Aos 103 anos, Rosa ainda tem horta: “Se deixar agora de trabalhar, o que é disto?”

Rosa Borrega nasceu em 1920 na aldeia de Aranhas, Penamacor. Passado mais de um século, uma vida de trabalho no campo, ainda continua a ir à horta, ainda gosta de pegar na sachola e arrancar as ervas. “Vão passando os anos e cá estou. Não morro. Não sei como é ter 103 anos”, diz à Renascença. Este domingo, 1 de outubro, comemora-se o Dia Mundial do Idoso.

01 out, 2023 - 10:55 • Fábio Monteiro e Rodrigo Machado (fotografias)



Aos 103 anos, Rosa ainda tem horta: “Se deixar agora de trabalhar, o que é disto?”

Na maior parte dos dias, Rosa Borrega nem se lembra da idade que tem. “Só sei porque me dizem: 'passado tanto tempo, faz tantos anos.'” Aliás, é um número que tem dificuldade em pôr por palavras, e para o qual não tem explicação.

“Vão passando os anos e eu cá estou. Não morro. Não sei como é que é ter 103 anos. Com certeza é uma fé que tenho em Nossa Senhora, é ela que me acompanha para aqui e para ali. Ainda não morri. Ou a Nossa Senhora não quer, ou é Nosso Senhor. É o que tenho na boca para dizer.”

Quem não conhece a idosa, natural e residente em Aranhas, concelho de Penamacor, jamais arriscaria tal número. Muito menos se a encontrasse na sua horta, colada aos lavadouros públicos da aldeia, como a Renascença encontrou.

É que, nalguns dias, Ti Rosa (como é mais conhecida) ainda vai lá. E ainda tem força para pegar numa enxada e trabalhar a terra – à revelia da vontade da filha. “No ano passado, a minha mãe ainda plantou as cebolas. Fazia os regos com a enxada e depois andava eu atrás dela com o cebolinho”, conta Patrocínia, 73 anos, com orgulho.

Este domingo, 1 de outubro, comemora-se o Dia Mundial do Idoso. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2021, as pessoas com 65 e mais anos representavam 23,4% da população residente em Portugal.

Rosa e Patrocínia, mãe e filha, centenária e septuagenária, respetivamente, estão incluídas nesta estatística. Uma mais do que a outra, em todo o caso. Ainda este verão, a Pordata revelou que, em 2022, existiam 2940 portugueses com mais de 100 anos, um aumento de 77% face numa década.

A mulher de 103 anos de olhos azuis-claros, apoiada numa bengala, não rejeita a etiqueta de idosa, mas também não parece ter total consciência da mesma. Sê-lo é sentir o “abrandar das forças”. “Às vezes queremos, mas não podemos”, diz. Por outras palavras: é uma medida de força.

Ora, a força de Ti Rosa ainda não desapareceu. Pelo menos, não totalmente.

Um pouco em tom de reprimenda, mas com risos à mistura, Patrocínia conta que, ainda no dia anterior à visita da Renascença, zangou-se com a mãe. “Trouxe-a comigo, pensava que ia ficar aqui sentadinha.” Acontece que, mal deu conta, já ela andava com um sacho a arrancar as ervas que ladeiam a horta.

“Eu disse-lhe: ‘Minha mãe, não quero que faça isso, depois doem-lhe as costas’”, começa por contar. Mas depois, como que resignada, acrescenta: “A vida dela é o sacho na mão e a enxada. Eu costumava dizer: 'vossemecê passa a terra mais a ferro do que algumas mulheres passam as camisas dos homens.'”




Um século de histórias

Nascida a 22 de agosto de 1920, ou seja, quando ainda Portugal gatinhava pela I República (1910 -1933) e Fernando Pessoa deambulava pelas ruas de Lisboa, Rosa Borrega nunca trabalhou ou viveu fora de Aranhas — aldeia raiana que fica a pouco mais de 15 quilómetros da fronteira com Espanha.

Uma entre onze irmãos, nunca foi à escola (por opção própria, “os pais não proibiam nem incentivavam”), nunca aprendeu a ler ou a escrever, nunca emigrou. Teve uma vida de campo, de “pés na terra”. Sempre foi uma “mulher muito independente”, garante Patrocínia.

Salvo curtos passeios a Espanha e peregrinações religiosas, o máximo de tempo que Rosa passou fora de casa “foram três semanas” — já há mais de 50 anos — para pôr próteses dentárias. E se foi à praia, foi apenas porque a “levaram”. “Eh pá, anda tudo em carrapato. Não achei piada nenhuma”, conta, a rir-se.

Com 23 anos, casou-se com Manuel Borrego, também natural de Aranhas, de quem ficou viúva no ano 2000. Por contraste com outras mulheres da época, teve apenas dois filhos: um rapaz que morreu em bebé e Patrocínia. “Nosso Senhor qui-lo. Nossa Senhora deu-me uma filha e Nosso Senhor quis o rapaz para ele. Morreu com três meses”, conta.

Ao longo de 103 anos, a idosa atravessou um período de grandes mudanças mundiais - mas quase sempre à distância. Alheia às grandes determinações políticas do século XX, mal deu conta da passagem da Segunda Guerra Mundial, por exemplo. De perto, por questões geográficas acima de tudo, Rosa viveu, sim, a Guerra Civil Espanhola.


 

Rosa era uma adolescente de 13 anos quando o Estado Novo nasceu, uma mulher de 53 anos quando se deu o 25 de Abril de 1974. Mas tudo o que tem a recordar é: “O tempo do Salazar era um tempo de fome, era um tempo de muita fome. Tínhamos de dar aos donos dos terrenos o pão quando o malhávamos.”

Os episódios do século de Rosa resumem-se, pois, a histórias biográficas. Aquilo que lhe é íntimo e próximo. Como aquela vez em que, ainda adolescente, ao beber água de um riacho, colou-se-lhe uma sanguessuga na garganta. A solução encontrada? Fumar um cigarro. “Soltou-se logo.”

Ou o susto, ainda durante o período do Estado Novo, quando o pai foi acusado e detido por suspeitas de contrabando, enquanto atravessava a fronteira com uma manada de vacas, mas conseguiu escapar. “Ficou devoto da Nossa Senhora da Póvoa.”

Ou ainda a primeira vez que pegou numa gadanha e limpou um terreno, com tamanha mestria que causou espanto e incredulidade aos homens da aldeia. “Tanto feno que eu agadanhei.”


 

Quem nos segura?

A idade não extinguiu o espanto dos olhos de Rosa Borrega, mas já lhe pesa um pouco nos ombros.

Depois de uma pneumonia no ano passado, a centenária ficou debilitada. Passou a ir à horta mais para fazer companhia à filha do que para trabalhar a terra – o que condiz pouco com o seu feitio.

Rosa continua a querer, mas já não pode tanto como no passado. “Às vezes, penso: o que ando aqui a fazer? Mas ainda não fui. A minha filha diz-me: ‘Deixe-se cá estar. Enquanto você cá está, eu tenho mãe. E depois fico cá sozinha’”, conta à Renascença, num intervalo em que a filha se ausenta para cuidar de outra horta da família.

Patrocínia — filha única e solteira – reformou-se em 2011, e no ano seguinte abandonou a sua casa em Lisboa para vir fazer companhia à mãe. “Quando vim para ao pé dela, a minha mãe ainda não precisava de mim. Mas ela estava sozinha e eu também.”

Sentada num bloco de granito, na horta que lavrou e cultivou décadas a fio, Rosa contempla as colinas e olivais que ondulam até Castelo Branco, os picos da Serra da Estrela que se perscrutam à distância. Confessa-se “admirada” por “tanta abundância que há no mundo”, pelos “grandes freixos, marmeleiros e carvalhos” que povoam a paisagem.

Sem surpresa, é na natureza, além de na religião, que Rosa que encontra metáforas para a existência. “Os terrenos não dão nada. Os terrenos são como nós. Se nós quisermos que o terreno dê, nós vamos dar de comer ao terreno. O terreno come como nós. O nosso corpo morre, vai para debaixo da terra. Ao fim do mês, se forem a destapar, já não está como estava”, explica.

Aos 103 anos, a morte não mete medo a Ti Rosa, falar de enterros não a arrepia. Pelo contrário: diverte-a falar dos caixões de hoje por comparação com as mantas e camas de feno utilizadas no passado. “Quem morre, morreu. Já cá não vem. É a minha ideia.” O que a preocupa, acima de tudo, é o que ficará. “Se deixar agora de trabalhar, o que é disto? Não é nada. É uma pouca de terra que aqui fica. E umas paredes e tal. Cai tudo com o tempo.”

Analfabeta, ciente de que, de vez em quando, tem pequenos tropeços de raciocínio (naturais para a idade), Rosa tem fé e um desejo: “Que Nossa Senhora me ensine a rezar, porque às vezes já me confundo e esqueço com o terço.”

A idosa esfrega as mãos calejadas e com veias salientes. A pele está escamada, desgastada, de décadas de trabalho.

E sentencia: “Em quem devo ter fé? O meu homem já morreu, os meus pais já morreram. Tinha fé neles. Eu não os segurei. Se os pudesse segurar, ainda hoje cá estariam. Mas não posso, não posso. A gente acabando, acabou-se. Um dia chegará a minha missão, e lá vou. Não há ninguém que me segure.”


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