02 jun, 2020 - 08:00 • Joana Bourgard (fotografias e texto)
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A meia hora do início da distribuição dos cabazes alimentares na Igreja do Catujal, em Loures, dezenas de pessoas aguardam pela abertura da porta. Quem chega por último tem de procurar a última pessoa na fila e fixar a sua vez. A temperatura ao sol é de 34ºC e são poucas as sombras junto à moderna Igreja São José da Nazaré.
A azáfama é grande dentro do edifício, onde os poucos voluntários se distribuem por várias tarefas. Há alimentos para preparar e novos pedidos de apoio à espera. Dezenas de pessoas chegam pela primeira vez para pedir alimentos, uma tarefa complicada pela necessidade de fazer o registo formal de cada pedido.
Quem está à frente de toda a distribuição de alimentos é o Pe. Mário Faria Silva que, além de ser o pároco da igreja, é técnico social e o único apto a fazer as avaliações dos pedidos.
"Não queremos entregar os alimentos por entregar. Fazemos sempre a aproximação de diagnóstico. Para além dos cabazes, as pessoas podem estar em situação de receber o rendimento mínimo ou pensões de sobrevivência. Nós não entregamos alimentos, em princípio, sem aproximação de diagnóstico e, além de não haver tempo para tudo, não temos espaço nem voluntários", desabafa o pároco.
Até ao início da pandemia, a paróquia distribuía cabazes a 50 famílias, num total de 150 pessoas. Em pouco mais de dois meses, os pedidos mais do que triplicaram.
Na passada quinta-feira, dia semanal da distribuição de cabazes, mais de 152 famílias foram buscar alimentos, num total de 485 pessoas. A Renascença sabe que, desde a última distribuição, a paróquia já recebeu dezenas de novos pedidos, mas ainda não os tem contabilizados.
Reportagem
Desde diminuição da frequência de veículos até car(...)
Além dos imigrantes irregulares, que deixaram de conseguir rendimento com "biscates", o pároco do Catujal alerta para "um outro grupo, que são as pessoas da limpeza.
Habitualmente, são senhoras que agora não têm trabalho nem ‘lay-off’, sem contratos consistentes e em situação de grande precariedade. Antes, não eram beneficiárias."
Trabalhadores de feiras, de montagem de eventos, palcos e sistema de som, "também à base do biscate", são outros grupos que pedem apoio alimentar. A paróquia chegou a dar cabazes de alimentos a um dentista que neste momento já não precisa de apoio.
No grupo de 12 voluntários a trabalhar na distribuição de cabazes está Belmiro Barros, um jovem de 23 anos, natural da Guiné-Bissau, empregado de um restaurante de chef na Baixa de Lisboa e atualmente em regime de ‘lay-off’. Há 10 anos, quando a família de Belmiro chegou a Portugal, foi uma das que foi apoiada pela igreja do Catujal.
"Hoje já tenho a oportunidade de estar aqui para ajudar e não para receber, mas no início foi um bocadinho difícil e precisámos de muita ajuda. Usufruímos do cabaz da igreja para ajudar com as coisas lá em casa. Os meus pais trabalhavam, mas mesmo assim não dava para tudo: a renda, a alimentação e tudo o resto", explica Belmiro.
"Infelizmente, conheço muitas pessoas a viver em situações más e, por causa do que vivi, acabo por perceber um bocadinho mais o que estão a passar e disponibilizo-me para ajudar e ir contra esta situação, que não é boa", reconhece.
A viver num dos bairros junto à igreja, Belmiro convive com famílias que a pandemia atirou para o desemprego, desencadeando situações de grande vulnerabilidade e exclusão social.
Voluntário há sete anos, o jovem especialista em gestão hoteleira fica assustado com o aumento dos pedidos que todas as semanas chegam à paróquia. Antes da pandemia, o grupo de voluntários distribuía os cabazes em algumas horas. Agora, ficam pelo menos até às 20h00 e várias vezes têm de voltar ao armazém para dar alguns alimentos extra a algumas famílias.
"A ideia é que os alimentos durem para toda a semana, mas há casos em que as pessoas telefonam para virem buscar mais alimentos, algo que antes da pandemia não acontecia, porque encontravam sempre forma de se desenrascar", diz o Pe. Mário, que elogia o trabalho dos voluntários. "Isto é muito duro e também perigoso, porque a Covid-19 aqui nesta zona não nos deixa."
Nos últimos sete dias, Loures foi o concelho que registou mais casos de Covid-19, com 238 novas infeções. Um aumento que o pároco atribui à situação de pobreza em que vivem muitos habitantes do município. Reconhece que não é possível ter um grande nível de preocupação com o vírus quando há sobrelotação nas casas, com poucas condições de habitabilidade.
Há vários anos que Cristina e Paulo participam nas campanhas de recolha de alimentos nos supermercados para o Banco Alimentar (BA). A pandemia atirou o casal para um ‘lay-off’ que optou por usar o tempo livre para dar apoio na paróquia.
"Eu sabia que havia pessoas com alguma dificuldade porque é um bairro numa zona menos nobre da região de Lisboa, mas nunca pensei que fossem tantas famílias." Cristina sente-se "impressionada" com a evolução dos pedidos desde março.
Paulo é um dos responsáveis por ir buscar alimentos ao BA e mostra preocupação com o futuro do apoio alimentar. "Vou ao BA buscar os alimentos, com a equipa da junta de freguesia, e já houve algumas situações onde o cabaz era fraco e isso é alarmante. O próprio BA começa a não ter capacidade de sustentar tantas instituições."
Fundadora da Refood de Alfragide, a primeira Refood fora de Lisboa, Carla Gonçalves começou a receber novos pedidos de apoio alimentar "logo na primeira semana de estado de emergência".
"Tenho inúmeros contactos telefónicos por dia. Algumas pessoas identificam-se como sendo de Alfragide, outras não. Referem que estão a passar fome, que não têm apoio ou estão em fila de espera", conta.
Fundada na sequência da crise de 2012, a Refood de Alfragide veio dar resposta às necessidades do subúrbio de Lisboa que concentra um número elevado de bairros sociais. O número de pedidos registado durante a crise gerada pela pandemia ultrapassa em muito os pedidos de 2012.
Carla vive em Alfragide, mas é assistente social na Câmara de Lisboa e reconhece que na capital existe uma melhor sinergia entre as instituições do Estado e privados, de forma a dar apoio alimentar ao máximo de pessoas possível.
Na Amadora, existem várias famílias à procura de apoio alimentar, ao ponto de se deslocarem até Lisboa para conseguirem uma refeição oferecida.
Neste momento, o apoio alimentar no concelho da Amadora chega através de várias instituições, como o Moinho da Juventude, a paróquia de Alfragide, a CooperActiva e a Academia do Johnson.
A viver uma mudança de paradigma, as duas Refood da Amadora encontram-se fechadas. Fundada em Portugal pelo Hunter Halder, a Refood assume a missão do combate ao desperdício alimentar. Os donativos aos 7.000 beneficiários vinham sobretudo da restauração e de cantinas, um paradigma profundamente alterado durante a pandemia.
Ao todo, as Refood da Amadora e Falagueira apoiam 210 pessoas. Desde meados de março, além de terem perdido grande parte dos voluntários, deixaram de poder contar com o excedente de alimentos dos restaurantes e cantinas.
Carla explica que a Refood continua com a missão do combate ao desperdício alimentar, mas noutra perspectiva. "Havendo desperdício de comida, nós recolhemos. Mas a partir de agora esperamos contar com os desperdícios dos grandes supermercados e das frutarias e comercio local".
Carla reconhece que a reabertura da instituição vai depender da forma como a sociedade se adaptar a viver em pandemia. "Enquanto se mantiverem as escolas fechadas e as pessoas em teletrabalho, as cantinas não vão estar a funcionar e teremos seguramente muito menos refeições, mas assim que começar a haver oferta de refeições, gostaríamos de regressar."
Quando questionada sobre a forma como a população em geral pode contribuir para a procura de alimentos, Carla diz que "o mais importante é as pessoas contribuírem para o Banco Alimentar".
"É a instituição mãe que está a tentar dar resposta a todo um país que está em situação muito difícil", sustenta. "Outra possibilidade é cada um contribuir com as paróquias e entidades locais que estão a dar apoio neste momento."
Segundo a presidente da Federação de Bancos Alimentares, são mais de 430 mil as pessoas apoiadas pela instituição neste momento. Perto de 58 mil chegaram com o confinamento imposto pelo novo coronavírus.
“Já recebemos mais de 15.900 pedidos, que correspondem a cerca de 58 mil pessoas, que vêm acrescer àquelas que já recebiam o apoio alimentar”, afirmou Isabel Jonet à Renascença a 21 de maio. As contribuições podem ser feitas através do site do BA.
O concelho da Amadora é o terceiro com mais casos de Covid-19 registados na última semana. Ao todo, 198 pessoas deram positivo no teste do novo coronavírus.