Entrevista a Carlos Figueira

Em duas dezenas de debates ouviu-se "duas vezes a palavra pobreza"

20 fev, 2024 - 07:15 • Henrique Cunha

Carlos Figueira, da equipa coordenadora da Economia de Francisco, lamenta a ausência do tema da pobreza da campanha eleitoral. Em entrevista à Renascença, pede aos partidos que apresentem soluções para "um problema estrutural".

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Reconhecer que a pobreza não se combate só com dinheiro e com apoios sociais é uma das premissas de Carlos Figueira. Foto: José Coelho/Lusa
Reconhecer que a pobreza não se combate só com dinheiro e com apoios sociais é uma das premissas de Carlos Figueira. Foto: José Coelho/Lusa

Que desafios Portugal enfrenta? Para responder a esta pergunta em tempo de eleições legislativas, a Renascença fez uma série de entrevistas temáticas, onde se inclui a atual entrevista a Carlos Figueira sobre pobreza.

Veja aqui as restantes entrevistas:


Reconhecer que a pobreza não se combate só com dinheiro e com apoios sociais é uma das premissas de Carlos Figueira. Em 2023, durante a JMJ Lisboa, participou no encontro que o Papa Francisco manteve com jovens na Universidade Católica e recorda muitos dos seus pensamentos sobre a pobreza.

Desde logo, o também professor assistente na Nova School of Business and Economics acredita que é preciso um programa que vise combater as causas estruturais da pobreza, já que na situação atual, basta uma crise para um número de pessoas que passa dificuldades entre no limiar de pobreza.

A educação, acredita, é uma das formas de erradicar a pobreza. Além disso, defende que não precisamos de crescimento económico só por si, já que sozinho não leva a lado nenhum.

Começo por lhe perguntar se a “Economia de Francisco” é um modelo económico, ou uma filosofia de vida?
Não é um modelo económico, não é um manual com respostas, com novos modelos de organização do sistema económico ou com uma nova teoria económica. É sim um processo que começou com uma carta escrita pelo Papa Francisco, em maio de 2019, onde no fundo desafiava os jovens economistas, empreendedores, agentes de mudança, a pensarem uma economia diferente, mais inclusiva, humana, sustentável, que coloca a pessoa humana no centro e, portanto, digamos que é aqui um caminho sinodal que os jovens estão a percorrer.

Nesse processo os jovens também são guiados ou são orientados aqui também por "seniors"; portanto economistas, empresários também experientes que nos vão ajudando a desbravar caminho. Ou seja, é um processo em que nós não temos um caminho pré-definido à partida.

Nós preocupamo-nos sobretudo em fazer perguntas, as principais perguntas, boas perguntas, e através do diálogo, do processo de escuta e de um trabalho conjunto, chegarmos então a essas respostas económicas para os problemas de hoje.

E tendo sempre por base, no fundo, a doutrina social da igreja?
Exatamente, exatamente, isso é um aspeto fundamental.

A Economia de Francisco tem por base a doutrina social da igreja, o seu pensamento e também vai beber muito aquilo que tem sido as encíclicas e todos os documentos produzidos não só pelo Papa Francisco, mas pela igreja ao longo da sua história.

De que forma a Economia de Francisco, aplicada ao nosso país, ajudaria a minimizar, por exemplo, bolsas de pobreza?
A Economia de Francisco tem uma preocupação enorme a nível da promoção do desenvolvimento humano integral. Visa conseguir ou promover o bem comum. Possibilitar bem o desenvolvimento de todas as pessoas e como sabemos na doutrina social da igreja também o bem da pessoa toda. Portanto, visa aqui tornar o bem algo partilhado e visa não deixar ninguém para trás.

Desse ponto de vista, acho que a Economia de Francisco tem muito a acrescentar, porque vem trazer também ou promover esta visão integral da realidade, porque de facto quando pensamos na pobreza, a pobreza é uma realidade multidimensional, que tem que considerar diversos aspetos.

E também, como o Papa Francisco tem dito muitas vezes, não se pode, por exemplo, pensar em resolver o problema ambiental deixando para trás aquele que poderá ser o impacto de determinadas medidas nos pobres ou nos mais desfavorecidos. É importante ter aqui uma visão integral da realidade e procurar não só não deixar ninguém para trás, mas também promover o desenvolvimento do homem todo, da pessoa no seu todo.

Acho que é por aí que a Economia de Francisco pode trazer uma nova visão, e que pode ajudar aqui a resolver ou a pensar o tema da pobreza, que efetivamente é um problema que, em Portugal, continua a ser estrutural e que não tem tido, lá está, um programa de combate.

Acho que precisamos aqui, lá está, não só de um programa que vise combater as causas estruturais, mas também de reconhecer que a pobreza não se combate só com dinheiro e só com apoios sociais.

Falava da questão da pobreza como uma questão estrutural. Sem apoios sociais, o país poderia ter quase metade da população pobre, cerca de 4,4 milhões, ou seja, 41,8% da população. Estamos de resignados a esta realidade de dependência?

Eu acho que não. Acho que precisamos aqui, lá está, não só de um programa que vise combater as causas estruturais, mas também de reconhecer que a pobreza não se combate só com dinheiro e só com apoios sociais. É uma das dimensões que nós teremos que utilizar. Como disse e bem, de facto quase metade da população seria, ou estaria abaixo desse limite de pobreza, se não fossem estas transferências sociais, mas temos que reconhecer que não é só assim que se resolve o problema.

Essa mudança de mentalidade, de que não é só com apoios sociais que se resolve o problema, é o primeiro passo para mudar e para ter uma medida de combate estrutural da pobreza. Aquilo que nós vemos, até olhando para os dados, é que a pobreza - apesar de ter, nos últimos 20 anos, uma redução -, ela tem-se mantido à volta dos 20%.

Tem-se tido altos e baixos, claro que tem havido várias crises, mas mesmo esses altos e baixos apontam para não ter havido mudanças estruturais. Basta uma crise para um número de pessoas que está a passar por dificuldades entrar nesse limite de pobreza. Essa mudança de paradigma é importante. E reconhecer que por trás desta temática da pobreza, e por trás desses números, há pessoas. É algo que o Papa Francisco tem dito muitas vezes: por trás destes números estão pessoas, e precisamos de as capacitar para que possam sair desta espiral de pobreza.

Existem vários instrumentos que podem ser usados e um deles é a questão da educação, da formação, da capacitação das pessoas para conseguirem um trabalho digno, e também o combate à precariedade em termos laborais. Portanto, há várias dimensões que não passam só por apoios sociais.

Isso parece ser bastante relevante, até porque, segundo os diferentes estudos que temos vindo a conhecer, quem nasce pobre, por norma, precisa de 5 gerações para sair dessa situação, não é?Pegando num dos instrumentos que eu estava a referir, a educação.... É fundamental para conseguir que as pessoas subam no chamado elevador social, que consigam fazer uso dele e sair desta espiral de pobreza.

A educação é algo que é fundamental, e não tem estado nos debates eleitorais. Tem-me feito alguma confusão porque é que a educação, neste sentido de permitir tirar as pessoas desta espiral de pobreza, não tem sido um tema. Tem-se falado da questão dos professores, da reposição do tempo de serviço, e do SNS que tem aqui uma dimensão muito importante e que é ligada com a pobreza, mas têm ficado muitas coisas fora do debate para já.

Seria importante, no que ainda falta até às eleições, este tema da pobreza no seu sentido mais integral surgisse e que de facto se apresentassem propostas que visassem combater a pobreza, de forma estrutural e lá está, a educação é uma delas. A educação é fundamental, é importante garantir que todos têm igualdade de acesso, igualdade de oportunidades no acesso à educação, sobretudo cursos superiores, e garantir que não há ninguém que queira integrar um curso superior e que não tenha acesso a isso.

Apesar do crescimento e do maior nível de formação da população portuguesa, ainda é fundamental ter um curso superior e a educação continua a compensar. Portanto é um aspeto fundamental.

Tem-me feito alguma confusão porque é que a educação, neste sentido de permitir tirar as pessoas desta espiral de pobreza, não tem sido um tema.

Já aqui falou do período de pré-campanha eleitoral, do conjunto dos debates....Pouco ou nada se discutiu a questão da pobreza. Ainda espera ouvir dos partidos e dos candidatos algo de substancial sobre a necessidade de combater a pobreza em Portugal?

É fundamental que assim seja, de facto, como disse e eu concordo, tem sido um tema que em si e na sua dimensão integral, em termos de um programa estrutural, tem estado ausente dos debates.

Assisti à maior parte dos debates e provavelmente a palavra pobreza, só a palavra, apareceu em dois deles. Num para falar da pobreza energética - que é também um problema e precisamos de medidas importantes. E depois houve num outro uma breve referência ao combate à pobreza. É fundamental que os partidos apresentem medidas para combater a pobreza.

Como disse, não é só uma questão de transferências sociais ou de rendimentos, no fundo de dar dinheiro, mas necessário ter um programa estrutural e que coloque a dignidade da pessoa humana no centro. E há uma realidade que também é muito preocupante no nosso país: as pessoas que estão dentro desta categoria, abaixo do limite de pobreza, são pessoas que têm um trabalho, que têm um vínculo laboral e isso deve-nos preocupar a todos.

E isso leva-nos para uma outra dimensão do problema que tem a ver com o facto de em Portugal se ganhar pouco, não é?
Sim, exatamente, e se calhar também por isso é que se têm preocupado sobretudo com a questão do crescimento económico, que normalmente vem sempre ao debate, mas falta esta interligação do problema.

Ou seja, nós precisamos de crescimento económico, mas não precisamos de crescimento económico só por si. Isso é uma clara preocupação e que nós, no interior da Economia de Francisco defendemos. Defendemos que o crescimento económico é importante, é necessário, mas só por si não nos leva a lado nenhum.

Às vezes, nos debates, a ideia que passa é que precisamos de crescimento económico só porque sim, porque é um número que se calhar é importante até para as eleições e para os governos serem eleitos, mas é necessário garantir que esse crescimento económico chegue a todos.

Portanto, não pode haver ninguém deixado para trás, e quando olhamos para esta dimensão, o número de trabalhadores que está abaixo da linha de pobreza, quando olhamos para o número de sem-abrigos que aumenta, acho que é claro que os partidos têm que se preocupar, e que quem está na política tem de se preocupar com esta dimensão e com este problema da pobreza.

É fundamental para termos um país melhor onde se vive bem e onde se garante o respeito para a dignidade humana, da pessoa humana. Há esta preocupação fundamental com o bem comum e de não deixar ninguém para trás. Espero que o tema ainda surja.

Vai haver um encontro da rede europeia anti pobreza com os partidos, e espero que isso contribua para que este tema venha para cima da mesa e que os partidos apresentem propostas que combatam esta realidade. Espero que os partidos possam apresentar ideias claras. Daquilo que conheço dos programas eleitorais, há algumas medidas, diria um pouco vagas ainda. Até o final da campanha era bom que fossem apresentadas e clarificadas as propostas que cada partido tem e que depois, quando tivermos um novo governo, a pobreza esteja na ordem do dia e que seja o tal desígnio nacional que muitas vezes se fala.

Seria importante, no que ainda falta até às eleições, que a pobreza no seu sentido mais integral surgisse e que se apresentassem propostas para combatê-la de forma estrutural e lá está, a educação é uma delas.

Falemos da necessidade de não deixar ninguém para trás. O salário mínimo tem vindo a sofrer atualizações, mas o salário médio não tem crescido e este é o caminho, se calhar, para uma sociedade em que se poderão fazer cada vez mais notar as assimetrias entre ricos e pobres. Não há aqui uma classe média que, de alguma forma, está a ser deixada para trás?

Concordo, ou seja, acho que de facto o retrato que fez ao colocar a pergunta é verdade. O salário mínimo tem aumentado, mas a verdade é que depois o salário médio não tem acompanhado esse crescimento e isso também nos deve preocupar.

Uma via para subirmos salários poderá ser a redução de impostos, é verdade, mas acho que não pode ficar só por aí. Temos também de capacitar as pessoas, porque é preciso apostar numa reorientação da economia portuguesa. Tem-se falado na diversificação e no reformar da especialização da economia portuguesa, e isso é necessário.

Ou seja, especializarmo-nos em áreas que têm um valor acrescentado maior é importante. Só assim, e garantindo que as pessoas são mais produtivas, é que se garantem maiores salários. E pegando nesse ponto de tornar as pessoas mais produtivas, há várias medidas que se podem pensar. As pessoas não são mais produtivas só porque vamos mudar o tipo de indústria.

É preciso apostar na formação ao longo da vida profissional. Há também a questão de garantir melhores condições de trabalho, porque os portugueses são das populações, ou dos países onde se trabalha mais, mas isso não está ligado, de facto, ao nível de produtividade. Trabalhamos muitas horas, mas não é por isso que produzimos mais e, portanto, se calhar aquilo que temos que tomar são medidas para tornar cada hora trabalhada mais produtiva.

Isto tem a ver com a organização também, não é?
Também. Exatamente. Daí eu dizer que não é só uma questão de salários ou de dinheiro. Há aqui uma questão de organização das próprias empresas, da organização da forma como nós trabalhamos em Portugal.

Para além da questão do salário, também é importante termos em conta que - e nós temos visto os números dos jovens que têm saído do nosso país - é importante garantir a criação de condições aos jovens para terem uma vida equilibrada em Portugal.

E aqui entra a temática da habitação, entre outras. Portanto, acho que o ponto fundamental, e é essa visão que a Economia de Francisco tenta, é alertar e promover esta visão mais integral e de colocar a pessoa humana no centro. É um dos principais contributos da Economia de Francisco e, no fundo, é algo que deriva também aqui da doutrina social da igreja.

O caminho de uma sociedade em que poderão fazer-se notar cada vez mais as assimetrias entre ricos e pobres, é essa a tal economia que mata, como lembrou o Papa Francisco?
É, claramente. O Papa também tem dito muitas vezes que, de facto, não é só o CO2 que polui. A desigualdade também polui mortalmente o planeta, e é verdade. Uma sociedade muito desigual, onde o 1% de mais ricos ganha muito mais do que aquilo que é os 1%, ou os 10%, ou os 50% menos ricos, digamos assim, é de facto um problema.

É uma sociedade que não é coesa em termos sociais, e há que garantir essa maior justiça social. E gostava aqui de estabelecer a diferença entre igualdade e equidade. Nós não estamos aqui a defender que exista uma sociedade que é completamente igualitária, mas sim que existe equidade no tratamento de toda a pessoa.

Ou seja, a desigualdade é preocupante por si só, mas também é preocupante porque aqueles que estão mais abaixo na distribuição, portanto os menos ricos, têm um nível de rendimento que não é suficiente para assegurar as necessidades básicas. E esse aspeto é fundamental, garantirmos que todos temos a capacidade de satisfazer as nossas necessidades básicas.

E há uma realidade que também é muito preocupante no nosso país: as pessoas que estão dentro desta categoria, abaixo do limite de pobreza, são pessoas que têm um trabalho, que têm um vínculo laboral e isso deve-nos preocupar a todos.

Que memórias lhe ficaram do encontro com o Papa na Universidade Católica, aquando da JMJ?

É um encontro que relembro com muito gosto, que foi um encontro muito bom, e aquilo que retenho é algumas das coisas que também já fui mencionando aqui. É que, de facto, e estando numa universidade católica, mas sobretudo numa universidade, o Papa alertou muito para a necessidade de revisão dos currículos, esta preocupação de introduzir uma visão mais integral da realidade.

Alertou também para, como não podia deixar de ser, para esta economia que mata, ou seja, para a necessidade também de garantirmos um igual acesso, e no caso à educação, e, portanto, uma igualdade de oportunidades à educação. E alertou-nos também para que na nossa caminhada, cada um de nós que ainda está numa fase de estudar ou que já está a trabalhar, deve dar o seu contributo para alterarmos esta economia, alterarmos o mundo em que vivemos, e darmos o nosso contributo de facto para um Portugal melhor.

O Papa deixou também uma pergunta, algo do género: o que é que precisaríamos para um Portugal melhor? E essa pergunta ficou-me, cada um de nós deve interrogar-se sobre isso e dar o seu contributo para termos uma economia melhor, um mundo melhor, mas sobretudo também um Portugal melhor, menos desigual, onde esta realidade da pobreza não é tão premente, e de facto ninguém fica para trás.

Seria uma boa pergunta para colocar aos candidatos neste período de campanha eleitoral?
Acho que sim, sem dúvida, sem dúvida.

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