Emissão Renascença | Ouvir Online
Avenida da Liberdade
Um podcast Renascença para assinalar os 50 anos do 25 de abril de 1974. Nesta terceira série, juntamos quem nasceu antes da Revolução e viveu em ditadura, e quem cresceu em democracia. Cruzamos os olhares de duas gerações para o que fomos, o que somos e o que queremos ser. Avenida da Liberdade é um podcast da jornalista Maria João Costa com sonorização de André Peralta.
A+ / A-
Arquivo
António Pedro Vasconcelos: "A democracia é uma flor de estufa"
Ouça o podcast

Avenida da Liberdade

António Pedro Vasconcelos: “A democracia é uma flor de estufa”

22 abr, 2024 • Maria João Costa


No podcast Avenida da Liberdade gravado antes de morrer, o realizador António Pedro Vasconcelos conversou com a filha Patrícia que cresceu em democracia. Recordou como era viver em ditadura, os censores que foram as primeiras vítimas da Revolução de Abril e diz que a democracia é uma flor de estufa.

A democracia “é uma flor de estufa”, quem o diz cresceu em ditadura, a ansiar pelo dia mais feliz da sua vida. António Pedro Vasconcelos o realizador que morreu aos 84 anos considerou que o 25 de Abril deu a Portugal “uma coisa essencial, a liberdade”, mas 50 anos depois o que com ela fizemos é “obra de homens livres e das circunstâncias”

Em entrevista à terceira série do podcast da Renascença, Avenida da Liberdade, numa conversa com a filha Patrícia Vasconcelos gravada poucas semanas antes de falecer e que a filha autorizou a ser emitida, o realizador diz que o Portugal de hoje, não era o que esperava há 50 anos.

“Passaram cinco gerações e 50 anos depois, esses jovens que não tiveram a experiência, e não lhes contaram o que foi, sentem é as suas dificuldades. E a tendência é acusar o regime que está. Era preciso pô-los a refletir”, aponta o cineasta.

Ao lado de Patrícia que diz que “não se pode partir do princípio” que a democracia “é um dado adquirido” e que não conseguiria viver sem ela, António Pedro Vasconcelos explica que fala muito com jovens.

“Pergunto-lhes sempre se já se deram ao trabalho de pensar porque é que o país, a Europa e o mundo estão assim? E o que já fizeram para mudar?” interroga-se.

E puxando pelas memórias do antigo regime, Vasconcelos diz: “Vocês não sabem o que vivemos. Não sabem o que era não ter liberdade, a pobreza e a miséria que havia, as enfermeiras não poderem casar… Não fazem ideia. Foi horrível! Não havia perspetivas”, refere.

No entanto, o realizador lembra que os que viveram a ditadura tinham “uma grande vantagem”. É que naquele tempo “o inimigo tinha um rosto, e agora não tem”. Por isso, o realizador reconhece que a nova geração se sinta perdida. “Eles não sabem o que é o futuro. Como é que conseguem libertar-se desta opressão?”, questiona-se.

Patrícia Vasconcelos que nasceu oito anos antes do 25 de Abril de 1974 recorda ter vivido em outros países onde havia regimes ditatoriais, em particular, o Zaire.

“Eu estava instalada no Zaire, era hospedeira da Lufthansa, tinha uma vida confortável, era casada, tinha uma casa boa, mas não vivia num regime democrático. Foi o gatilho para me vir embora”, explica ao Avenida da Liberdade e por isso aponta que é preciso ter “muito respeitinho pela democracia”.

A diretora de casting mostra-se preocupada com as novas gerações. “Dever-se-ia refletir, discutir e falar com os mais jovens. Acho que as novas gerações não têm noção”, sublinha.

Questionados sobre o que seria hoje revolucionário, António Pedro Vasconcelos aponta duas questões, a reforma da justiça e a do parlamento. “Não é possível que a justiça atue impunemente, que esteja acima da lei, e reformar o parlamento porque as pessoas não se sentem representadas”, indica. Já Patrícia Vasconcelos considera que seria revolucionário acabar com a abstenção.

A compaixão de Vasconcelos pelo censor, "a única vítima do 25 de Abril"

Quando se dá o 25 de Abril, António Pedro Vasconcelos vivia na Lapa, em Lisboa e partilhava casa com Vasco Pulido Valente. Quando uma amiga lhes telefonou para casa a meio da noite, saiu rumo ao jornal

Era então chefe de redação do Cinéfilo, o suplemento de cinema de o Jornal O Século. Quando chegou à redação, a “agitação era brutal”, recorda.

“Fui tentar travar a edição, porque saia à sexta. E se a Revolução corresse bem, e havia indícios disso, não fazia sentido sair censurada”, explica Vasconcelos.

O realizador lembra que quando chegou ao jornal “os censores estavam lá e ficaram lá até à hora de almoço”. António Pedro Vasconcelos recorda em particular o senhor Sardinha.

“Bate-me à porta e diz-me ‘Sr. Vasconcelos, não tem provas? Temos de levar as provas’. Eu disse-lhe ‘Oh Sr. Sardinha, esqueça isso!’”, mas o censor não ficou muito convencido, explica o realizador

“Lá está o senhor, não faça isso disse-me, porque às vezes eu desobedecia à censura”, recorda. O tal senhor Sardinha estava convencido de que “eles”, os censores, estavam lá.

“Quero lá saber que eles estejam lá!” respondeu Vasconcelos que desafiou-o a ir ao Largo do Carmo.

“De repente o homem percebeu que eu estava a falar a sério e ficou lívido e virou-se para mim e perguntou, ‘então e agora, o que é que eu vou fazer?!’ Percebeu que perdeu o emprego. Costumo dizer que é a única vítima do 25 de Abril pela qual tenho alguma compaixão”, explica.

No Largo do Carmo, António Pedro Vasconcelos encontrou colegas do cinema. Estavam lá “a filmar, o Cunha Telles e o Fernando Matos Silva” e viu “chegar o primeiro repórter, o João Rocha que era o repórter mais famoso da RTP e que tinha acabado de filmar o Perdido por Cem…” com António Pedro Vasconcelos.

Desse dia, o realizador lembra as caras de “felicidade”. “Foi o dia mais feliz da minha vida. Às vezes perguntam ‘e, então e os filhos?’ Os meus filhos eu estive à espera deles 9 meses. Isto foi uma explosão de alegria, estávamos, muitos de nós à espera 48 anos”.

O 25 de Novembro não foi o que a direita queria

Numa conversa em que o realizador partilhou o projeto que tinha em mãos sobre o 25 de Abril, falou-se também dos momentos que se seguiram à Revolução.

“Há uma tendência para desvalorizar o 25 de Abril, e tenho medo do que serão as comemorações”, admite António Pedro Vasconcelos.

O realizador indigna-se quando diz que “há uma tendência para dizer, o 25 de Abril, sim, mas o importante foi o 25 de Novembro”.

Na sua opinião, “o 25 de Abril deu-nos uma coisa essencial que foi a liberdade. O que fizemos com a liberdade nos últimos 50 anos, não nos podemos queixar”.

Por outro lado, o cineasta refere que “o 25 de Novembro, não foi o que a extrema-direita que está a emergir queria”. Na sua opinião “o Jaime Neves queria fazer uma purga em tudo o que era esquerda e foi o Vasco Lourenço, com o Melo Antunes ao lado que o mandaram calar e combinam nessa noite que não se pode ilegalizar o Partido Comunista”.

“O 25 de Novembro que a direita quer comemorar, não é o 25 de Novembro que aconteceu” conclui o realizador nesta conversa no podcast Avenida da Liberdade.

Esta entrevista só foi possível com a autorização de Patrícia Vasconcelos, a filha do realizador António Pedro Vasconcelos que permitiu à Renascença emitir o episódio do podcast Avenida da Liberdade gravado pouco tempo antes do cineasta morrer. Com este episodio prestamos a nossa homenagem ao seu legado.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.