SIRESP teve “falhas constantes” nos incêndios em Leiria

Email, telemóveis, rádio. Bombeiros foram obrigados a recorrer a sistemas alternativos para contornar “falhas constantes” do SIRESP durante os incêndios em Leiria. Sobrecarga da rede na resposta inicial é uma das principais queixas. “Muitas das vezes é aflitivo. Nós quase que gritamos ao rádio, porque pensamos que nos estão a ouvir e não estão”, conta um comandante à Renascença.

29 jul, 2022 - 08:00 • Fábio Monteiro



Foto: EPA
Foto: EPA

Mais uma vez, o Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) voltou a mostrar uma capacidade de resposta deficiente. Durante os incêndios que assolaram o distrito de Leiria, no período que se sobrepôs à situação de contingência, houve “falhas constantes” na rede, de acordo com vários testemunhos ouvidos pela Renascença.

Muitas das falhas estiveram relacionadas com a sobrecarga da rede, nos momentos de passagem de um incêndio de pequena ou média dimensão para um teatro de operações de grande dimensão. Em alguns dos casos, foram momentâneas e passíveis de ser contornadas, através de sistemas de redundância (telemóveis e rádio). Noutros, as comunicações estiveram mesmo cortadas durante longos períodos de tempo.


Carro queimado em Colmeias, Leiria, após os incêndios de julho de 2022. Foto: Inês Rocha/RR
Carro queimado em Colmeias, Leiria, após os incêndios de julho de 2022. Foto: Inês Rocha/RR

Por email ou por telefone

Na frente das chamas em Pelmá, Alvaiázere, Mário Bruno, comandante da corporação de bombeiros voluntários do concelho, foi obrigado, por exemplo, a enviar relatórios de ponto de situação para o ao Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS) via email.

“Não tinha SIRESP. Não sabia se a minha mensagem chegava ao CDOS ou se eles comunicavam comigo, porque eu não os conseguia ouvir. Portanto, pontos de situação, que são uma ferramenta tão importante para a atualização de um teatro de operações, fi-los muitas vezes por email”, conta.

Segundo o comandante dos bombeiros de Alvaiázere, as falhas do SIRESP “já começam a ser estranhamente recorrentes”. O sistema é uma ferramenta “muito útil quando funciona na sua plenitude”, mas quando apanha “zonas sombra ou quando apanha uma operação de alguma envergadura, falha”.

“Ao falhar deixa-nos completamente entregues a nós próprios, porque não conseguimos muitas vezes solicitar a ajuda de outra corporação, de outro veículo que está ao nosso lado. Muitas das vezes é aflitivo. Nós quase que gritamos ao rádio, porque pensamos que nos estão a ouvir e não estão. E isso cria-nos muitos problemas na operação”, diz.

A experiência de Mário Bruno ecoa com a de Pedro Paz, 2.º comandante dos bombeiros voluntários de Ansião. No dia 13 de julho, no combate às chamas na localidade de Mogadouro, Pedro foi obrigado a “ir ao posto de comando recolher alguns contactos telefónicos de outros elementos que estavam afetos ao mesmo [incêndio]”. “Quando precisei de os contactar, teve de ser via telemóvel. Não conseguia via SIRESP”, conta.

A explicação dada a Pedro Paz para as falhas do SIRESP foi que a rede estava “sobrecarregada”. “Ok, óbvio. Mas uma rede de emergência tem de ter capacidade de resposta quando está sobrecarregada, se não, não vale a pena ter essa rede”, nota.


Populares combatem incêndio na Aventeira, concelho de Alvaiázere. Foto: Nuno André Ferreira/Lusa
Populares combatem incêndio na Aventeira, concelho de Alvaiázere. Foto: Nuno André Ferreira/Lusa

“Às escuras”

Nos incêndios do distrito de Leiria, o SIRESP fraquejou, em particular, nos momentos em que os incêndios aumentaram dramaticamente de dimensões – situação resolvida, na larga maioria dos casos, por via da colocação de um veículo repetidor do sinal da rede.

Guilherme Isidro, comandante dos Bombeiros Voluntários de Ourém, recorda “um período de uma hora em que de facto ficamos 'às escuras'”. Em todo o caso, lembra que foi sempre possível recorrer a sistemas redundantes. “O pior seria ficarmos completamente sem comunicações nenhumas e isso nunca aconteceu”, diz.

Destacado num posto de comando, João Lavos, responsável dos Bombeiros Voluntários de Vieira de Leiria, lembra também alguns momentos de “muita dificuldade em comunicar com o rádio SIRESP”. “Houve várias situações em que, só após várias tentativas, conseguia comunicar”, conta.

Questionado pela Renascença, António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, admite já ter tido conhecimento de falhas do SIRESP “em alguns momentos, especialmente nos períodos iniciais” no combate aos incêndios este ano. Trata-se de um problema que “já se verificou e vai verificar sempre que haja” um aumento de dimensões de um incêndio.

O que está por apurar, neste momento, é se ao final de algumas horas o SIRESP conseguiu ou não restabelecer a rede ou não. “Se, porventura, o problema conseguiu ser ultrapassado, o que nós temos que dizer que o estado de prontidão da rede dos equipamentos tem que andar à frente da mobilização dos meios. E, portanto, o procedimento de uma forma ou de outra tem de ser revisto”, diz António Nunes.


Incêndio na freguesia de Aventeira, no concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria. Foto: Nuno André Ferreira/Lusa
Incêndio na freguesia de Aventeira, no concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria. Foto: Nuno André Ferreira/Lusa

Depois de Pedrogão, o medo

A opção de Mário Bruno enviar relatórios de ponto de situação via email para o CDOS, enquanto o SIRESP esteve em baixo, é um reflexo direto da tragédia de Pedrogão Grande em 2017, onde morreram 66 pessoas. Esta foi a primeira vez que o comandante dos Bombeiros Voluntários de Alvaiázere tomou tal escolha.

Porquê? “Não me posso esquecer que tenho um colega meu a braços com problemas na Justiça, porque não passava pontos de situação, dizia que não passava pontos de situação. E ao que sabemos muitas vezes passava e a fita do tempo foi cortada. Portanto, para isso que não aconteça novamente, nós comandantes também temos que nos defender.”

Mário refere-se a Augusto Arnaut, antigo comandante dos bombeiros voluntários de Pedrogão Grande, que está a ser julgado por 63 crimes de homicídio e 44 de ofensa à integridade física, todos por negligência. Em maio deste ano, o Ministério Público defendeu que fosse condenado a uma pena mínima de cinco anos de prisão efetiva.

Para o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, desde Pedrogão Grande gerou-se um clima de medo. “É normal que qualquer comandante se sinta com algum receio que, a ocorrer uma situação de averiguação ou imputação de responsabilidades, possa vir a acontecer aquilo que não devia a acontecer. Quem devia estar no tribunal, quem se devia ter chegado à frente é o sistema”, diz.

Segundo António Nunes, a diretiva DECIR 2022 – que define a hierarquia de responsabilidades no combate aos incêndios rurais - é deficitária, por dar o controlo do dispositivo de incêndios à Proteção Civil e não salvaguardar os interesses dos bombeiros.

“Não nos esqueçamos que no incêndio em Murça já houve em ponto pequeno tudo aquilo que se passou em 2017. Houve incêndios de grande intensidade, houve atrasos na montagem do posto de comando, houve um casal que ao fugir das chamas teve um acidente e morreu. Não houve com a dimensão de 2017, mas já houve”, atira.

A Renascença questionou o SIRESP sobre as falhas relatadas, mas, até à hora de publicação desta notícia, não obteve resposta.


ANEPC admite “constrangimentos pontuais” na rede SIRESP

A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) admite, em resposta a questões colocadas pela Renascença, terem ocorrido “constrangimentos pontuais na rede SIRESP, motivados por uma sobrecarga da rede devido a uma deficiente utilização da mesma”, nos incêndios que assolaram Leiria, há duas semanas.

De acordo com a ANEPC, “antevendo possíveis constrangimentos a nível das comunicações, num contexto que envolvia um elevado número de operacionais”, havia sido colocado no distrito um veículo repetidor do sinal da rede SIRESP.

“Logo que as dificuldades foram reportadas pelos operacionais, através dos postos de comando, a viatura foi ativada, tendo os constrangimentos sido colmatados de imediato, em estreita articulação com o Centro de Operações e Gestão da SIRESP”, lê-se.

A ANEPC garante ainda que “em nenhum momento” a rede SIRESP deixou de funcionar e ocorreram apenas “situações de atrasos de poucos segundos na entrada” de comunicações.


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