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Entrevista Inês Quadros

"Legislação a quente de casos mediáticos gera muita instabilidade"

21 fev, 2024 - 06:30 • Liliana Monteiro

Falta dimensão social no programa da justiça, alerta também Inês Quadros, vice-presidente da Associação dos Juristas Católicos. A Igreja, defende, pode ajudar a pôr na agenda eleitoral estas e outras preocupações.

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Que desafios Portugal enfrenta? Para responder a esta pergunta em tempo de eleições legislativas, a Renascença fez uma série de entrevistas temáticas, onde se inclui a atual entrevista a Inês Quadros, sobre justiça.

Veja aqui as restantes entrevistas:


Todos devem ter acesso à Justiça. Esta é uma ideia consensual, defende Inês Quadros, vice-presidente da Associação dos Juristas Católicos. No entanto, recorda que nem sempre isso acontece e, portanto, é preciso garantir que a defesa oficiosa é exercida com empenho, para que não haja prejuízo de defesa das pessoas que não podem pagá-la.

Quanto a alterações legislativas, defende que não devem ser feitas ao sabor dos casos mediáticos e devem ir acompanhando aquilo que é a perceção da sociedade acerca do que é justo ou injusto.

A Justiça tem entrado muito nesta campanha para as legislativas a reboque de casos mediáticos que têm surgido ligados à classe política. Esta é a melhor forma de olhar para este setor?

Parece-me que é preciso que as alterações legislativas, que são necessárias e isso é consensual entre todos os partidos, não sejam determinadas por casos concretos, todos esses casos têm especificidades e alguns são muito complicados. De cada um dos casos, não se deve retirar aquilo que deve ser a reflexão sobre uma política estável de justiça, que apele à confiança dos cidadãos e que crie a perceção, de facto, que a justiça se cumpre. Portanto, uma alteração legislativa feita a pretexto de casos mediáticos gera sempre muita instabilidade legislativa. Aquilo que já faz sentido num determinado momento pode deixar de fazer sentido num outro momento e em função dos outros casos. E, portanto, penso que o que é relevante é que haja um consenso alargado o que precisa ser melhorado.

O maior problema será aquele que tem vindo a público, o debate sobre o enriquecimento ilícito e a corrupção?

Esses são problemas relevantes e as alterações legislativas têm de ir acompanhando aquilo que é a perceção da sociedade acerca do que é justo ou injusto. Evidentemente que são questões que são muito atuais e relevantes, mas não me parece que passe necessariamente por uma alteração legislativa constante, no fundo é implementar aquilo que já existe. Nem tudo passa necessariamente por alterar a lei, seguindo no fundo, aquilo que são as emoções do momento, passa antes por alguma estabilidade legislativa.

O que lhe parece que vai faltando, tanto no debate como nos programas dos partidos nesta área da Justiça?

Os programas dos partidos assentam muito em questões que são relevantes. Por um lado, a questão da morosidade da justiça. Por outro lado, a simplificação dos processos. E são evidentemente objetivos que são positivos e, eu diria até, que poderiam constituir a base do consenso partidário.

Parece-se também importante não perder de vista quem são as partes no processo, reforçar aquilo que é o cuidado com os sujeitos processuais, com os arguidos e em particular, a atenção com os mais frágeis e os mais pobres, aqueles que têm maior dificuldade em aceder a justiça e têm menos meios. Falta identificar quais são as medidas que podem cumprir este papel e contribuir para corrigir desigualdades e permitir o acesso à justiça a todos.

Falta nos programas esclarecer melhor aquilo que, por exemplo, alguns dizem que é a aposta na reintegração e ressocialização de reclusos, aposta no trabalho comunitário, a necessidade de um parque penitenciário com condições mais dignas. São chavões que vão surgindo e que precisam de mais ideias concretas?

Falta também essa dimensão, parece-me que sim. Haveria que apostar, de facto, numa reabilitação dos arguidos, dos condenados pela prática de crimes, para que como diz o Papa Francisco, nunca lhes seja retirado o direito à esperança. No fundo, que possam vir a reintegrar a sociedade e o façam de forma digna. Isso vale não só para o período em que estão presos, como também pela possibilidade de virem depois a serem inteiramente reabilitados socialmente e, portanto, poderem reiniciar a sua vida e integrar-se plenamente na sociedade, trabalhando, contribuindo, como todas as outras pessoas, para a sociedade.

Considera que no fundo há uma maior concentração de ideias na punição e no crime do que nesta questão da reabilitação e daquilo que acontecerá à pessoa depois?

Sim, daquilo que me pareceu numa leitura dos programas eleitorais, falava-se muito da organização judiciária, alterações legislativas em matéria de processo. Fala-se também, nalguns casos, das penas do agravamento das penas para determinados crimes. Mas, de facto, fala-se menos talvez desta dimensão da reintegração que é uma componente essencial não só para a prevenção específica de futuros crimes, como também para uma sociedade que assenta na esperança e na possibilidade de reabilitação de todas as pessoas, tal como diz o Papa Francisco não matar a esperança. Isso é uma dimensão que deveria ser assumida de forma prioritária também nos programas eleitorais.

Haveria que apostar, de facto, numa reabilitação dos arguidos, dos condenados pela prática de crimes, para que como diz o Papa Francisco, nunca lhes seja retirado o direito à esperança. No fundo, que possam vir a reintegrar a sociedade e o façam de forma digna.

A doutrina da Igreja fala nos ‘direitos dos pequenos e dos mais pobres’. Sente isso presente nos programas eleitorais e no que tem visto nos debates que não abordam o problema do apoio judiciário?

É uma ideia consensual que todos devem ter acesso à Justiça. Mas de facto, sabemos que muitas vezes, isso nem sempre sucede e, portanto, que era preciso garantir que a defesa oficiosa ou o patrocínio judiciário é exercido com o mesmo empenho, no fundo, que toda a defesa justamente para garantir que não há uma um prejuízo, uma desigualdade para os meios de defesa das pessoas que não podem pagá-la.

É uma questão de credibilidade da Justiça, para que o cidadão não fique com a impressão de que há uma justiça dos mais ricos e outra para os outros.

E porque é que considera que, por exemplo, o sistema de apoio judiciário que diz respeito a um número cada vez mais alargado de pessoas, é um tema que vai ficando de fora e que não se ouve falar?

Há um problema, o fator económico. Havendo poucos recursos, o alargamento sucessivo do patrocínio judiciário exigiria um esforço financeiro significativo da parte do Estado. Mas as condições de acesso ao apoio judiciário não têm sido alteradas e há cada vez mais pessoas em circunstâncias de precisarem desse apoio, desse patrocínio judiciário. É um tema que entra no âmbito também da justiça social. Pode ser por isso, mas também pode ser pelo facto de estar longe da agenda mediática. Aquilo que se ouve falar na Justiça não são estas questões. Mas parece-me que esta é uma dimensão que não pode estar escondida, ou esquecida, no âmbito da campanha.

Que papel ou que contributo considera que a Igreja Católica deve e poderia dar nesta campanha?

Julgo que a Igreja, no fundo, através da sua missão evangelizadora, tem de estar sempre ao lado dos mais fracos, portanto, há aqui uma dimensão importante de chamar a atenção para algumas situações. Uma justiça que funcione, que garanta a paz social, que garanta a eliminação das desigualdades, é uma justiça que serve também o propósito mais amplo da justiça social.

A Igreja pode e deve anunciar aquilo que são as exigências da verdade, a dignidade da pessoa, do bem comum. Deve ser também uma voz de esperança para todos e é nessa medida que a Igreja pode ajudar a pôr na agenda eleitoral todas estas preocupações.

Por exemplo, com uma Conferência Episcopal mais interventiva, chamando publicamente a atenção para alguns dos temas, obrigando a colocá-los na agenda?

Penso que é inegável o papel da Igreja nas estruturas sociais e, portanto, parece-me que a Igreja não deve ficar arredada desta discussão e deve ter uma voz ativa, podendo contribuir com a sua missão própria, o seu conhecimento próprio de estar junto dos mais desfavorecidos e poder de forma totalmente aberta, pública, não apenas através da missão evangelizadora dos sacerdotes nas suas paróquias, manifestar a sua preocupação com estes e outros temas.

Os debates têm sido esclarecedores? Fica esclarecida?

Cumprem uma função importante que é fazer ouvir. Mais do que servir para revelar aquilo que são as propostas de cada partido servem para evidenciar aquilo que são as diferenças entre cada um.

Mas é importante, além dos debates, saber, e às vezes isso é um pouco esquecido, aquilo que é possível construir em conjunto.

As futuras uniões /pactos que podem resultar no cenário pós-eleitoral fazem apenas sentido de mãos dadas com o setor social e a Igreja?

Parece-me que sim. É evidente que a Igreja tem um papel determinante na sociedade e na justiça social, faz parte das instituições que estão próximas das pessoas e conhece bem as suas necessidades. Estas instituições podem ser parceiros ou devem ser tomadas como parceiros prioritários.

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