La Liga

"Não estamos dopado$". Girona sonha com o título espanhol à boleia do grupo City

08 fev, 2024 - 13:40 • Eduardo Soares da Silva

O clube catalão está a lutar pelo título com o Real, que tem uma folha salarial quase 15 vezes superior. Mas se a história do Girona, detido pelo grupo do Manchester City, é um "conto de fadas" ou consequência de um modelo perverso, depende da forma como se olha para o fenómeno.

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Há pouco mais de uma década, o Girona era um pequeno clube na Catalunha que disputava a quarta divisão. Esta época, com a ajuda do elevador do grupo do Manchester City, está a lutar pelo título espanhol com o Real Madrid. Mas as opiniões dividem-se: é uma história de encantar ou um motivo de preocupação?

Promovido à La Liga há dois anos, o Girona deixou o vizinho Barcelona para trás e está a disputar o título com o Real Madrid, um clube que paga ordenados quase 15 vezes superiores ao emblema da Catalunha.

Na verdade, o Girona é apenas o 13.º clube com a maior folha salarial do campeonato. Paga até 51 milhões de euros por época, um valor que contrasta com os 727 milhões que o Real Madrid pode oferecer às suas estrelas. Até clubes mais pequenos como o Almería e Maiorca surgem à frente nesta lista.

Apesar da diferença de forças, o Real Madrid soma apenas mais dois pontos do que o Girona e foram os catalães que lideraram o campeonato durante a maioria da época.

A diferença de orçamento entre os dois candidatos pode chocar, mas há, ainda assim, um outro mundo de diferença para os valores com que o Girona lidava há pouco mais de dez anos.

"Muitos não sabiam que existia futebol em Girona"

Pepe Sierra é o líder do grupo de adeptos do clube. Em tempos, chegou até a ser homenageado no relvado do Estadio Montilivi. Termina de fumar um cigarro antes de começar a entrevista. Nas suas costas, destaca-se um poster do Estádio Santiago Bernabéu. Ocupa grande parte da parede. Não esconde que é, também, adepto dos "merengues".

"Sempre fomos um clube que andou por essas divisões inferiores. Quando acabavam os jogos ficávamos à conversa com as famílias dos jogadores", rercorda a Bola Branca. "O campeonato era composto por equipas da Catalunha, dava para ir a quase aos jogos todos", prossegue.

Os jornalistas quase nem precisavam de pedir credencial. Não era necessário, exagera Albert Diez, da Cadena COPE. Esta época, narra todos os jogos do Girona para a rádio nacional, mas segue o clube há várias décadas. Acompanhou o seu crescimento e vive de perto os seus dias de glória.

"Tudo era familiar. O clube era pequeno e muito poucos adeptos iam ao estádio. Agora a lotação foi aumentada para mais de 14 mil, mas era normal estarem mil pessoas nas bancadas", explica.

Pepe concorda. Vive em Girona e vai ao estádio há mais de 40 anos. Explica que alguns moradores da cidade não sabiam sequer da existência do clube.

Numa cidade ligada ao basquetebol e hóquei em patins, o futebol ficava para terceiro plano, até porque o estádio fica deslocado do centro. Dá exemplos caricatos: "Algumas pessoas viam camisolas vermelhas e brancas e perguntavam se ia jogar o Atlético de Madrid ou o Athletic Bilbau. Não faziam ideia que o clube existia".

Falar de futebol em Girona era falar do Barcelona. Estrelas como Maradona, Koeman, Kluivert, Ronaldinho, Xavi, Messi e Rivaldo jogavam a uma hora de distância. "O Barcelona era como o irmão mais velho, sempre foi a referência", aponta Albert.

Mas já não funciona dessa maneira: "Tudo mudou radicalmente. Agora apoiam o Girona". Sierra viveu essa revolução. É, em certa medida, um dos impulsionadores.

"É o tema do momento. Andas pela cidade, vês duas pessoas a conversar e de certeza que vais ouvir a palavra Girona. Deixa-me orgulhoso, todos se sentem identificados com o clube e os jogadores", confessa.

Há um português que chegou a pisar os relvados do Montilivi. Yago Fernández queria voltar a Espanha em janeiro de 2012 após terminar a época nos suecos do Malmo. Surgiu a proposta do Girona, da segunda divisão, nos últimos dias do mercado. Nem pensou muito.

"O clube já estava em crescimento. Às vezes vejo as imagens do balneário da La Liga e está igual, com os matraquilhos no meio", explica. É uma das imagens de marca do pequeno espaço onde os jogadores se equipam antes dos jogos.

Uma mesa de matraquilhos é pouco habitual no ambiente sério do futebol profissional, mas é o espelho de como se vive o futebol em Girona: "Distrai e diverte", assume Yago.

"É uma boa forma de desligar um pouco. Ris-te um bocado com os teus colegas antes de chegar a hora de colocar as mãos à obra. Faz parte da filosofia, não havia uma pressão enorme de conseguir resultados e vencer campeonatos. A cidade não colocava essa pressão", contextualiza.

O investimento do City e como funciona

Com a memória de um adepto apaixonado, Pepe Sierra consegue escolher o momento em que tudo mudou. Em que tudo se tornou mais sério.

Em 2008, o Girona subiu à segunda divisão. Um golo de Migue na final do "play-off" contra o AD Ceuta garantiu a subida a um patamar onde o clube catalão já não jogava desde o final da década de 50. Para a geração de Pepe, foi um momento verdadeiramente histórico.

"É o nosso golo do Koeman [que decidiu a final da Liga dos Campeões para o Barcelona em 1992]. Foi com essa subida que começaram a conhecer o Girona", recorda.

Após algumas épocas no segundo patamar e de instabilidade financeira com outros priorietários, o City Football Group - o fundo de investimento desportivo dos Emirados Árabes Unidos - adquiriu 47% do Girona.

Para além do Girona e do Manchester City, o grupo detém ainda percentagens maioritárias no Melbourne City (Austrália), New York City (EUA), Montevideo Torque City (Uruguai), Mumbai City (Índia), Troyes (França), Lommel (Bélgica), Bahia (Brasil) e Palermo (Itália), para além de participações minoritárias noutros dois clubes asiáticos.

Na verdade, a ligação entre o Girona e o City tem várias ramificações. Pere Guardiola, famoso agente e irmão do treinador Pep Guardiola, era já o presidente do Girona. "Há algumas forças vivas nesta região que levaram à criação desta aliança no clube", aponta o jornalista da Cadena COPE.

Conto de fadas ou uma peça no monopólio?

Não sendo uma participação maioritária, o City Group não tem envolvimento assumido na gestão diária do clube. O jornalista Albert Diez desmonta a ideia que o Girona "é o que é por causa" do investimento vindo de Abu Dhabi. Esclarece a sua opinião ainda antes de explicar o envolvimento do grupo. Acredita que se criou "uma ideia errada".

"O grupo não pode pôr o dinheiro que lhe apeteça no clube. Não é acionista maioritário", diz.

Pepe Sierra diz que "o clube não está dopado" pelo City. "Não, não", sublinha. "Não meteram milhões e criaram uma grande equipa, porque a La Liga tem de aprovar os orçamentos. É por isso que digo: o City deu estabilidade, ajuda com as contratações, mas o mérito é da direção", diz o representante dos adeptos.

O jornalista Albert Diez completa: "São clubes totalmente independentes. Obviamente que há uma boa comunicação, mas funcionam de forma autónoma", acrescenta.

No entanto, a transferência e troca de jogadores entre o grupo funciona de forma particular. Savinho é uma das estrelas atuais do plantel e, provavelmente, a grande revelação do campeonato espanhol.

Tem apenas 19 anos, é avançado e tem deslumbrado com assistências e golos. Chegou à Europa pela porta do Troyes, do mesmo grupo. Foi a contratação mais cara da história dos franceses, por 6,5 milhões de euros, mas nunca chegou sequer a estrear-se.

Foi emprestado ao PSV e, esta época, destaca-se no Girona. De acordo com a imprensa internacional, está a caminho do Manchester City no verão.

O "modus operandi" é de fácil compreensão: o Girona recebe jogadores promissores - de talento aprovado pela rede de observação do grupo e convencidos pela dimensão do projeto - e o Manchester City evita o investimento direto.

Competem em equipas menores de outros campeonatos europeu de alto nível até eventualmente estarem maduros para a equipa principal do grupo. Douglas Luiz, hoje no Aston Villa, Taty Castellanos, da Lazio, Yangel Herrera e Yan Couto passaram pelo Girona através da porta do grupo.

Está, assim, criado um sistema em que todos os clubes do grupo beneficiam, mas que não está livre de críticas. E também não é caso único.

Um estudo do Observatório do Futebol (CIES) concluiu que 254 clubes fazem parte de grupos semelhantes. O americano John Textor detém o Lyon, Crystal Palace, Botafogo e Molenbeek, o grupo "777 Partners" detém o Hertha de Berlim, Génova, entre outros e o grupo Red Bull gere o Leipzig, Salzburgo, Bragantino e outros. Ainda assim, o Grupo City é o maior de todos.

Já ninguém pensa só na Liga dos Campeões

Regressando ao futebol e apesar da época histórica até ao momento, as previsões voltam a dividir-se quanto ao desfecho. É possível quebrar a hegemonia do Real Madrid, Barcelona e Atlético?

Yago, Pepe e Albert concordam nos méritos dados à direção, jogadores, treinador e nos elogios ao futebol praticado. Apesar do empurrão do City Group, liderar o campeonato à entrada para 2024 não estava nos planos.

Uma época tranquila era o cenário antecipado no início da época. Existia até alguma cautela nas análises, uma vez que o melhor marcador, Taty Castellanos, e o pilar do meio-campo, Oriol Romeu, tinham deixado o clube no verão.

A luta pelo título está ao rubro, mas o jornalista Albert Díez não acredita num triunfo catalão. Vai mais longe. Diz que o objetivo interno deverá ser, nesta altura, o apuramento para a Liga dos Campeões. Ainda que "isso nunca vá ser assumido pelo clube".

Já Pepe Sierra foi levado pelo sonho. Está a viver todas as emoções da temporada e já não vê motivo para duvidar. Assistiu a uma goleada no dérbi contra o Barcelona e uma vitória dramática contra o Atlético de Madrid no último minuto.

"O que estamos a fazer é um absurdo. Acho que já ninguém aqui assinaria só o apuramento para a Liga dos Campeões. Se o Montpellier e o Leicester venceram, porque não podemos vencer nós também? Eu acho que sim", diz, com confiança e um sorriso gigante na cara.

De qualquer modo, os dois catalães acham que o maior objetivo está cumprido e não está relacionado com pontos e troféus: o Girona está agora no mapa do futebol.

"Se há um ano perguntasses a alguém se conhecia o Girona ou o treinador da equipa... Teria de ser muito fanático por futebol, não? Hoje já sabem. Isso é algo que não é tangível, não se pode tocar, mas é muito importante", conclui Albert Diez.

Mas seria possível sem o empurrão do grupo de investimento de Abu Dhabi? "Eu acho que não. Ainda que não invistam dinheiro, ajudam", diz o jornalista, que também contrapõe.

"Sem Pere Guardiola, o diretor-desportivo, o treinador e toda a estrutura do clube, também era difícil que este sucesso acontecesse. É uma engrenagem perfeita, tudo funciona na perfeição", aponta.

Yago vê os dois lados da moeda: "Conseguem ter esta equipa graças à envolvência do grupo, mas há um trabalho por trás de todas as pessoas. É uma mistura de conto de fadas com a influência do Grupo City".

É preciso esperar por maio para saber se o "conto de fadas" vai ter um final feliz, mas o jogo deste sábado, em casa do Real Madrid, pode ser um episódio decisivo para o desfecho da história.

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