Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Lídia Jorge. Se não fosse escritora seria uma "agitadora" ou "sindicalista"

21 fev, 2024 - 22:59 • Maria João Costa

A autora do multipremiado livro “Misericórdia” admite ser “irrequieta do ponto de vista cívico”, embora ache que por vezes “intervenha um bocadinho demais”. No Festival Correntes d’Escritas, Lídia Jorge falou do desgaste dos ideais do 25 de Abril que a levaram a escrever um livro.

A+ / A-

Veja também:


Numa conversa solta perante uma plateia cheia, no Festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, a escritora Lídia Jorge tomou as rédeas da sessão. Começou por assumir que é “irrequieta do ponto de vista cívico” e que deixa isso “transparecer, de facto, para os livros”.

A autora que venceu recentemente o Prémio Médicis Étranger com o livro “Misericórdia” (ed. D. Quixote) considerou que “há vasos comunicantes” entre aquilo que é a sua “preocupação concreta e real em relação à sociedade e ao mundo que estamos a viver” e a escrita.

Recordando que “já vivemos também momentos difíceis”, a autora, numa conversa moderada pelo diretor do Jornal de Letras, José Carlos Vasconcelos, assumiu, contudo, que por vezes intervém “um bocadinho demais” e “fale demais”.

Olhando para a atual situação da “nossa coletividade portuguesa e europeia”, a também conselheira de Estado lembrou que “quem muito fala, muito berra”, acrescentando que para si “a escrita é uma outra coisa, não é para intervir diretamente”.

“Eu acho que poderia fazer a mesma coisa se não escrevesse. Acho que possivelmente seria talvez agitadora ou sindicalista”, elencou a autora que nesta conversa falou também dos seus livros.

"Um punhado de gente que fez coisas lindíssimas, mas o tempo desgasta os ideais”

Dando como exemplo a obra “Os Memoráveis” (ed. D. Quixote), que escreveu nos 40 anos do 25 de Abril de 1974, Lídia Jorge diz que fez “um livro para intervir diretamente”. É, na sua opinião, um “livro que resultou de uma interpelação do mundo português”.

Considerando que a Revolução dos Cravos foi “a coisa que do ponto de vista cultural e civilizacional mais nos podemos orgulhar”, a escritora referiu que o 25 de Abril “inaugurou uma série de mudanças de regime sem efusão de sangue”.

“Achei que deveria escrever um livro com um lastro político”, diz Lídia Jorge sobre “Os Memoráveis”, que indica ter escrito “com um destinatário concreto” que foram “os mais jovens”.

A História do 25 de Abril vista página a página é comovente. Aqueles homens combinaram. Foi um punhado de gente que fez coisas lindíssimas, mas o tempo desgasta os ideais”, critica Lídia Jorge.

“Quarenta anos depois havia a ideia de que os heróis tinham envelhecido, já não serviam para nada. E eu achei que tinha que escrever um livro em que eles ressuscitassem, em que eles falassem de si, não como heróis, mas como memoráveis – os que, mesmo que errando, devem ser venerados”.

"O idoso é aquele que volta atrás e faz as perguntas fundamentais"

Falando sobre o seu último livro, “Misericórdia”, que tem somado prémios, a autora confessou algum “pudor” quando a obra surgiu. “Tinha receio, era uma homenagem justa a uma figura e a uma geração de pessoas, mas nunca imaginei que tivesse eco nas pessoas”, admitiu.

Este é um livro “de confissão pessoal, de entrega a uma memória íntima”. Dedicado à sua mãe, uma das vítimas da Covid-19 durante a pandemia, Lídia Jorge explica porque quis falar do envelhecimento no livro.

Sentiu o que diz ser uma “necessidade de criar uma espécie de justiça ontológica”. “Não fiz para mostrar os maus-tratos, fiz para mostrar que a idade acrescenta inquietação, desejo de termos um sentido. O idoso é aquele que volta atrás e faz as perguntas fundamentais. ‘Para que é que eu vivi? O jovem pergunta ‘Para que é que vou viver?’”, explicou.

Às pessoas que veem “esperança” nos seus livros, Lídia Jorge revelou que quis com “Misericórdia” mostrar como “uma parte da nossa perda, não deixa ver o que vamos adquirindo com a idade”, por isso rematou: “Eu pertença a esse grupo de pessoas que não são otimistas, mas são esperançosas”, até porque, para si, “contar uma história é um ato primordial e o “Era uma vez” é um ato fundador de vida”.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+