Voto antecipado e abstenção

"É suposto que a incerteza possa ser um incentivo para as pessoas votarem"

29 fev, 2024 - 18:07 • José Pedro Frazão

O politólogo João Cancela admite que os eleitores que votam antecipadamente em mobilidade não fazem parte do lote de indecisos, mas reconhece que faltam dados para tirar conclusões. A sucessão de eleições e as distorções de proporcionalidade entre círculos eleitorais podem afetar a participação eleitoral.

A+ / A-

Veja também:


O número de eleitores a votar antecipadamente em mobilidade tem vindo a subir de eleição para eleição, chegando ao recorde de cerca de 285 mil eleitores nas legislativas de 2022. No entanto, pouco se sabe sobre o perfil deste tipo de eleitor, reconhece João Cancela, politólogo da Universidade Nova, ele próprio deslocado temporariamente no estrangeiro e "obrigado" a votar antes de 10 de março.

O investigador da Universidade Nova admite que existem riscos ao antecipar o voto e criar cada vez mais uma eleição em vários dias, apesar de responder às preocupações sobre a abstenção e à logística das pessoas. Já a participação global pode variar devido à incerteza em relação aos resultados eleitorais.

Estas eleições poderão trazer fatores diferentes para a dinâmica da abstenção?

De acordo com a literatura académica, há fatores que podem ter potenciais efeitos contraditórios. Sabemos que a realização de muitas eleições num curto intervalo de tempo gera um certo efeito de saturação junto dos eleitores. Votar transforma-se numa rotina, numa coisa que é pedida muitas vezes às pessoas e que geralmente não surte efeito.

Sabemos, pela investigação comparada, que é mais frequente as pessoas irem votar quando as eleições são vistas como uma circunstância mais rara, do que propriamente numa grande repetição de eleições. Esse fator poderia levar a crer que haveria menos participação em relação ao que aconteceu há dois anos.

Por outro lado, estas eleições têm um contexto de incerteza muito vincado, o que já tem acontecido também em outras eleições passadas recentes. É difícil estabelecer relações de causalidade aqui, mas a verdade é que a participação até subiu ligeiramente dentro do território português nas últimas eleições.

A incerteza pode transformar-se em menor abstenção?

É suposto que a incerteza possa funcionar, pelo menos, como um incentivo a que as pessoas vão votar. As pessoas sentem que alguma coisa está em jogo e que o resultado está longe de estar definido à partida, uma vez que não há uma probabilidade muito clara de haver uma maioria clara de nenhum dos lados. Isso pode ter um efeito de aumento das tentativas de mobilização dos partidos. Também os próprios eleitores, independentemente da mobilização dos partidos, podem sentir que o seu voto pode ajudar a fazer a diferença para um lado ou para o outro.

Por outro lado, há várias décadas que não havia esta circunstância de haver um partido que se aproximasse tanto dos dois maiores partidos. Isso pode produzir uma camada de incerteza adicional na disputa da eleição. Não estou a garantir que isso tem um efeito, com mais pessoas a participar por causa disso, mas pelo menos é plausível que possa gerar um efeito de participação.

"É suposto que a incerteza possa funcionar, pelo menos, como um incentivo a que as pessoas vão votar"

O que se sabe sobre o perfil do abstencionista em Portugal?

Existem alguns estudos e é um tema já bastante consolidado na literatura. Sabemos que, tipicamente, as pessoas mais velhas votam mais em Portugal. As pessoas mais jovens votam bastante menos. Pessoas com níveis de instrução mais elevados tendem a votar mais em relação a pessoas menos instruídas. Em média, as pessoas mais velhas são menos instruídas do que as mais jovens, mas há diferenças dentro de cada escalão etário. Não há diferenças muito significativas entre homens e mulheres, pelo menos nesta fase.

Os valores oficiais apontam para níveis mais elevados de participação, sobretudo nas zonas urbanas, em comparação com rurais, ou seja, nos círculos eleitorais com mais deputados, embora a questão da abstenção técnica possa complicar um pouco.

Sabemos que há muitas pessoas em Portugal que, em comparação com outros países, não se identificam taxativamente com nenhum dos partidos presentes no "menu" que as pessoas têm à disposição para escolher. Há uma explicação clássica que diz que as pessoas menos envolvidas politicamente também têm menos predisposição a apoiar partidos políticos. Há uma relação clara entre a participação e o nível de interesse em relação à política e de satisfação em relação ao funcionamento das instituições.

Os candidatos vistos de fora, da Arábia ao Reino Unido. “Não aquecem nem arrefecem”
Os candidatos vistos de fora, da Arábia ao Reino Unido. “Não aquecem nem arrefecem”

Algo interessante para ser estudado nos próximos tempos é saber até que ponto a fração de votos no Chega deve-se não tanto à transferência de votos de outros partidos, mas a pessoas que tinham um perfil tipicamente abstencionista.

Conhecendo as bases eleitorais do Chega - forte sobretudo entre homens mais jovens, sem educação superior, residentes em zonas periféricas – não tendo dados que permitam comprovar isto taxativamente, é plausível pensar que algumas pessoas que tendiam a abster-se em eleições passadas poderão agora canalizar o seu voto para o Chega. Isto pode ser um fator que conduza a uma potencial redução da abstenção.

O aumento do número de partidos com representação parlamentar não pode fazer diminuir a abstenção?

Não há uma ligação clara entre maior fragmentação partidária e maior abstenção. Há vários estudos que, pelo contrário, mostram que quando há mais escolhas viáveis – ou seja, mais partidos com possibilidade de eleger e conseguir resultados razoáveis - aumenta a participação. Em vários contextos e noutros países, os sistemas eleitorais mais proporcionais são os que geram maior incentivo à participação. Num caso como o português, apesar de termos um sistema de representação proporcional, o número de deputados que é eleito por cada círculo é muito variável, entre os dois mandatos e praticamente 50, como no caso de Lisboa. Isto leva a que as pessoas tenham incentivos distintos para participar.

Sabemos que, tipicamente, os círculos eleitorais onde mais facilmente o voto se converterá em representação política [geram] um incentivo à participação. Essa expansão do espectro de alternativas ao dispor das pessoas tende a ser vista na literatura académica como um fator de aumento da participação.

"há muitas pessoas em Portugal que, em comparação com outros países, não se identificam taxativamente com nenhum dos partidos"

Há um fenómeno eleitoral relevante em Portugal – o voto antecipado tem tido participações de 300 mil pessoas, uma semana antes da data das eleições. É muita gente, para mais em pleno dia de campanha. O que sabemos sobre o perfil das pessoas que o fazem?

Ainda não sabemos qual é o perfil deste tipo de pessoas que tendem a votar mais cedo. Vamos supor que são pessoas que, por algum motivo, já tem o seu voto completamente decidido e que são até as pessoas mais envolvidas e politicamente mais ativas, que sabem à partida em que lista ou partido vão votar.

Nesse sentido, não faz muita diferença se elas votam uma semana antes ou depois, porque o seu sentido de voto já estará pré-determinado. É possível que estas medidas de facilitação do voto e de expansão do número de dias em que se pode votar sejam muitas vezes usadas sobretudo por pessoas que já votariam de qualquer forma. Não constituem tanto uma expansão do corpo de eleitores, embora isso seja desejável. Não é de descartar a hipótese de que as pessoas que votam mais cedo dificilmente mudariam o seu sentido de voto se votassem no dia da eleição “clássica”.

Em todo o caso, trata-se de uma decisão que as pessoas tomam quando já têm bastantes elementos. Os debates já foram, já houve bastante discussão nos meios de comunicação. É uma realidade a que nos estamos a habituar, em que há uma parte significativa das pessoas que toma a sua decisão antes, tal como os eleitores residentes no estrangeiro ou que estejam deslocados.

No meu caso, estou a trabalhar fora de Portugal, temporariamente, numa universidade e exerço o meu direito de voto 10 a 12 dias antes da eleição.

Que impactos pode ter a consolidação na prática de um esquema de votação em dois dias em Portugal?

Há aqui uma tentativa de equilíbrio que é preciso ter. Na verdade, em sistemas como nos Estados Unidos da América, por exemplo, há muitas eleições que começam a ser realizadas semanas a fio antes do dia final e essas questões colocam-se com mais premência.

No enquadramento português, tal como está atualmente desenhado, procura-se dar resposta a um problema sinalizado como importante, que era o afastamento entre as pessoas e as eleições. Chegou-se a este ponto de compromisso em que há alguma antecipação do voto, que necessariamente acarreta riscos, mas que, por outro lado, oferece ainda vantagens práticas e de ordem logística a muitas pessoas.

Percebo que, para o nosso entendimento tradicional da campanha como momento esclarecedor, possa "ferir" de alguma maneira essa versão de como as coisas deviam ser.

Sabemos que há uma porção muito grande de pessoas que toma a sua decisão antes da campanha, que se identifica com um partido, que o apoia e que irá votar de qualquer forma, aconteça o que acontecer.

Está por provar ainda – e não temos dados que nos permitam dizer isso - quem é que são, afinal, estas pessoas que votam mais cedo. O meu palpite de partida - não tendo tido acesso a dados - é que são pessoas que estão, de alguma forma, já com uma opção de voto cristalizada, bem definida e que seria difícil mudar nesses últimos dias de campanha. Mas admito estar errado.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+