Cinema

"Duna". Depois dos flops, é desta que haverá uma boa adaptação do clássico de ficção científica?

28 fev, 2024 - 14:00 • João Malheiro

Jodorowsky, Lynch e Villeneuve. São os três realizadores que já tentaram trazer o livro de Frank Herbert ao Cinema. O primeiro nem conseguiu filmar, o segundo lançou um flop que hoje deserda e o terceiro prepara-se para lançar um êxito que o pode consagrar como um dos grandes realizadores da atualidade. A Renascença olha para a história complexa de uma das adaptações mais exigentes de sempre.

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Estreia em Portugal, esta quinta-feira, "Duna: Parte 2", a sequela que ambiciona completar a tentativa do realizador Dennis Villeneuve de adaptar um dos textos literários que mais desafiante se tem mostrado para cineastas, ao longo de quase 60 anos.

Aquele que promete ser o primeiro grande blockbuster do ano tem um grande peso mediático, devido ao orçamento e às estrelas que o protagonizam, mas carrega consigo também um legado complexo de adaptações falhadas. Para explicar melhor, temos de voltar ao início.

Em 1965, era lançado em livro o épico de ficção científica escrito por Frank Herbert. Textos da obra tinham sido já lançados em serialização na revista "Analog", mas foi a edição completa que se tornou um dos maiores clássicos literários do género.

A história de uma sociedade intergalática que compete por extrair e dominar do planeta Arrakis uma especiaria fictícia, a "melange" que dá poderes psicadélicos a quem a consome, e o drama com carga política e religiosa do protagonista Paul Atreides é parte essencial dos cânones da ficção científica norte-americana. O sucesso crítico e comercial permitiu a Frank Herbert dedicar-se à escrita a tempo inteiro.

Tal é o seu estatuto que a primeira edição publicada de "Duna" é uma das peças colecionáveis mais valiosas do mundo. Uma cópia chegou a ser vendida por 20 mil dólares num leilão.

Frank Herbert escreveu mais cinco livros da mesma saga, o último lançado em 1985 - um ano antes da sua morte. O filho, Brian Herbert, manteve a saga viva, depois de encontrar milhares de manuscritos do pai com ideias para futuros livros. Entre prequelas, interlúdios e sequelas, mais de uma dúzia de novos livros à volta do universo de "Duna" foram lançados desde a morte do seu autor original.

Claro está, uma saga tão extensa e, sobretudo, tão popular não iria passar despercebida a uma das indústrias que, historicamente, melhor reaproveita outros géneros artísticos: O Cinema.

A adaptação que virou mito

Falar de "Duna" na Sétima Arte é falar da palavra "inadaptável" - um conceito que descreve uma obra, literária ou não, que é marcadamente difícil de transpor para o grande ecrã. Isto pode dever-se a inúmeros fatores, como conceitos demasiados abstratos para recriar visualmente, uma narrativa tão extensa que se torna impraticável adaptar dentro do formato tradicional de longa-metragem, sem, pelo menos, a descaracterizar, entre outros.

No caso da obra de Frank Herbert, para além da complexidade narrativa, que envolve várias famílias feudais, planetas com nomes isotéricos, sistemas religiosos, gramática e até próprias línguas fictícias, o trabalho nunca seria fácil. E se o primeiro "Duna" já não fosse complicado, as sequelas tornam-se cada vez mais metafísicas e filosóficas.

Isto não impediu artistas e estúdios de se interessarem pelo valor artístico e comercial da obra e tentar recriar e superar o seu sucesso em formato de filme. A primeira tentativa acabou por se tornar ela própria numa figura mítica da indústria.

A produtora Apjac International adquiriu os direitos de adaptar o filme, em 1971. Depois de dois anos a tentar arrancar com o projeto, o grande impulsionador, Arthur P. Jacobs, morreu, em 1973. No ano seguinte, um consórcio francês, encabeçado por Jean-Paul Gibon, comprou os direitos e apontou Alejandro Jodorowsky para realizar a adaptação.

O cineasta planeava criar uma longa-metragem com 14 horas de duração, protagonizada pelo seu filho Brontis, com Amanda Lear, Orson Welles, Gloria Swanson, David Carradine e até Salvador Dalí e Mick Jagger em papéis secundários. A certo ponto, os Pink Floyd foram perfilados para escrever e gravar a banda sonora.

A pré-produção arrancou em França e envolvia, entre outros, nomes como Dan O'Bannon, argumentista de "Alien - O Oitavo Passageiro" e H.R. Giger, o artista que influenciou a direção artística desse mesmo filme.

Um dos primeiros problemas surgiu com Salvador Dalí. O artista espanhol exigiu receber 100 mil dólares por hora e, mais tarde, depois de tomar posições favoráveis à ditadura espanhola, acabou mesmo por ser despedido por Jodorowsky. Apesar da pré-produção do filme não estar terminada, dois dos nove milhões de dólares orçamentados para a sua produção já tinham sido gastos.

O projeto acabou por ser cancelado sem que qualquer cena tivesse alguma vez sido filmada. Em 2013, o documentário "Jodorowsky's Dune" contou estas e muitas outras peripécias da adaptação ambiciosa que nunca viu a luz do dia.

O flop de David Lynch

Em 1976, foi a vez do produtor Dino De Laurentiis de comprar os direitos cinematográficos de "Duna" e lançar-se em mais uma aventura. Inicialmente, Ridley Scott tinha sido o cineasta escolhido para liderar a próxima tentativa de trazer o mundo de Frank Herbert ao grande ecrã e queria dividir o livro em dois filmes (uma tática que foi seguida mais tarde).

Contudo, depois de perder o irmão mais velho, devido a cancro, Ridley Scott decidiu afastar-se da produção, considerando que seria um processo demasiado desafiante e exaustivo. Poucos anos depois, o artista assumiu as rédeas de outra adaptação de um clássico de ficção científica: "Blade Runner".

Parecia que "Duna", simplesmente, não estava destinado a ser recriado em 24 frames por segundo e a adaptação ganhava já infâmia de estar amaldiçoada. Assim foi, até que, finalmente, em 1984, chegou uma versão cinematográfica às salas de Cinema, quase 20 anos depois da publicação do livro original.

Escrito e realizado por David Lynch, o filme contou com um elenco de peso: Kyle MacLachlan, Brad Dourif, Linda Hunt, Virgina Madson, Patrick Stewart e Max von Sydow. Curiosamente, depois de Jodorowsky ter pretendido que fosse Mick Jagger a interpretar o vilão Feyd-Rautha, David Lynch escolheu o artista Sting para o mesmo papel.

A ideia seria fazer uma trilogia, liderada pelo cineasta norte-americano, que adaptasse uma parte substancial da saga de Frank Herbert. David Lynch adorou ler a obra original e redigiu uma mão cheia de manuscritos antes de chegar ao argumento final de 135 páginas.

O "Duna" de Lynch foi filmado inteiramente em estúdios no México, com um orçamento estimado de 40 milhões de dólares. Foram usados 80 cenários e mais de 20 mil figurantes, numa produção tumultuosa de seis meses. No final, ficaram mais de quatro horas de gravações, sem qualquer trabalho de pós-produção.

O realizador queria uma versão de três horas, depois do processo de seleção e edição das filmagens. Não obstante, Dino De Laurentiis e os restantes produtores exigiram uma longa-metragem mais tradicional de duas horas, obrigando a que cenas fossem cortadas e outras regravadas, à dobragem de uma narração que colmatasse falhas na narrativa e até uma nova abertura para o filme. Ao contrário do que até é habitual com este tipo de diferenças artísticas, nunca foi editada e lançada uma versão alargada.

Quando Frank Herbert viu o filme, mostrou-se bastante satisfeito e nem levou a mal as divergências entre a narrativa do filme e o texto original. A satisfação do autor tratou-se de uma exceção à regra.

"Duna" de 1984 foi um flop na bilheteira, arrecadando apenas uma receita de 30 milhões de dólares - ou seja, nem conseguiu recuperar o seu orçamento - e criticado por especialistas e audiências da época. David Lynch sentiu que tinha "vendido a alma", afastou-se de blockbusters e chegou ao ponto de pedir que qualquer menção do seu nome fosse substituído por um pseudónimo em edições futuras da longa-metragem. O ator principal, Kyle MacLachlan, colaborador frequente de Lynch, também "deserdou" o filme.

Naturalmente, as sequelas que estavam perfiladas nunca chegaram a entrar em produção e a indústria de Hollywood afastou-se por completo da ideia de voltar a repetir a façanha de adaptar "Duna". Apesar de se ter tornado uma obra de culto, a versão de David Lynch é, ainda hoje, rejeitada pelo próprio.

À terceira é de vez?

Na televisão terá corrido melhor. Em 2000, o canal Sci-Fi emitiu a minissérie "Frank Herbert's Dune" em três partes escrita e realizada por John Harrison, com William Hurt e Alec Newman. A série foi premiada com dois Emmys e teve uma sequela, também dividida em três partes, que adaptou algumas das sequelas. Ao todo, as duas produções são, ainda hoje, dos programas mais vistos de sempre no canal norte-americano.

O sucesso televisivo não impulsionou uma nova tentativa de adaptar "Duna" em Cinema. Pelo contrário, passaram mais 20 anos antes que uma nova versão chegasse às salas de Cinema.

Tudo (re)começou em 2016, quando a Legendary Entertainment adquiriu os direitos. Como a história para além de se repetir, também gosta de rimar, foi escolhido um realizador que propôs dividir o livro de Frank Herbert em dois filmes: Dennis Villeneuve, um dos grandes nomes atuais do Cinema de ficção científica, como "O Primeiro Encontro" e "Blade Runner 2049".

A apoiar o cineasta, o argumento foi escrito por Eric Roth (nomeado ainda este ano para os Óscares pela escrita de "Assassinos da Lua das Flores"), Greg Fraser na direção de fotografia e Hans Zimmer na banda sonora. O elenco também está recheado de algumas das maiores estrelas da atualidade: Timothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Stellan Skarsgård e Javier Bardem.

Ao contrário da longa-metragem dos anos 80, a estreia no festival de Veneza a 3 de setembro de 2021 correu bem. "Duna" de Villeneuve foi aclamado pela crítica e fez cerca de 434.8 milhões de dólares na bilheteira, face a um orçamento de 165 milhões de dólares - numa altura em que o mundo continuava a implementar medidas de prevenção contra a Covid-19.

Nós Óscares do ano seguinte, o filme venceu seis prémios: Melhor Banda Sonora, Melhor Som, Melhor Edição, Melhor Direção de Fotografia, Melhor Direção de Arte e Melhores Efeitos Especiais. A sequela foi oficializada e conta com novos nomes sonantes no elenco: Austin Butler, Florence Pugh, Léa Seydoux, Anya Taylor-Joy e Christopher Walken.

Dennis Villeneuve conseguiu adaptar metade do primeiro livro com sucesso. Falta ver se não morre na praia. "Duna: Parte Dois" estreia esta quinta-feira, em Portugal. Já foi igualmente aclamado pela crítica, que o comparou favoravelmente a filmes como a saga de "O Senhor dos Anéis". Falta agora saber se cumpre a expectativa junto da audiência e alcança um sucesso comercial maior que o primeiro filme.

Está já prevista uma série para a HBO Max dentro do mesmo universo entitulada "Dune: Prophecy". E, caso "Duna: Parte Dois" acabe mesmo por ser um dos grandes filmes de 2024, Villeneuve já admitiu que pretende fazer um terceiro filme, adaptando o livro "Dune: Messiah".

Depois de muitos anos à deriva no espaço, parece que "Duna" finalmente vai cumprir a profecia e afirmar-se como uma das sagas mais marcantes da próxima década, na indústria do audiovisual.

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