Eu tirei história numa faculdade dominada por ciências aplicadas à economia. Nós, os historiadores, éramos tratados como diletantes e futuros pedintes. Dizia-se que não teríamos capacidade para singrar na vidinha. Na equipa de futebol da faculdade, os meus colegas de gestão diziam-me que andava a tirar um curso de cultura geral, uma relíquia sem préstimo.

Passados vinte anos, qual é afinal a taxa de sucesso dos meus colegas? Pelo que sei, é bastante boa. Quer no mundo das letras, quer no mundo das empresas, o trajecto dos meus colegas, treinados como generalistas num mundo alegadamente de especialistas, é bastante interessante.

Porquê? Em “Range”, David Epstein explica porquê: numa sociedade de especialistas obcecados com o seu quintal, o generalista com visão larga (“range”), e muitas vezes o generalista treinado em letras, é o único que consegue ver o quadro geral ("the big picture") e, acima de tudo, é o único que consegue ligar os pontos entre os diversos quintais dos especialistas. Como historiadores, somos treinados para ver e pensar um quadro geral e não apenas um ponto ultra específico. Esta visão em leque aberto faz falta e, não por acaso, uma nova teoria está a entrar nos departamentos de recursos humanos: nas empresas, é preciso ter algumas pessoas de letras no meio daquele oceano de profissionais treinados em números.

Repare-se que não estou a pôr em causa a ideia das 10 mil horas, isto é, para sermos geniais numa actividade qualquer, temos de praticar 10 mil horas só para começarmos a sermos bons. Só que este treino situa-se a jusante, é uma técnica; não é o coração da mente. Um escritor ou um músico têm de ter 10 mil, 20 mil, 30 mil horas de treino, claro, mas as suas mentes não podem ser de especialistas e fechadas num único aspecto da realidade. Um bom músico treina o seu mester, com certeza, mas mantém a mente aberta a uma variedade de temas. A especialização, sobretudo se for uma especialização precoce, impõe a morte da curiosidade intelectual.

David Epstein vai ainda mais longe. Num mundo de algoritmos, a especialização é um perigo para o futuro profissional de uma pessoa. Todas as tarefas do especialista correm neste momento o risco de passar para a alçada da máquina e do algoritmo.

A visão generalista, essa, é insubstituível, porque é exclusivamente humana. Olhem para a medicina, por exemplo, e para as suas carências do momento. Já li dezenas de livros e de testemunhos que alertam para a crise da medicina interna e para a overdose de especialistas. Ou seja, há os especialistas no coração, o especialista nos rins, etc., mas depois falta o médico clássico que consiga perceber a totalidade do doente; o médico que não olhe para este ou aquele quintal especializado, mas sim para a pessoa como um todo. Faltam generalistas, até porque nenhuma máquina ou algoritmo conseguirá ter esta visão de conjunto.

Num futuro longínquo, é concebível imaginarmos a tarefa do especialista nas mãos de uma máquina, mas isso já não me parece concebível quando pensamos na figura do médico generalista, aquele que sabe ler a história clínica inteira de um paciente, aquele que aproxima a medicina das humanidades.