A guerra de 3 dias faz 2 anos e Putin pode aguentá-la por mais dois ou três aniversários

Mobilização de tropas e falta de armamento são os principais problemas de Kiev que, depois de uma ofensiva sem sucesso, tenta manter a linha da frente. Analistas alertam que o próximo ano será duro.

24 fev, 2024 - 11:30 • Ana Kotowicz



Zelensky no dia do segundo aniversário da guerra na Ucrânia Foto: Benoit Doppagne/Reuters
Zelensky no dia do segundo aniversário da guerra na Ucrânia Foto: Benoit Doppagne/Reuters

Vladimir Putin pode esperar. No Grande Palácio do Kremlin, onde decidiu dar início à sua “operação militar especial” sobre a Ucrânia, o Presidente russo sabe aquilo que tem do seu lado: o tempo, os números e as armas. Depois de ter sido ridicularizado de todas as vezes que Kiev tomou a dianteira na guerra - afinal o poderio militar da Rússia só é batido pelo dos EUA -, Putin pode agora esboçar um sorriso. Não porque a Ucrânia esteja a perder a batalha, mas porque não está a ganhá-la. E no dia em que se completam dois anos de guerra, Volodymyr Zelensky tem problemas de sobra para resolver: faltam-lhe militares no campo de batalha, as munições estão a escassear, e o apoio dos aliados teima em não chegar. Além disso, a aprovação do Presidente ucraniano caiu para os 60%, quando já foi de 90%.

O próximo ano, defendem os analistas internacionais ouvidos pela Renascença, vai ser difícil. Para não sucumbir à Rússia, Kiev terá de conseguir manter a linha da batalha, numa altura em que as munições e armamento que chegam do Ocidente são metade do necessário. Para conseguir mais homens no terreno, Zelensky terá de tomar medidas impopulares, que não lhe agradam e que levaram à rutura com Valeriy Zaluzhny, demitido de comandante das Forças Armadas no início de fevereiro. E, para garantir legitimidade, o Presidente terá de começar a falar de eleições, mesmo que não possa convocá-las enquanto a Ucrânia estiver sob a lei marcial.

A Rússia não tem nenhum destes problemas: a mobilização não pára, mesmo que quem vá para a linha da frente não sejam soldados treinados, o inventário de armamento mantém-se estável e, apesar das sanções e de uma queda no PIB, a economia não entrou em colapso. Putin será reeleito em março, sem qualquer margem para dúvidas, enquanto quem lhe faz oposição (mais ou menos direta) morre, como aconteceu com Yevgeny Prigozhin, o criador do grupo Wagner, e, agora, com Alexei Navalny, o seu principal opositor político. A teoria de assassinatos foi rejeitada, em ambos os casos, pelo Kremlin.

Ponto de viragem? Na Rússia acredita-se que sim

“Os russos com quem falo acreditam que este pode ser um ponto de viragem na guerra”, diz à Renascença Oleg Ignatov, analista sénior para a Rússia do Crisis Group, think tank que realizou há poucos dias um debate sobre os dois anos do conflito.

"Os ânimos estão a mudar. A Ucrânia acaba de perder uma cidade importante, Avdiivka, e depois de uma batalha intensa desde outubro, foi preciso retirar da cidade. É algo que é muito lamentado em todo o país, embora também exista um consenso na sociedade de que era necessário não sacrificar mais pessoas”, diz Simon Schlegel

No início do verão, recorda o analista russo “todos pensavam que a Ucrânia tinha possibilidades de romper as linhas de defesa russas e de atingir alguns objetivos no sul da Ucrânia, de libertar alguns territórios”, mas não aconteceu. “Vemos que a contraofensiva ucraniana falhou”, sublinha Oleg Ignatov. No entanto, ao longo dos mais de 700 dias de guerra, não faltaram reviravoltas no enredo da guerra.

“Em março de 2022 o plano russo falhou, houve um ponto de viragem. Depois os russos tomaram Lugansk, no verão de 2022. Outro ponto de viragem. A seguir, a libertação da região de Kharkov pela Ucrânia, em setembro de 2022, foi outro ponto de viragem. Agora, a contraofensiva ucraniana falhou e estamos no meio da ofensiva russa”, diz Ignatov.

O analista, que trocou Moscovo por Bruxelas depois do início da guerra, conta que os russos acreditam que a Ucrânia está agora numa situação em que não será capaz de acumular reservas e libertar mais territórios. “Não só por causa dos problemas com o apoio do Ocidente, não só porque a Europa não produz munições suficientes, mas porque a Ucrânia tem possibilidades limitadas de conduzir a mobilização dentro do país”, explica Oleg Ignatov.

Esta ideia de que a Rússia pode prolongar a guerra por bastante tempo, é sustentada por dois relatórios lançados em fevereiro.

“Apesar de perder, em média, centenas de veículos blindados e de peças de artilharia por mês, a Rússia tem conseguido manter estáveis os números de inventário ativo”, diz-nos o relatório do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS). Segundo aquele think tank, a Rússia pode “sustentar o seu ataque à Ucrânia por mais dois ou três anos, e talvez até mais”.


Os ucranianos retiraram de Avdiivka  Foto: Agência Anadolu/Reuters
Os ucranianos retiraram de Avdiivka Foto: Agência Anadolu/Reuters

Já o Royal United Services Institute (RUSI), outro grupo de reflexão, tem a sua própria análise sobre o tema: “A Rússia ainda mantém o objectivo estratégico de subjugar a Ucrânia e agora acredita que está a vencer.”

Avdiivka foi um golpe no ânimo dos ucranianos

Simon Schlegel está em Kiev. É também analista sénior do Crisis Group, com a pasta da Ucrânia. No terreno, sente que o espírito dos ucranianos mudou, mas não foi quebrado.

“Os ânimos estão a mudar. A Ucrânia acaba de perder uma cidade importante, Avdiivka, e depois de uma batalha intensa desde outubro, foi preciso retirar da cidade. É algo que é muito lamentado em todo o país, embora também exista um consenso na sociedade de que era necessário não sacrificar mais pessoas”, diz Simon Schlegel.

A decisão foi tomada por Oleksandr Syrsky, o homem que sucedeu ao general Zaluzhny no comando das Forças Armadas, e que, recorda o analista alemão, tinha sido muito criticado por ter mantido tropas em Bakhmut, a cidade que ficou conhecida como a trituradora de homens, tal foi a carnificina dos dois lados. “Foi criticado por ter sacrificado muitas vidas. E agora este é um sinal claro de que é preciso ter mais cuidado”, acrescenta Simon Schlegel.

Apesar dos problemas, não vê na Ucrânia vontade de deixar de lutar ou ceder territórios à Rússia. “Podem desperdiçar mais dois anos de recursos, que a Ucrânia continuará a existir e continuará a resistir. Penso que é essa a mensagem que a Ucrânia quer enviar agora, uma mensagem de resistência, de resiliência.”

O problema da mobilização e os custos diretos para Zelensky

Na Ucrânia, a dificuldade em conduzir a mobilização é um problema complexo. “O problema é também a vontade política”, argumenta Oleg Ignatov.

“Zelensky está muito relutante em mobilizar mais soldados. Foi isso que Zaluzhny lhe pediu. Ele parece não querer fazê-lo, mas, mais cedo ou mais tarde, terá de o fazer, porque há uma verdadeira escassez não só de soldados, mas de soldados treinados que possam lutar no campo de batalha”, acrescenta o analista. É que no papel, diz Ignatov, pode haver um milhão de soldados, mas apenas 300 mil com condições de participar numa batalha real.

“A Rússia tem uma clara vantagem em termos de número de tropas treinadas”, argumenta Oleg Ignatov. “Não me lembro se é a primeira vez que isto acontece, mas diria que sim. A Ucrânia teve sempre uma vantagem em termos de pessoal porque os russos usaram um número limitado de tropas, especialmente no início da guerra. E tentaram atingir os seus objetivos com esse número limitado. Mas agora vemos que a Rússia tem uma vantagem em militares colocados na linha da frente. Em Avdiivka, os russos tinham uma vantagem de 1 para 7.”

Na Rússia, a mobilização está sempre em curso. “Usam-se diferentes soluções paliativas, por exemplo, diz-se a uma determinada região que tem de arranjar mil soldados em três meses. As autoridades locais procuram criminosos, homens solteiros, alcoólicos, aventureiros, ou pessoas que trabalham na dependência das autoridades municipais ou estatais e apelam ao patriotismo. Tentam apanhar o maior número de pessoas e funciona”, explica Ignatov.

O problema da mobilização é uma dor de cabeça real para Zelensky e que é discutida na sociedade ucraniana. “A mobilização é um problema enorme, aqui é muito discutida, e o governo está a tentar reformar o sistema, baixando a idade de mobilização, e dando mais escolha às pessoas que se apresentam voluntariamente sobre onde combater e em que unidade combater”, explica Simon Schlegel.

As mudanças não devem ficar por aqui. “Provavelmente serão acompanhadas de algumas medidas coercivas, muito impopulares, como o congelamento das contas bancárias de quem não se apresenta nos serviços de recrutamento. É uma medida altamente controversa e impopular, mas torna-se necessária, porque muitos soldados precisam de ser substituídos, não só porque estão feridos, porque muitos morreram, mas também porque os que se mantêm no terreno estão exaustos”, acrescenta Schlegel.

Este, acrescenta, foi um ponto de discórdia entre Zelensky e Zaluzhny, que queria mobilizar meio milhão de homens. “O número foi rejeitado pelo governo, mas penso que o general Oleksandr Syrsky também pedirá mais soldados do que aqueles que o governo lhe pode dar”, afirma o analista.

As armas e a ajuda ocidental que tarda em chegar

A 13 de fevereiro, o senado dos Estados Unidos aprovou um novo pacote financeiro para enviar à Ucrânia: cerca de 61 mil milhões de dólares (56 mil milhões de euros). Mas a ajuda de que Zelensky desesperadamente precisa deverá ser travada pela Câmara dos Representantes, onde o Partido Republicano tem maioria, e onde a estratégia eleitoral de Donald Trump fala mais alto.



Bakhmut tornou-se conhecida como a trituradora de homens, devido às elevadas baixas que aconteceram na cidade Foto: George Ivanchenko/EPA
Bakhmut tornou-se conhecida como a trituradora de homens, devido às elevadas baixas que aconteceram na cidade Foto: George Ivanchenko/EPA

Dias antes, na Europa, a Hungria deixou cair o seu veto e os líderes da União Europeia aprovaram um pacote de apoio adicional de 50 mil milhões de euros para a Ucrânia - 33 mil milhões em empréstimos até 2027, e 17 mil milhões em subsídios a fundo perdido.

Tanto num caso como noutro, as discussões que se resolviam facilmente no início da guerra, agora demoram a travar. E isso tem consequências no campo de batalha,

“Os ucranianos adotaram uma postura defensiva porque não têm munições suficientes para ripostar. E agora a ajuda ocidental tornou-se muito lenta e as instalações de produção europeias não têm, de momento, capacidade para produzir a munição de artilharia necessária. A Ucrânia só recebe metade do que precisa”, argumenta Simon Schlegel.

Assim, se os norte-americanos não avançarem, Kiev terá problemas graves. “Isso dá aos russos uma superioridade de fogo, de um para cinco ou de um para sete, nalguns casos. Têm muita munição e podem voltar à táctica de guerra de atrito e esmagar os ucranianos das suas posições”, diz o analista. Apesar disso, recorda que Kiev tem apostado em ataque novos ou inesperados, e em grandes alvos russos: “Afundaram dois navios no Mar Negro e abateram cinco aviões.”

Embora, nesse campo, esteja a ser bem sucedida, “este ano a Ucrânia terá grandes dificuldades em manter a linha da frente com a quantidade de munições de que dispõe”, apesar da produção intensiva de drones no país.

Schlegel lembra ainda o acordo de 10 anos assinado com a Alemanha e com a França, e algo semelhante com o Reino Unido. “Há sinais de que alguns parceiros ocidentais estão a preparar-se para o longo prazo, estão cientes de que a Ucrânia necessitará de assistência em matéria de segurança durante 10 anos. O pacote da União Europeia de 50 mil milhões de euros é para quatro anos.”

Nos Estados Unidos, Vikram Mittal, professor da Academia Militar de West Point e especialista em sistemas de defesa, deixa uma ideia de esperança. “A Ucrânia está a construir a sua base industrial de defesa, o que lhe poderá permitir continuar a lutar, com ou sem ajuda do exterior. Está a concentrar-se fortemente nos drones e na guerra eletrónica, e espera que o seu sector comercial possa impulsionar novas inovações”, diz à Renascença.

Mesmo que a ajuda chegue, Oleg Ignatov é mais cético. “Claro que a situação melhora se a Ucrânia receber o apoio dos EUA, mas vão continuar a ter problemas com as tropas. Alguns analistas ocidentais dizem que a Ucrânia é capaz de manter a linha da frente, vamos ver.”

Por outro lado, diz em voz alta aquilo que muitos recusam dizer: “A assistência dos EUA é crítica. A questão é saber se a Europa pode compensar essa ausência de apoio. Essa é a grande questão. Ninguém quer reconhecer que não é possível. Os europeus continuam a dizer que é possível ou, pelo menos, que é possível ajudar a Ucrânia a defender os seus territórios. Isso não é o mesmo que conduzir uma operação ofensiva, mas veremos”, sublinha Oleg Ignatov. Na sua opinião, sem a ajuda ocidental, “a Ucrânia e a linha de defesa podem entrar em colapso ainda este ano”.

Além disso, argumenta, a Ucrânia não tem capacidade de produzir armamento suficiente dentro do país e não produz munição para a artilharia, ponto-chave desta guerra. “Sem o Ocidente, não é possível desenvolver um conflito de larga escala na Ucrânia, porque a Rússia atacaria pelo ar. Sim, a Ucrânia tem uma defesa aérea muito boa, mas será difícil proteger tudo e é um grande risco para uma empresa ocidental instalar qualquer produção num país que está sob ataques aéreos.”


General Zaluzhny foi afastado do comando das Forças Armadas Foto: Oleg Petrasyuk/EPA
General Zaluzhny foi afastado do comando das Forças Armadas Foto: Oleg Petrasyuk/EPA

Na opinião do analista russo, não basta sequer que a ajuda continue a chegar, ela tem de ser aumentada. “A Ucrânia precisa de mais para entrar na trajetória da vitória. Precisa de mais para libertar os seus territórios. A ajuda enviada talvez ajude a Ucrânia a defender-se, mas não será suficiente para se libertar.” E é com isso que a Rússia está a contar, argumenta Ignatov, e é nisso que baseia a sua estratégia.

Rússia acredita que negociações serão nos seus termos

Tal como a 24 de fevereiro de 2022, dois anos depois, os objetivos de Putin e Zelensky não coincidem. O Presidente da Rússia quer ter tanto território ocupado quanto possível para poder partir para negociações numa posição de força, e o Presidente da Ucrânia quer recuperar todos os territórios ocupados - Crimeia incluída, anexada em 2014.

Ter Putin e Zelensky à mesa, negociando quais os territórios que ficam para quem, continua a ser uma miragem.

“É importante para os ucranianos passar a mensagem de que, mesmo que recuem, já o fizeram antes e depois recuperaram o território. Passaram por momentos em que ninguém acreditava que iriam sobreviver”, afirma Simon Schlegel. “A principal mensagem? ‘Já fomos subestimados antes. Passámos por tempos difíceis, chegámos tão longe, travámos os russos. Agora não é a altura certa para desistir e iniciar negociações a partir de uma posição fraca.’”

“O que a Rússia diz agora é que, mais cedo ou mais tarde, a guerra acabará em negociações e elas serão feitas nos seus termos. E se Zelensky diz que o objetivo é libertar todos os seus territórios, Putin responde que não é possível ganhar esta guerra contra a Rússia. Será necessário negociar. E ele diz: ‘Terão de negociar comigo, com Putin, com mais ninguém.’”, diz Oleg Ignatov

Além disso, os ucranianos vão insistir junto dos parceiros: “A ideia é: ‘Vamos tentar mais ajuda militar, vamos tentar mudar a dinâmica da guerra e iniciar as negociações a partir de uma posição forte.’ Se a Ucrânia conseguir convencer os parceiros ocidentais, isso será importante”, conclui Schlegel, assumindo que 2024 “será um ano muito difícil para Kiev”.

A este ponto, acrescenta outro. Com a popularidade em queda, e apesar dos impedimentos atuais, Zelensky tem de mostrar, num futuro próximo, que está disposto a falar de eleições e a lançar as bases para que elas se possam realizar.

Quanto ao eventual fim da guerra, fosse qual fosse o acordo, isso não afastaria a Rússia (geograficamente) da Ucrânia, nem tiraria Putin do poder.

“Seria muito mais tranquilo se a guerra terminasse com alguma garantia de segurança por parte dos russos, embora já o tenham feito antes com o memorando de Budapeste. E não o cumpriram. É por isso que os ucranianos querem estar na NATO. É a sua melhor apólice de seguro. Depois de ganhar ou perder esta guerra, a Rússia continua a ser um vizinho poderoso e potencialmente imprevisível”, diz o analista.

Também por isso, a Ucrânia não quer ser neutra. “O maior pedido, se a Ucrânia entrasse agora em negociações com a Rússia, seria para adotar um estatuto de neutralidade na sua constituição, e não poderia aceitar mais ajuda militar ocidental. Isso permitiria à Rússia construir a sua máquina militar para ser muito mais forte, e depois tentar novamente conquistar a Ucrânia, que seria constitucionalmente obrigada a não aderir à NATO e a não aceitar ajuda ocidental. É disso que os ucranianos têm realmente medo.”

Para os russos, explica Oleg Ignatov, a estratégia da Ucrânia não está a funcionar, já que é difícil, neste momento, defender-se e impossível libertar-se.

“O que a Rússia diz agora é que, mais cedo ou mais tarde, a guerra acabará em negociações e elas serão feitas nos seus termos. E se Zelensky diz que o objetivo é libertar todos os seus territórios, Putin responde que não é possível ganhar esta guerra contra a Rússia. Será necessário negociar. E ele diz: ‘Terão de negociar comigo, com Putin, com mais ninguém.’”

Portanto, Putin pode esperar. “Ele acredita que pode esperar. Na Ucrânia há a ideia de que vão mobilizar e treinar pessoas em 2024, que vão manter a linha, e, em 2025, haverá mais tropas, mais munições, e o regresso às operações ofensivas. Mas não sei se a Ucrânia tem este ano. É esse o problema”, defende Oleg Ignatov. “A questão é este ano, e não se chegam a 2025.”


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