Entrevista André Costa Jorge

Migrações: “As pessoas recorrem a esquemas ilegais porque, muitas vezes, não têm outra alternativa”

26 fev, 2024 - 06:30 • Ana Catarina André

O diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados lembra que os imigrantes não são um peso para a Segurança Social ou uma ameaça à segurança nacional e considera que os programas eleitorais dos diferentes partidos não são claros em temas como o acesso de estrangeiros aos consulados portugueses

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Que desafios Portugal enfrenta? Para responder a esta pergunta em tempo de eleições legislativas, a Renascença fez uma série de entrevistas temáticas, onde se inclui a atual entrevista a André Costa Jorge sobre migrações.

Veja aqui as restantes entrevistas:


A duas semanas das legislativas, André Costa Jorge, o diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados, apela a que os cidadãos formem opinião com base naquilo que dizem os partidos, e “não em desinformação ou em narrativas que acabam por instrumentalizar os imigrantes e os refugiados”.

Em entrevista à Renascença, Costa Jorge diz ainda que que, apesar de Portugal ser um dos países europeus com menos pedidos de asilo, não tem capacidade de resposta para os que procuram viver e trabalhar no País.

Aproximamo-nos das eleições legislativas. Os diferentes partidos assumem, nos respetivos programas, a necessidade de Portugal acolher imigrantes. Olhando para essas propostas, parece-lhe que da esquerda à direita contemplam as respostas necessárias?

O tema das migrações devia ter sido mais debatido e aprofundado nos debates. Os programas dos partidos políticos, pelo menos daqueles que estão hoje presentes na Assembleia da República, contemplam alguma coisa sobre migrações. No entanto, identificámos questões estruturantes que dividem as posições políticas, nomeadamente, por exemplo, a questão europeia. Tentámos perceber quem é a favor e contra o novo Pacto para as Migrações, qual é a perspetiva sobre a questão das migrações regulares ou irregulares, as qualificações dos migrantes. Entendemos que esta é uma matéria muito importante e, por isso, vamos lançar em breve um documento com todas as propostas.

A quem se refere: à JRS ou à Plataforma de Apoio aos Refugiados?

À JRS. Deixe-me ainda dizer que entendemos que deve haver um equilíbrio entre as preocupações securitárias e humanitárias. Esta é uma dimensão que divide o modo como os partidos políticos olham para as migrações: uns claramente olhando mais para questões securitárias e outros para questões mais humanitárias. Por um lado, é verdade que, por exemplo, as migrações irregulares são socialmente mais frágeis, isto é, as pessoas estão mais desprotegidas. Por outro lado, criminalizar as migrações irregulares é, na nossa perspetiva, um passo atrás do ponto de vista civilizacional, da democracia e dos direitos humanos. Entendemos que deve haver um cuidado particular, por parte dos partidos políticos, na forma como abordam a matéria das migrações. Entendemos também que os cidadãos devem formar a sua opinião política com base naquilo que dizem os partidos, e não com base em desinformação ou em narrativas que acabam por instrumentalizar os imigrantes e os refugiados.

A que se refere exatamente?

Não é verdade, por exemplo, que os imigrantes sejam um peso para a Segurança Social. Segundo dados do Observatório das Migrações, por cada euro que os imigrantes recebem em apoios, pagam sete euros em contribuições. Também não é verdade, por exemplo, que os imigrantes sejam uma ameaça à segurança nacional. Não há qualquer base factual para este tipo de afirmações. Ao longo da última década, por exemplo, tem diminuído a percentagem de cidadãos estrangeiros no sistema prisional. Aliás, muito recentemente, o coordenador da investigação criminal da Unidade contra o Terrorismo da Polícia Judiciária afirmou ao DN que 99% dos imigrantes vêm por bem. Comparando com a população nacional, não sei se atingimos este valor.

Voltando ainda atrás, considera ou não que os programas dos partidos contemplam as respostas necessárias?

Nem todos, e sobretudo, nem todos da mesma maneira. Todos os anos lançamos o Livro Branco das Migrações, e no último indicámos seis pontos que nos parecem fundamentais. A partir dessas seis dimensões, olhámos para os programas eleitorais e lançámos perguntas a todos os partidos. Primeiro ponto: a promoção de vias legais e seguras, que, na nossa perspetiva, é a única forma de combater eficazmente o tráfico e os sistemas ilegais de mobilidade humana. Apesar das alterações legislativas recentes, há um conjunto de desafios que decorre da fraca capacidade de resposta da rede consular portuguesa. É a partir da rede consular portuguesa que é possível promover um processo legal e seguro de migrações. Como é que os partidos políticos pensam superar as dificuldades de acesso aos consulados portugueses? É uma pergunta que não conseguimos descortinar de forma objetiva em nenhum dos programas. Se queremos que as pessoas recorram aos mecanismos que a lei prevê, temos de criar condições para que isso aconteça. [Por outro lado], continuamos a assistir a uma detenção automatizada de migrantes em situação irregular, não obstante a lei preveja que a detenção seja a última medida. Volto a dizer: as pessoas recorrem a esquemas ilegais não porque estejam propriamente mal-intencionadas, mas porque, muitas vezes, não têm outra alternativa.

Nas últimas semanas, temos assistido a vários relatos de requerentes de asilo a dormir no aeroporto. A juntar a isto, também há também requerentes de asilo a dormir às portas da AIMA à espera de uma resposta.

Temos verificado um aumento do número de requerentes de asilo que não encontram respostas estáveis no atual modelo de acolhimento, imigrantes em situação de sem-abrigo e em situação de sobrelotação habitacional.

O que é que está a falhar?

Está a falhar a capacidade de acolhimento. Neste momento, não temos capacidade de dar resposta ao número de requerentes de asilo que chegam a Portugal. Até agora, os vários governos e o Estado, de uma maneira geral, não foram capazes de criar e de manter um conjunto de estruturas de acolhimento permanentes para fazer face às necessidades. Alguma capacidade de planeamento e de previsão falhou para que não tenhamos capacidade de responder a estes desafios. Aliás, Portugal é o país com menor número de requerentes de asilo, comparativamente a outros países europeus.

O que contraria a ideia de que agora está muita gente a entrar em Portugal.

Não houve capacidade do Estado articular com a sociedade civil respostas de acolhimento. Estamos com dificuldades de previsão, de planeamento daquilo que são os desafios do presente e do futuro. Procurámos ver nos programas políticos se há consciência do que se passa no terreno, e acabámos por não encontrar isso de forma muito clara.

A juntar à situação dos requerentes de asilo a dormirem em condições insuficientes, há também histórias de exploração e tráfico. Parece-lhe que o problema se está a adensar em vez de começar a resolver-se?

As respostas são sempre mais lentas. Também é verdade que, nos últimos anos, houve mudanças em duas estruturas fundamentais – o Alto Comissariado, o SEF e diria também Segurança Social. Estas três entidades têm de apresentar respostas em articulação com as organizações da sociedade civil capazes de fazer face ao desafio social que temos pela frente. Outro aspeto muito importante tem a ver com a questão da regularização. O antigo SEF atingiu o ponto de rutura em 2019, com a suspensão total dos agendamentos, com o entupimento do call center, com demoras até dois anos nos processos de regularização. Tudo isto aconteceu graças ao fraco investimento, quer ao nível do capital humano, quer ao nível de respostas tecnológicas.

As soluções parecem-lhe estar presentes nos programas? Sabe-se que a AIMA herdou 350 mil processos pendentes do SEF.

Temos estado em diálogo com a AIMA e sabemos que há vontade e visão de melhoria, até de uso de meios tecnológicos. Parecem-nos muito boas propostas, mas de facto é uma herança pesada. A nossa expectativa é de que quem venha a vencer as eleições, não caia na tentação de novas ruturas no processo. Se não dermos o devido investimento nesta nova agência, podemos cair novamente em atrasos e em problemas no terreno.

A solução para os atuais problemas passa então pela AIMA?

Exato. Por exemplo, as propostas do Partido Socialista vão no sentido de continuar a agilizar os processos de legalização e de instalar e dinamizar uma rede nacional de centros de acolhimento. Por outro lado, se olharmos para a proposta da Aliança Democrática, há um ponto que fala em avaliar a reestruturação da Agência de Integração, Migrações e Asilo, de forma a corrigir falhas legais, operacionais e de conflito de competências. Na leitura que faço, há uma ideia de não provocar uma rutura por parte do partido ou da coligação que provavelmente formarão governo. Creio que é uma boa notícia, porque o que importa aqui é a forma como os nossos cidadãos migrantes estão a ser servidos pelas respostas públicas.

Atendendo às situações de que já falámos, entre as quais as de tráfico e exploração, considera que o critério de acolhimento da entrada de migrantes em Portugal deveria ser alguma forma mais apertado ou revisto, de maneira a poder garantir que temos condições de facto para acolher as pessoas?

Entendemos que deve haver uma preocupação de controlo de fronteiras, naturalmente, mas também uma visão humanitária. Não creio que haja propriamente uma política de portas escancaradas. Não é isso que está em causa. As alterações legislativas que se fizeram foram no sentido de dar melhores condições para uma migração legal e segura. Desde logo, se conseguirmos melhorar os processos burocráticos, administrativos, estamos a melhorar significativamente a qualidade de vida das pessoas migrantes. Por outro lado, também no setor empresarial deve haver uma agilização destes processos, uma melhor articulação entre as necessidades do mercado de trabalho e a integração destas pessoas. Por exemplo, é muito difícil para um imigrante abrir uma simples conta bancária. Sem abrir uma conta, as pessoas não conseguem receber o seu salário. São aspetos pequenos que é preciso agilizar. Também no acesso à habitação, muitas vezes verificamos que os imigrantes e os refugiados são deixados de fora das políticas públicas de habitação. Entende-se, por um lado, que se privilegie primeiro os cidadãos nacionais, mas deixar de fora uma população tão fragilizada como a população migrante origina, muitas vezes, fenómenos de habitação sobrelotada. Já nem sequer falo no acesso ao crédito habitação, porque as pessoas, sobretudo os migrantes, numa fase inicial, não têm qualquer possibilidade de aceder a esse tipo de benefício.

À semelhança do que se verifica noutros países europeus, teme que a xenofobia e o racismo possam crescer entre os portugueses?

Temo que isso possa acontecer. É preciso combater a desinformação. É preciso combater narrativas que instrumentalizam os migrantes e os refugiados, procurando provocar uma perceção de insegurança na sociedade portuguesa. Esse é um processo que está a acontecer nas cidades europeias. Isso tem sido, sobretudo, cavalgado por certos partidos políticos de extrema-direita, mas acaba também por impactar os partidos do centro, que têm um certo receio de ter políticas mais afirmativas de proteção. Por exemplo, a ideia de que estamos a ser invadidos é absolutamente errada. A população imigrante corresponde a 7,5% da população portuguesa. Não há nenhuma invasão desta pequena minoria ao resto do país. Aliás, Portugal é um país desertificado em muitas regiões e muito beneficiaria da chegada de novas pessoas. Na minha perspetiva, é preciso, pelo contrário, uma política de atração e fixação de pessoas para lá dos grandes centros urbanos. É possível e é necessário combater a desinformação e os receios. É responsabilidade de todos, também da comunicação social, mostrar factos e números.

Falando de perceções, é comum dizer-se que Portugal atrai sobretudo mão de obra pouco qualificada.

A primeira coisa é evitar a todo o custo a perceção de que os imigrantes vêm roubar empregos aos portugueses. A maioria dos migrantes vem colmatar necessidades de mão de obra que os portugueses não ocupam. Também é preciso aprofundar o tema das qualificações. Há cerca de dois anos, fizemos um levantamento da situação dos médicos venezuelanos em Portugal – eram cerca de 200 – e descobrimos que estavam a trabalhar em setores não qualificados. É muito normal encontrarmos migrantes que têm qualificações superiores, mas não têm o reconhecimento dessas qualificações. Não é de todo verdade que a imigração que recebemos é não qualificada. Enquanto as pessoas não têm as suas qualificações reconhecidas, têm de trabalhar em qualquer coisa e, portanto, normalmente o que vemos são imigrantes a trabalhar em setores onde há necessidade de mão de obra e onde não há portugueses a trabalhar. Isso pode dar-nos a perceção de que estas pessoas não são qualificadas. Provavelmente entre as que estão na apanha da fruta, na construção civil, na hotelaria encontraremos pessoas com qualificações de nível superior.

Nos últimos tempos, as associações de apoio a migrantes e refugiados tem queixado desta falta de financiamento. O que é que está em risco?

Com a interrupção do financiamento e com uma falta de visão estratégica na colaboração com o terceiro setor, com a sociedade civil, com as organizações, aquilo que está em risco é uma falta de capacidade das respostas de proximidade. A sociedade civil enfrenta graves problemas ao nível do financiamento que decorrem, sobretudo, de dois fatores: primeiro, um hiato temporal entre os quadros comunitários que levou a despedimentos ou à interrupção ou redução de atividades e de projetos, sobretudo, na área do acolhimento e da integração; outro aspeto tem a ver com um escasso investimento estável e duradouro nas respostas do crescimento e integração das pessoas migrantes, apoiando a sociedade civil nesta matéria.

A própria criação da AIMA acabou por atrasar também estes processos de apoio e esta concessão do apoio...

Exatamente. Espero que seja circunstancial, mas há qualquer coisa mais antiga do que isso. Tem a ver com uma falta de visão, na minha perspetiva, por parte do Estado, em apoiar de forma permanente aquilo que são respostas permanentes. Vou dar um exemplo indo para outro setor. Todos os anos é previsível que haja incêndios. Não passa pela cabeça de nenhum decisor político construir quartéis de bombeiros todos os verões, de cada vez que há fogo, mas é isso que se está a passar na área do acolhimento a migrantes e refugiados. Os financiamentos que temos disponíveis são cíclicos, e as respostas e as necessidades são permanentes. Deveria haver um investimento por parte do Estado na relação com quem está na proximidade, no terreno. Esse investimento não pode estar dependente de ciclos de projeto. Na JRS, fizemos um centro de acolhimento em Vendas Novas, que está à espera da aprovação do financiamento para arrancar e neste momento há pessoas a dormir nos aeroportos. Tivemos de fechar um centro em Vila Nova de Gaia que fizemos em parceria com os Redentoristas, que recebeu centenas de refugiados da Ucrânia e também afegãos e outros requerentes, por causa do fim do financiamento. Quando é que os decisores políticos percebem que estas respostas são necessárias e há do lado da Segurança Social, da AIMA, uma aposta decisiva nas organizações que têm provas dadas no terreno?

Olhando para o cenário internacional, teme que uma possível vitória de Trump, nos Estados Unidos, possa ter impacto nas políticas de integração e acolhimento da União Europeia?

Seria um péssimo sinal na relação transatlântica entre a Europa e os Estados Unidos. Temo que o mundo fique menos seguro e que este estilo agressivo-rebarbativo por parte do senhor Trump signifique um retrocesso daquilo que são as necessidades de construir um futuro de paz, de colaboração e de cooperação entre os países e as regiões do mundo. Espero que haja uma alternativa.

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  • P. Antonio
    27 fev, 2024 Venda Nova 02:50
    E se invés de ouvirem alguém que a sua vida beneficia e está depende da vinda de outras gentes, ouvissem o povo na vida real de rua? Agora não metam o comentário e depois digam que há 50 anos isto e aquilo

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