do Grupo VITA